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Apontamentos sobre a Revolução Cultural Permanente

Afonso Machado

Apontamentos sobre a Revolução Cultural Permanente

Afonso Machado

Uma boa parte do proletariado que sangra diariamente e desconhece a cor vermelha da sua bandeira histórica, possui uma lembrança reprimida: a palavra “revolução” não o larga, como uma espécie de eco que se comunica com ele através de muitas vozes do passado. Este eco adquire contornos mais precisos diante dos recentes episódios da luta de classes na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa, em pontos distantes do planeta... Mas quem é o proletariado hoje?

A sociologia marxista mais arrojada dos nossos dias vem demonstrando que a resposta a esta pergunta envolve considerações sobre uma nova morfologia do trabalho. As Terceira e Quarta revoluções industriais intensificaram o tempo do trabalho dentro e fora da jornada clássica, proporcionando ao Capital a maestria de promover a tapeação quanto aos direitos trabalhistas, o entrecruzamento da formalidade e da informalidade, a sofisticação do controle, da vigilância, o aprimoramento dos assédios... Estas mutações do trabalho que se apoiam em forças produtivas presentes nas Tecnologias da Informação e da Comunicação, na robótica e na eletrônica, devem ser consideradas por aqueles que militam no movimento dos trabalhadores; tais questões portanto dizem respeito ao front da política e da cultura de oposição.

Um dos grandes desafios históricos consiste em pensar como as formas da luta anticapitalista podem responder a esta nova morfologia do trabalho. É dentro deste processo econômico e social que observamos proletários que não sabem que são proletários: perdidos numa realidade que apresenta- se como a continuação infinita do sonho burguês, trabalhadores carentes de uma tradição cultural revolucionária revelam uma predisposição psicológica para serem ovelhas empreendedoras. A oposição cultural às muitas formas do conteúdo econômico do capitalismo global, cuja reestruturação deu-se a partir dos anos de 1970, envolve do ponto de vista da contrapartida organizacional de um novo modo de vida, uma motivação espiritual expressa na construção de imagens dialéticas, no sentido benjaminiano do termo. Esta resolução estética e ao mesmo tempo política leva a uma investigação/reflexão sobre nossas atividades narrativas: ela é uma correspondência cultural frente ao desenvolvimento desigual e combinado da história do capitalismo. Sua tarefa consiste em impulsionar aquilo que entendemos por Revolução Cultural Permanente, quer dizer, um conjunto de práticas artísticas independentes que participa da Primeira fase de Acumulação Cultural Primitiva do novo proletariado. Seu objetivo histórico é contribuir ideologicamente com o advento de uma nova onda revolucionária dirigida pela classe trabalhadora.

Sabemos que a teoria da Revolução Permanente de Trótski possui correspondências culturais. A principal delas foi expressa no conceito de Arte Revolucionária Independente definido e defendido por André Breton, Diego Rivera e pelo próprio Trótski no final dos anos de 1930. É preciso acrescentar a esta resposta plural e libertária dada contra o totalitarismo personificado no fascismo e no stalinismo, as preocupações quanto a formação cultural do proletariado, questão que Trótski já problematizava em sua crítica literária dos anos de 1920: trata-se de gerar condições para que a classe trabalhadora assimile as tradições culturais, as heranças que as classes dominantes negaram aos trabalhadores. Tendo em vista que hoje o “novo” proletariado necessita especificamente, e num primeiro momento, de uma tradição cultural revolucionária capaz de agir sobre sua consciência política, a estratégia das imagens dialéticas pensada por Walter Benjamin torna-se vital: estas imagens dialéticas aproximam, através de um processo construtivo momentos distintos da história, tendo como critério central para as montagens imagéticas formadoras de constelações críticas, as formas assumidas pelas lutas de classes ao longo dos tempos. Cabe demonstrar como esta postura filosófica que repercute sobre as práticas historiográficas, literárias e artísticas como um todo, possui uma intensa relação com o conceito de desenvolvimento desigual e combinado da realidade apresentado por Trótski.

Segundo Trótski, devemos compreender o retrato do capitalismo como um conjunto contraditório e não meramente como a soma das economias das nações. Países capitalistas pobres como o Brasil não possuem uma história separada da história do capitalismo: a dinâmica geopolítica dos países exploradores, em especial na Era do imperialismo (ainda vigente), não permite que os países pobres/saqueados atravessem as clássicas etapas econômicas. O que estes países explorados possuem são especificidades históricas em que o desenvolvimento capitalista envolve a incorporação das novas forças produtivas coexistindo com formas arcaicas, com as realidades do subdesenvolvimento. Nota-se no interior do contraditório movimento desigual e combinado os saltos dialéticos, através dos quais o ontem e o hoje amalgamam-se. No Brasil de 2021, onde observamos lugares que não possuem energia elétrica e tratamento de esgoto, coexiste a tecnologia digital de ponta. O arcaico e o moderno interpenetram-se nos cenários da luta de classes, sendo que os fragmentos de outras épocas estão espalhados no presente mergulhado em novas tecnologias: a porta da realidade está aberta para as imagens revolucionárias do passado entrarem pela Era Global. Como Trótski demonstrou no início do século passado, a superação dos degraus econômicos na trajetória dos povos empurra o proletariado, a partir da etapa imperialista, não na direção das revoluções nacionais burguesas (e consequentemente das alianças da esquerda com partidos burgueses) mas na direção histórica das revoluções socialistas apoiadas num programa internacionalista. Esta constatação histórica embasada no caráter internacional das revoluções proletárias, válida inclusive no contexto das referidas realidades econômicas e sociais decorrentes da Terceira e Quarta revoluções industriais, não poderia deixar de mobilizar os instrumentos políticos clássicos de luta da classe trabalhadora: os proletários que em boa parte trabalham como servos nos setores de serviços, precisam conhecer e agir no âmbito sindical, fazer uso de comitês, filiarem-se aos movimentos sociais e políticos independentes capazes de articular o proletariado internacional. Se isto é verdade para a dinâmica da luta pelo poder político, também o é para a dinâmica da militância cultural.

A teoria da Revolução Permanente de Trótski é atualíssima na época global porque, dentre outras razões, se considerarmos um país que hipoteticamente registra a emancipação do proletariado, este mesmo país não poderia sustentar-se do ponto de vista da economia e da cultura caso opte por uma política isolada, nacionalista, logo deformada por agentes burocráticos que impedem o aprofundamento da luta de classes. A nós interessa libertar as massas das algemas da cultura oficial e aprofundar as lutas sociais na rota das revoluções socialistas internacionais. Entre os militantes da cultura existe a necessidade de recusar e desiquilibrar as formas da ideologia dominante. A necessidade de atualização técnica para fins produtivos e a elevação cultural das massas, fazem parte de um mesmo processo histórico que pertence a um momento de superação das barreiras nacionalistas: o movimento permanente da revolução é necessário para destruir a divisão internacional do trabalho, para aniquilar a existência do Capital e dar início a uma humanidade emancipada. A articulação das lutas revolucionárias nos âmbitos nacional e internacional, as influências reciprocas entre as ações dos trabalhadores dos países capitalistas pobres e dos países capitalistas ricos, requerem no âmago da cultura revolucionária a difusão de correspondências históricas efetuadas pelas imagens dialéticas; estas por sua vez denunciam o monitoramento do capitalismo global sobre a vida do trabalhador. Para tornar-se sujeito revolucionário o atual proletário deve modificar a estrutura da sua experiência, uma experiência então medíocre porque presa ao imediatismo do “agora” em que pululam centenas de estímulos adestradores realizados por máquinas, por engenhocas digitais que o trabalhador pensa que controla, mas que na realidade o Capital administra.

O trabalhador deve superar pela dialética da cultura a vivência isolada que o confina num grande rebanho de alienados. O proletário necessita apropriar-se das novas forças produtivas digitais para fins políticos revolucionários e em suas atividades culturais acumular imagens que desarrumam a história, que retiram a falsa aparência de harmonia da narrativa dos acontecimentos passados e do presente: necessitamos de uma produção estética que altere nossas práticas narrativas ao interromper o tempo da alienação que a mídia burguesa e os fabricantes de Fake News tanto presam. Numa realidade dividida entre países exploradores e países explorados, na existência de opressores e oprimidos tanto nos países ricos quanto nos países pobres, a cultura dos revolucionários é internacionalista: para os proletários dos países capitalistas ricos e pobres interessam as narrativas de luta. Quando se olha para o Brasil não interessa o embuste dos símbolos pátrios da ordem e do progresso, mas a montagem imagética que revela e miséria e as lutas do povo brasileiro, como a Guerra de Canudos de 1896/97 e a resistência das periferias nas cidades brasileiras em 2021. Quando se olha para os EUA não interessa a adoração dos signos das multinacionais e as renovações superficiais e massificadoras do Mito da Fronteira, mas sim a revolta negra, tanto em 1967 quanto em 2020. A relação dialética entre antigas e novas imagens engatilha as armas da cultura.

O permanentismo de Trótski atinge, através das reflexões históricas de Benjamin, uma possível prática poética que no cruzamento entre episódios passados e presentes destrói a temporalidade burguesa, afetando os desígnios do administrador toyotista: se este realiza a continuação do trabalho alienado fora do espaço de trabalho, se faz necessária uma contrapartida da subjetividade, se faz necessária a mobilização das energias interiores do explorado. O Toyotismo quer fazer do trabalhador um devoto em tempo integral da multinacional que o emprega e o devora. Mas se as imagens dialéticas adentrarem pelo tempo livre do trabalhador, elas podem rasgar a camisa da empresa e abrir um novo horizonte, o horizonte da revolução. Dentro deste horizonte cabem todas as pautas da emancipação humana: a afirmação da sexualidade livre e plural contra os tabus do patriarcado, denunciando, inclusive, as falsas fronteiras entre o azul e o rosa. Não se trata mais de mulheres que a partir da personagem bíblica Eva formam o objeto das narrativas de Adão, Deus e da Serpente. Na luta contra a cultura dominante, a mulher produz suas próprias narrativas. Ao destruir a ilusória linearidade e demonstrar que o movimento da história é necessariamente heterogêneo, a Revolução Cultural Permanente exige uma representação revolucionária do passado, sendo que este age politicamente sobre o presente. A história dos modos de produção concebida em sentido dialético dinamita a linha do tempo dos positivistas e o relativismo politicamente conservador dos culturalistas que habitam a fauna dos gabinetes. Através da montagem dos fragmentos/imagens perdidos no tempo, as lutas dos oprimidos do passado são atualizadas, possibilitando encontros políticos com aqueles que lutam hoje.

No ponto de intersecção entre o pensamento de Trótski e Benjamin, a Revolução Cultural Permanente não impõe um modelo estético homogêneo. Vamos insistir mais uma vez na pluralidade estética, na necessidade histórica da cultura libertária na medida em que as imagens revolucionárias que interrompem o tempo da opressão são feitas de diferentes materiais subversivos. Conhecer a história das revoluções, narrar os dramas da luta de classes coexiste com manifestações poéticas cuja violência estética invoca o êxtase e a anarquia enquanto mobilizadores de energias revolucionárias. Da França, não queremos a imagem de Napoleão I ou do seu patético sobrinho Napoleão III, mas sim as imagens transgressoras compostas por poetas malditos que, como Baudelaire e Rimbaud, profanaram a ordem burguesa. Junto ao legado político que se inicia com a Grande Revolução de 1789, passando pelos operários revolucionários de 1848, pelos Communards de 1871, pelos enrangés de 1968 e pelos atuais Coletes Amarelos, integram-se ao patrimônio libertário as imagens sonhadoras e sacrílegas dos poetas rebeldes de ontem e de hoje. A mobilização da “embriaguez para a Revolução “, tal como Benjamin reconheceu no movimento surrealista em 1929, é verificável num leque de manifestações e movimentos (contra)culturais em que a arte, as atitudes cotidianas e a sensibilidade rebelde trabalham a seu modo pelo abalo da moral dominante; não por acaso Trótski e Benjamin realizaram, como muito bem apontou Terry Eagleton, alianças com os surrealistas.

Em síntese a Revolução Cultural Permanente, ou se quisermos a dimensão cultural da Revolução Permanente, abrange uma série de iniciativas em que o elemento estético contribui para reconstruir a experiência do novo proletariado, agindo sobre sua percepção histórica. Em outras palavras, trata-se de impulsionar o desejo revolucionário visando desiquilibrar a moral estabelecida, romper com a vida normatizada e interromper o curso da história.


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