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SEMANÁRIO

Algumas considerações acerca do Programa de Transição

Matías Maiello

Algumas considerações acerca do Programa de Transição

Matías Maiello

Publicamos aqui o “Prefácio à edição brasileira” do Programa de Transição escrito especialmente por Matías Maiello para o nosso lançamento da obra pelas Edições Iskra no ano em que se completarão 83 anos do assassinato do revolucionário russo Leon Trótski a mando de Stálin. A obra apresenta uma parcela das principais elaborações deste que foi um dos maiores defensores do marxismo revolucionário de todos os tempos.

Em contraste com abordagens evolutivas, Trótski em seu prefácio à História da Revolução Russa toma como ponto de partida o caráter profundamente conservador da psique humana para explicar as mudanças que se produzem na consciência em momentos revolucionários. As instituições nunca mudam na medida em que a sociedade necessita, mesmo quando elas estão em profunda crise podem transcorrer longos períodos em que as forças de oposição não fazem mais do que servir como válvulas de escape para descomprimir o descontentamento das massas, e assim garantir a produção do regime social dominante; é o caso hoje de todo tipo de “progressismos” ou “populismos de esquerda”. Esse caráter cronicamente atrasado das ideias e das relações humanas em relação às condições em que estão imersas faz com que, quando aquelas condições desabam e as grandes maiorias irrompem no cenário político, as mudanças na subjetividade superem em poucos dias aquelas de anos de evolução pacífica.

O enfoque do Programa de Transição parte, justamente, dessa discordância de tempos entre as crises econômicas, políticas, militares e da subjetividade dos diferentes setores do movimento de massas. Daí que se estabelece uma ponte entre as demandas imediatas que surgem de um determinado estágio “atual” da mobilização e aquelas consignas que se colocam como “necessárias” para fazer frente a determinada situação de crise, de um ponto de vista anticapitalista e socialista. Do mesmo modo, aponta a estender uma ponte na organização para a articulação das forças políticas e sociais capazes de alcançar a “realização” daquelas demandas.

O objetivo destas linhas é estabelecer certas coordenadas de alguns debates acerca do Programa de Transição. Escrito por Leon Trótski em 1938 ante o Congresso de fundação da IV Internacional, não é um texto teórico em que se aborda de maneira sistematizada a questão do programa no marxismo, porém, tampouco é somente um programa como, por exemplo, o de Erfurt, adotado pela social-democracia alemã em 1891. Ao mesmo tempo em que apresenta uma série de consignas e desenvolve uma fundamentação e explicação delas, o texto do Programa de Transição está dedicado em boa parte a explicitar seus objetivos práticos para contribuir à emergência hegemônica da classe trabalhadora. O texto se encontra atravessado por polêmicas políticas e teóricas que são resultado de um balanço da experiência anterior da luta do movimento revolucionário que excede amplamente as necessidades do momento, e explicita um determinado enfoque sobre como elaborar um programa. Entre essas polêmicas, aborda o debate sobre a divisão entre o programa “mínimo” e o “máximo”, polemiza contra as tendências “oportunistas” e “sectárias”, realiza uma série de considerações sobre as premissas para a revolução socialista e o problema da direção da classe trabalhadora, entre outros temas.

Seu objetivo principal, explicitado no próprio texto, é vincular na agitação política, na propaganda, na organização e – na medida em que a situação o permita – na própria ação de setores de massas as lutas imediatas dos trabalhadores e setores populares com a perspectiva de um governo dos trabalhadores e do socialismo. Nas palavras de Trótski: "partindo das atuais condições e da consciência de amplas camadas da classe operária e conduzindo a apenas uma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado [1] . Trata-se de proporcionar "uma ajuda para as massas superarem as ideias, métodos e formas herdadas, e para se adaptarem às exigências da situação objetiva". Dentro desta perspectiva, Trótski afirma em suas discussões com os membros do Socialist Workers Party que: "não podemos prever e receitar as reivindicações locais e sindicais adaptadas à situação local de uma fábrica, nem o desenvolvimento a partir desta reivindicação até a consigna da criação de um soviete operário. Esses são pontos extremos do desenvolvimento do nosso programa de transição para encontrar os laços e conduzir as massas até a ideia da conquista revolucionária do poder. Nesse sentido, agrega que: “algumas reivindicações parecem muito oportunistas, porque estão adaptadas à consciência atual dos trabalhadores [...], outras reivindicações parecem demasiado revolucionárias, porque refletem mais a situação objetiva do que a consciência dos operários" [2] .

De conjunto, o que se propõe é a articulação de toda uma série de reivindicações – muitas delas correspondentes a programas levantados pelo movimento operário ao longo de sua história – no que ele denomina como um “sistema de reivindicações transitórias”. O ponto de partida são as demandas mais simples, mínimas, tanto e quando “conservem sua força vital”, isto é, impulsionem à mobilização e levem à luta contra os capitalistas. É a “luta séria” por essas demandas que constitui a base para a articulação transicional, onde o adjetivo “sério” se refere à determinação de conquistar aquelas demandas efetivamente, enfrentando tanto a oposição dos capitalistas e de seus agentes, como as tentativas de esvaziá-las de conteúdo para que possam ser assimiladas de algum modo à hegemonia burguesa. Essas demandas “mínimas”, em si mesmas, não são incompatíveis com a propriedade privada burguesa (por exemplo, redução da jornada de trabalho, aumento de salários, direitos trabalhistas, previdência, saúde, educação, entre muitas outras). Também cumprem um papel fundamental as consignas democráticas, que incluem muitas daquelas levantadas durante as revoluções burguesas, desde as questões democráticas que dizem respeito aos direitos políticos e civis no sentido amplo do termo até aquelas “democrático-estruturais”, que, nos países oprimidos, têm a ver principalmente com a independência nacional e com a questão agrária, ao que haveria que agregar na atualidade o grande peso que adquiriu o problema da terra urbana, devido ao salto na urbanização das últimas décadas.

Junto às demandas mínimas e democráticas, o programa transicional articula outros dois tipos de consignas. Por um lado, aquelas que poderíamos chamar de “organizacionais”, que dizem respeito à articulação de forças materiais para o combate na luta de classes. São aquelas que apontam à organização independente da classe trabalhadora, seja no âmbito de uma fábrica, de uma localidade ou de um país, junto a seus aliados no movimento de massas. Vão desde a indispensável intervenção nos sindicatos e o combate a todo conservadorismo ou adaptação às burocracias sindicais – e de forma similar em outros tipos de organizações de massas –, até o impulso de instituições de auto-organização (comitês de fábrica, conselhos/sovietes) e de autodefesa (piquetes de greve, milícias operárias, armamento do proletariado). Como parte dessas considerações estratégicas, assume especial importância no programa a aliança dos trabalhadores com os camponeses (assim como com os setores da pequena burguesia urbana), a problemática do anti-imperialismo e a atitude diante das guerras. O Programa de Transição contempla, por sua vez, capítulos com articulações específicas para os países atrasados, para os países fascistas e para a luta contra a burocracia stalinista na URSS daquela época.

Por último, nesta dinâmica articulação estratégica, cumprem um papel fundamental as reivindicações chamadas “transitórias” ou “transicionais”, e nelas queremos nos deter especialmente, já que constituem uma das novidades principais do ponto de vista da formulação do programa socialista. As consignas transicionais são aquelas que buscam dar uma resposta estrutural e de fundo frente aos padecimentos que o capitalismo impõe, sem deter-se ante o umbral da propriedade privada e da institucionalidade da sociedade burguesa. Porém, este único elemento não esgota o adjetivo “transicional”, mas é nele que se inscreve uma intenção pedagógica que busca simplificar um conjunto de questões complexas que implicariam uma reorganização completa da sociedade sobre novas bases. Nesse sentido, se bem a consciência do trabalhador médio não determina o conteúdo do programa – que se depreende das contradições estruturais que atravessam a sociedade capitalista em determinado momento histórico –, ela sim determina sua formulação e inclusive sua articulação discursiva.

O primeiro bloco de consignas transacionais expostas no Programa de Transição se intitula “Escala móvel de salários e escala móvel de horas de trabalho”, em referência à atualização automática dos salários de acordo com a inflação e a divisão das horas de trabalho entre todas as mãos disponíveis. A reivindicação que está por detrás de ambas é “o direito ao trabalho e a uma existência digna para todos”. Por um lado, a “escala móvel de salários” está associada à necessidade de que os contratos coletivos de trabalho assegurem o aumento automático dos salários em correlação com o aumento dos artigos de consumo, e se contrapõe às duas políticas monetárias da burguesia – especialmente penosas para os trabalhadores em momentos de crise: as inflacionárias e as de “estabilização” monetária, deflacionárias e recessivas. Por outro lado, a “escala móvel de horas de trabalho” aponta a acabar com o desemprego, não somente conjuntural, mas estrutural, e evitar a degradação da classe operária. Consiste em que o trabalho disponível seja repartido entre todos os trabalhadores existentes e que, com base nessa repartição, seja definida a duração da jornada de trabalho à custa dos lucros capitalistas.

Esse é um aspecto que diz respeito a seu caráter “transicional”, porém não é o único. Trótski, na hora de explicá-lo aos dirigentes do SWP, assinala que é, “na realidade, o sistema de trabalho na sociedade socialista. O número de operários, dividido pelo número total de horas de trabalho”. E agrega: “Porém, se apresentamos todo o sistema socialista, aparecerá como utópico ao norte-americano médio […]. Nós o apresentamos como uma solução para a crise, para assegurar o seu direito a comer, beber e viver em moradias dignas. É o programa do socialismo, mas numa forma popular e simples” [3]. Nesse sentido, a articulação discursiva do programa se apresenta como um problema de primeira ordem que se relaciona com o núcleo da função pedagógica que o método transicional pretende cumprir, aproximando o programa socialista o máximo possível do trabalhador médio, mas sem deixar de dar conta das contradições colocadas pela sociedade capitalista, contra as quais o movimento operário se enfrenta e cuja solução “de fundo” excede amplamente o programa mínimo. Porém, não é somente um problema discursivo, mas sim a busca de uma via para unificar a uma classe trabalhadora dividida. Uma demanda como a divisão das horas de trabalho está ligada no Programa de Transição a que os sindicatos e demais organizações de massas lutem por unir os empregados com os desempregados estabelecendo compromissos mútuos de solidariedade.

Essa conjunção de aspectos “transicionais” também podemos ver no segundo bloco de consignas transicionais, que leva por título “O ‘segredo comercial’ e o controle operário sobre a indústria”. Nesse caso, o programa questiona os discursos capitalistas sobre a “competição” e a “liberdade de comércio” e põe em primeiro plano, como problema estrutural, o “secretismo” que caracteriza a atividade comercial, industrial e financeira, que, combinado com o alto nível de concentração de capitais, possibilita o “complô do capital monopolista sobre a sociedade”. Estabelecendo um vínculo com a questão democrática, caracteriza esse regime como “absolutismo dos ‘patrões por direito divino’”. Diante da impotência dos governos de colaboração de classes que dizem querer limitar o poder dos capitalistas sem êxito (uma autojustificação bastante na moda na atualidade, por certo), o Programa de Transição defende que isso é impossível sem a abolição do secretismo capitalista, que desde aquele período até os dias de hoje passou por uma enorme sofisticação por detrás dos balanços públicos com o desenvolvimento da engenharia societária legal (e semilegal), os chamados “paraísos fiscais” e a complexificação dos instrumentos financeiros.

Em estreito vínculo com isso, defende a luta pelo “controle operário”, cuja primeira tarefa seria – começando pela empresa individual e ampliando-se para além dela – desmascarar os acordos secretos e as farsas das corporações e dos bancos, para mostrar o desperdício e a arbitrariedade produtiva que o capitalismo impõe em prol do lucro. Chegando até a ocupação e a gestão operária direta das empresas privadas que fechem, convertendo-as em empresas de serviços públicos. O “controle operário” coloca o questionamento do mando capitalista no interior das empresas e ao mesmo tempo busca introduzir a ideia de planificação racional dos recursos. Trata-se de duas noções fundamentais para um sistema de organização socialista da produção, porém buscando apresentá-las de tal forma que possam se vincular a experiências mais próximas das e dos trabalhadores, como o despotismo patronal, os privilégios e a arbitrariedade na organização capitalista da produção e da apropriação de seus frutos. Por sua vez, o “controle operário” aparece associado ao desenvolvimento de comitês de fábrica e empresa, assim como a perspectiva de coordenação desses comitês a nível local, regional e nacional, vinculando-se assim ao problema estratégico da própria organização da classe trabalhadora.

Em um terceiro bloco, sob o título “A expropriação de certos grupos capitalistas”, coloca que o programa socialista de derrubada política da burguesia e liquidação de sua dominação econômica não pode se converter em obstáculo para defender com anterioridade (não somente como propaganda, mas como agitação) a expropriação de determinados setores e grupos estratégicos da economia. No texto do Programa de Transição isso aparece exemplificado da seguinte forma: “contra as pregações queixosas dos senhores democratas sobre a ditadura das ‘60’ famílias nos EUA ou das ‘200’ famílias na França, nós opomos a reivindicação da expropriação desses 60 ou 200 senhores feudais do capitalismo”. [4] E estabelece logo na sequência uma série de diferenciações com as demandas de “nacionalização” em chave reformista (rechaço às indenizações, chamado a que as massas contem somente com as suas forças, ligar essas demandas à questão do poder operário e camponês etc.). Partindo de que só um ascenso revolucionário pode botar na ordem do dia a expropriação geral da burguesia, o objetivo transicional daquelas consignas – apontado de forma explícita no programa – é preparar o proletariado para resolver aquele problema.

Um quarto bloco do programa está dedicado à “expropriação dos bancos privados e estatização do sistema de crédito”. Partindo de que o imperialismo implica a dominação do capital financeiro e do papel que os bancos concentram na direção da economia, o Programa de Transição assinala que com os bancos nas mãos dos capitalistas não é possível dar nenhum passo sério contra o despotismo das corporações. A conclusão é que somente a expropriação dos bancos privados e a concentração de todo o sistema de investimento e de crédito nas mãos do Estado podem colocar sob o controle deste os meios materiais para uma planificação da economia. Essa consigna aparece ligada à possibilidade de que os camponeses, artesãos e pequenos comerciantes possam aderir de forma privilegiada ao crédito barato, e a fortalecer o aparato produtivo e de transportes em benefício dos trabalhadores. No programa se adverte que essa medida “só dará resultados favoráveis se o próprio poder estatal passar […] para as mãos dos trabalhadores”. Nesse bloco programático, novamente se apresenta o problema estrutural e a resolução que se depreende dele, junto com o objetivo explícito de contribuir à preparação política da classe trabalhadora.

A partir desse breve repasse por algumas das consignas transacionais, podemos entender melhor o significado daquela apontamento de Trótski sobre apresentar o programa socialista de forma popular e simples como “solução” frente a uma crise concreta e vinculado aos padecimentos que esta impõe às maiorias. Sob essa premissa é que se vincula uma dimensão estrutural do programa, que dá conta das contradições chaves do capitalismo em uma etapa determinada, com uma dimensão pedagógica – com a intenção de apresentar o programa socialista de forma simples e ligado à experiência das massas – e uma dimensão estratégica que aponta à articulação dos diferentes setores da classe trabalhadora e seus aliados.

Interpretações da metodologia transicional

Essa especificidade das consignas transicionais, que diz respeito à novidade do Programa de Transição, foi pouco valorizada nas interpretações posteriores. Nos anos 1970 e 1980, Nahuel Moreno elaborou uma das abordagens mais claras quanto ao caráter acessório dessas consignas do ponto de vista do enfoque transicional. Sua tese partia de distinguir entre os diferentes tipos de consignas, como as mínimas, as democráticas e as transicionais [5] , no entanto, ele afirmava que: “por cima do esquema classificatório, qualquer consigna pode adquirir um caráter ‘transitório’ no sentido de ser a ponte para a revolução socialista, se ela se transforma em bandeira da mobilização revolucionária” [6]. Dessa forma, na realidade, ele invertia a colocação de Trótski. Onde este último dizia que qualquer reivindicação séria tendia a ultrapassar os limites da propriedade privada e do Estado burguês e que, portanto, era necessário ligar as consignas mínimas às transicionais, Moreno afirmava que qualquer consigna mínima ou democrática, se serve para impulsionar uma luta séria, pode adquirir um “caráter transitório”. Ou seja, tomar na prática o lugar das consignas transicionais. Para o caso da Argentina pós-ditadura militar, ele põe como exemplo a consigna democrática de “julgamento e punição aos responsáveis” como possível ponte para a revolução.

Esta colocação de Moreno, que tendia a tornar supérfluas na prática as consignas transicionais propriamente ditas, era apresentado em termos de técnica de agitação: “uma, duas ou três tarefas essenciais para o movimento de massas, que concretizamos em consigna. Este é o aspecto concreto de nossa político, por isso é o fundamental” [7] . Dessa forma o conteúdo próprio do programa transicional passava a segundo plano, sempre que determinada demanda imediata pudesse concentrar em si o conjunto das demandas insatisfeitas capazes de impulsionar a mobilização. Neste esquema, o tipo de força e identidade política emergente aparece, em boa medida, indeterminado. Isso porque Moreno considerava que devido às condições de decadência do capitalismo toda revolução já era por si mesma “inconscientemente socialista”, e nesse sentido afirmava que “não é obrigatório que seja a classe operária e um partido marxista revolucionário que dirijam o processo da revolução democrática à revolução socialista...” [8].

Outra interpretação foi a realizada na mesma época por Ernest Mandel. Diferentemente de Moreno, ressalta o papel das consignas transicionais em si. Sua posição é que: “as lutas mais massivas por demandas imediatas não engendram necessariamente uma consciência anticapitalista. São necessárias lutas por objetivos transitórios […] para permitir que a consciência de classe dê um salto qualitativo para a frente” [9] . Dentro desta abordagem, Mandel pensava a função principal do Programa de Transição vinculada especialmente à “vanguarda”, à qual, afirmava, ele estava especialmente dirigido. O conceito de “vanguarda” aparece definido como tal com independência da estratégia, isto é, sem determinar a vanguarda de qual estratégia. De fato, em seu folheto Em defesa do leninismo. Em defesa da IV Internacional [10], polemiza com setores do trotskismo como o SWP e o próprio Moreno, argumentando que o rechaço destes a confluir com a guerrilha no mundo semicolonial se devia a uma interpretação equivocada do Programa de Transição, que os impedia de confluir com a vanguarda. O fundamento era sumamente genérico e consistia em que: “só através de iniciativas organizadas em ação se pode fazer uma contribuição real para elevar significativamente o nível de consciência de classe das massas mais amplas” [11].

Ainda que na abordagem de Mandel aparecia compreendida a luta pelas demandas mínimas e democráticas e sua articulação com as reivindicações transicionais [12] , ela estará cruzada por uma ideia difusa de “ação exemplar” da vanguarda muito diferente da esboçada originalmente por Trótski. Isso era parte de uma concepção mais ampla de Mandel, que caracterizava as diferentes direções stalinistas e/ou guerrilheiras (como as da Iugoslávia, China, Vietnã e Cuba) como “pragmáticos líderes revolucionários que tiveram uma prática revolucionária sem uma teoria e um programa que fossem adequados para sua própria revolução, nem sobretudo para a revolução mundial” [13] . Essa abordagem das direções do pós-guerra, em termos de insuficiências, levava a identificá-las como “vanguarda” para além de seus programas e estratégias. Nessa contradição, o Programa de Transição parecia estar chamado a operar meramente para suprir, corrigir, aquelas insuficiências. Assim, a importância atribuída às consignas transicionais parece anulada, do nosso ponto de vista, ao adquirir uma função muito diferente – se não diretamente contrária – à de contribuir para a constituição de uma identidade e força política hegemônica da classe trabalhadora.

Uma interpretação diferente, e quiçá a mais idealista, que se formulou sobre o Programa de Transição foi a desenvolvida por Guillermo Lora. Em sua concepção, “o programa (expressão da luta consciente ou política, da finalidade estratégica) tem primazia com relação à organização, que é, em última instância, seu fator determinante. A tal programa, tal forma de organização partidária; no entanto, esta se desenvolve conforme suas próprias leis. O programa é o conteúdo e a organização a forma que corresponde a ele” [14]. Sob esta ideia, a organização liderada por Lora, o POR (Partido Obrero Revolucionario) da Bolívia, foi convertendo o programa em uma espécie de fetiche que seria capaz por si mesmo e de maneira automática de dar uma adequada tática e organização revolucionárias [15] . Esta concepção, onde o partido “é” o programa, finalmente transcendeu o próprio POR e pode ser reconhecida, com variantes, em outras correntes [16].

Na realidade, a afirmação de Trótski na qual se pretendia referenciar esta interpretação colocava que “o partido é programa, tática e organização”. Na formulação de Lora, contudo, o programa adquire uma espécie de função performativa capaz de interpelar por si mesmo a classe trabalhadora. O vínculo entre o que se diz e o que se faz, entre os objetivos, a ação e a articulação de forças materiais para levá-los à frente fica indeterminado. Desse ângulo, é claro, não pode haver nenhuma problematização significativa, nem do conteúdo e da realização das demandas, nem da articulação de uma identidade política que surgiria, no essencial, ao ser proclamada. Fica em um plano secundário a pergunta sobre como determinadas ideias revolucionárias podem se transformar em “força material”, em uma força hegemônica de classe com influência de massas.

Evidentemente, a política rejeita o vazio, e como costuma acontecer, essas lacunas são preenchidas com práticas circunscritas aos marcos da rotina sindical e/ou eleitoral, segundo o caso e as combinações particulares que estabelece cada corrente nos fatos. Com este breve repasse, não pretendemos dar uma visão acabada dessas interpretações, mas simplesmente apontar um problema recorrente que afetou muitas das elaborações sobre o Programa de Transição em diferentes correntes do trotskismo. A saber: transformá-lo em uma espécie de fetiche por fora da estratégia, atribuindo-lhe capacidades ideais que ele não possui, quando se trata de uma ferramenta que, como tal, pode colaborar para a construção de um partido revolucionário que agrupe o melhor da vanguarda e tenha influência sobre setores de massas, e nesse sentido contribuir para a emergência da classe operária como sujeito hegemônico, porém, como qualquer ferramenta, tem de haver uma força capaz de empunhá-la.

A concepção de Lora, de que o partido é o programa, isto é, de que apropriar-se do Programa de Transição é sinônimo de “ser” um partido, é um extremo disso. Porém, o problema está presente também em interpretações como as de Mandel e Moreno. No caso do primeiro, ao pretender que o Programa de Transição possa per se moldar “vanguardas” de qualquer tipo ou direções “pragmáticas”, sejam guerrilheiras, stalinistas, populistas etc., que em realidade são organizações – em geral burocráticas – com sua própria estratégia e programa. Ou seja, pensando que o programa pode fazer por si só algo que corresponderia a um partido com força suficiente para lutar para que a classe trabalhadora se converta em sujeito hegemônico. Algo similar poderíamos dizer da formulação de Moreno, só que em seu caso a mobilização de massas pareceria estar fadada per se a adotar um método transicional, ao levantar qualquer consigna por mais mínima que possa servir de motor da mobilização, com o potencial de desenvolver revoluções inconscientemente socialistas.

A interpretação que esboçamos aqui pretende ser uma interpretação profana. Diferentemente das que descrevemos, não somente está ligada a determinada tática e estratégia, como à batalha pela construção de um partido revolucionário, onde o adjetivo “revolucionário” não pode conferir ao substantivo “partido” uma entidade que este não tenha, e que não pode ser compensada nem por um texto programático, nem por uma vanguarda qualquer, nem pela “mobilização de massas” em geral. É uma abordagem que parte de que o sujeito hegemônico “classe operária” não está “pré-constituído”. Se algo assim existisse, dizia Trótski, “não seriam necessários nem o partido nem os sindicatos: a revolução proletária teria nascido simultaneamente com o proletariado”. E um partido socialista revolucionário, para poder se constituir como tal, deve conseguir agrupar os elementos mais conscientes e mais perspicazes da classe, sua vanguarda. Porém, esta última não existe enquanto tal no vazio, nem pode “se autoproclamar”, mas se desenvolve a partir de lutas prolongadas, de duras provas, de muitos erros e de uma ampla experiência na qual ganha a confiança de setores de massas. A compreensão do programa socialista, na abordagem transicional, está ligada à experiência de luta por ele em algum nível, seja nas organizações de massas, como os sindicatos, na luta contra a burocracia, ou na luta política com as correntes reformistas, assim como “semeando ideias”, forjando tradições de luta.

Em termos gerais, tudo isso se emoldura numa disputa mais ou menos permanente – que nos momentos de auge da luta de classes adquire um caráter determinante – para evitar a assimilação – e subsequente esvaziamento – das demandas da classe trabalhadora e de seus potenciais aliados dentro de alguma variante da hegemonia burguesa, contracara da batalha pela constituição da classe trabalhadora como sujeito hegemônico capaz de articular em torno de si as esperanças e expectativas da maioria dos oprimidos. É neste cenário que o método transicional constitui uma ferramenta na disputa para reconfigurar o espaço político em termos de classe, condição indispensável para a conquista do poder pela classe trabalhadora.

Programa e estratégia

Como vemos, aquela ideia de que as consignas transicionais podem ser uma via para popularizar o programa, apresentando as medidas para reconfigurar a sociedade sobre bases socialistas, articuladas como resposta a uma crise capitalista concreta e aos padecimentos que ela acarreta sobre as maiorias, não ocupou um lugar central nas interpretações posteriores do Programa de Transição. O divórcio entre “programa” e “estratégia”, entre o conteúdo e realização das demandas e a constituição de uma força e identidade política hegemônica da classe trabalhadora, foi chave nesse sentido. Entretanto, esse vínculo foi determinante na elaboração programática do Programa de Transição, e para além dele, no marxismo desde suas origens. Trata-se de desenvolvimentos que é preciso recolocar para abordar os fundamentos desta problemática.

O método transicional utilizado por Trótski, como apontamos, busca estabelecer uma ponte entre a luta imediata pelas demandas mínimas e democráticas e a luta pelo poder da classe trabalhadora; as consignas transicionais cumprem um papel fundamental nesta tarefa. Desse modo, aponta a terminar com a velha divisão em compartimentos estanques entre aquilo que no jargão da II Internacional se denominava “programa mínimo” (consignas que por si mesmas não questionam a propriedade capitalista) e “programa máximo”, referido à revolução socialista. Aquela divisão é indissociável da própria trajetória da II Internacional, que terminaria relegando o “programa máximo” a um futuro indeterminado, aos atos de 1° de Maio e à propaganda, enquanto a prática e a agitação cotidiana acabariam se circunscrevendo ao “programa mínimo” limitado a uma série de reformas nos marcos estabelecidos pelo regime capitalista  [17].

Há aqueles que defendem que é um erro agitar consignas transitórias e pretender que estas consignas contribuam à mobilização [18]. Fazê-lo seria, dito de modo coloquial, algo como botar o carro na frente dos bois, porque as consignas transicionais se identificariam com o “programa máximo”, e só poderiam ser utilizadas para a agitação quando as condições para tomar o poder estejam dadas, do contrário se estaria exigindo medidas socialistas ao Estado capitalista. Sobre esta base, seria necessário se manter firme na divisão entre o programa “mínimo” para impulsionar a mobilização, e o “máximo” para a propaganda até que haja condições para uma revolução.

Muito bem, o certo é que como condição necessária para triunfar, a classe trabalhadora deve articular um poder capaz de “substituir” o aparato estatal burguês. Isto é, não se trata simplesmente de “tomar posse” deste último para aplicar um “programa de governo socialista” (“programa máximo”). Por isso todo programa que se limite a apontar as medidas de um futuro governo operário “depois do triunfo da revolução proletária”, ao passo que para a luta cotidiana (econômica e política) recomende apenas consignas mínimas, é um programa inútil na prática, ao menos do ponto de vista revolucionário. Tampouco serve um programa dedicado meramente a “instruir” a vanguarda nos objetivos da revolução, se não estiver orientado ao mesmo tempo a interpelar de algum modo o movimento de massas, isto é, a quem deveria protagonizar a revolução e impulsionar seus próprios organismos de auto-organização. A grande questão relegada por todas as visões que dividem – implícita ou explicitamente – entre programa mínimo e máximo é que, para tomar o poder, é necessário desenvolver um poder alternativo que o substitua, o qual não surge ex nihilo.

Tanto é assim que Trótski apontava que “todo o programa de transição deve preencher os espaços entre as condições atuais e os sovietes do futuro” [19] . Em nossa interpretação, quando o Programa de Transição levanta uma ponte que “partindo das condições atuais e da consciência atual de amplas camadas da classe operária deve levar a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”, não está afirmando que subitamente a classe operária chega à conclusão da tomada do poder e sua conquista, mas sim de que todo o programa está orientado para, através da experiência, da propaganda, da organização, colaborar para gerar as condições para “preencher os espaços” – para que isso seja possível.

Daí a importância que têm no Programa de Transição as consignas que apontam à organização independente da classe operária, começando pelo combate contra a burocracia no interior dos sindicatos, e o impulso, segundo as variadas circunstâncias, de comitês de fábrica, sovietes, piquetes de greve, milícias operárias. Em contraste com isso, a separação axiomática entre o programa mínimo e as consignas transicionais tem implicações diretas quanto à adaptação à rotina sindical e eleitoral e, por essa via, às burocracias sindicais ou direções reformistas. Da soma de programas mínimos não surge a hegemonia da classe trabalhadora, mais ainda num cenário como o atual, marcado pela fragmentação do movimento operário e de massas, onde as burocracias sindicais servem de garantidoras da fratura da classe trabalhadora (formais, precários, desempregados etc.) e se desenvolveram burocracias dos “movimentos sociais”.

Consignas transicionais e dinâmica da relação de forças

O Programa de Transição ganha especial vigência em situações pré-revolucionárias, porém contém palavras de ordem transicionais de utilidade para a “agitação propagandística” (isto é, propaganda não só para a vanguarda mas para setores de massas) inclusive em situações defensivas, desde que entendamos a defesa não como “defesa passiva”. Por sua vez, se bem exista uma preparação imediata da passagem da defensiva para a ofensiva – passagem que é um tema central do Programa de Transição –, também há uma preparação mais ampla, para a qual esse programa também busca contribuir, que surge de “semear” determinadas ideias, instituir determinadas “tradições” de luta e organização que possam se desenvolver – e precisam fazê-lo para ter êxito – com antecedência para a educação da vanguarda e, através dela, de setores de massas. Em síntese, poderíamos dizer que a problemática do Programa de Transição é a preparação das condições (quanto aos níveis de consciência e articulação material de forças) para poder passar à ofensiva.

A luta de classes como “motor da história”, às vezes, se desenvolve em ritmo lento e as mudanças devem ser buscadas a nível molecular; as situações são evolutivas, “não revolucionárias”. Outras vezes, seu ritmo é vertiginoso, o jogo de ação e reação se faz imparável e surgem situações revolucionárias, e também contrarrevolucionárias. Porém, entre ambas as velocidades há todo um degradê das situações híbridas, nas quais as tendências não se encontram ainda claramente diferenciadas.

A passagem da defensiva à ofensiva de que trata o Programa de Transição se forja, em boa parte, nessas situações políticas ambíguas, híbridas, que já não são situações “normais”, mas ainda não são “a” revolução, ou que combinam elementos de ambas. Ou seja, o contrário de uma interpretação mecanicista que se proponha conceber a “relação de forças” como um dado fixo de um tempo homogêneo. Em um esquema desse tipo, é impossível dar conta daqueles processos de radicalização do movimento operário – ou de setores dele – que tendem a tomar em suas mãos aspectos do programa transicional.

Por exemplo, frente à enorme crise que estourou na Argentina, surgia um dos movimentos mais importantes das últimas décadas, de ocupação de fábricas, com milhares de operários tomando centenas de empresas.

O enfoque transicional, justamente, busca estender pontes entre lutas como aquela “para preservar os postos de trabalho” e consignas como a ocupação e gestão operária das fábricas. Em um dos exemplos daquele processo, que teve transcendência internacional como a fábrica Zanon (atual FaSinPat), pudemos ver como a luta contra as demissões que levou à ocupação – que incluiu sua defesa perante as tentativas da patronal de retomá-la – desenvolveu-se em paralelo ao processo de recuperação do sindicato ceramista da província de Neuquén, o qual por sua vez foi impulsionador da “coordenação do Alto Valle” junto com organizações de desempregados, comissão internas, agrupações antiburocráticas de docentes, funcionários estatais, da saúde e da construção, às quais se somaram organizações estudantis e de esquerda. Os trabalhadores de Zanon também viriam a impulsionar nacionalmente os “Encontros de Fábricas Ocupadas” junto com a têxtil Brukman e outras fábricas [20] . Trata-se de valiosos exemplos de como em determinadas situações aquelas “pontes” das quais fala o Programa de Transição colocam-se em movimento. Em 2003 então aconteceria a retomada econômica na Argentina, dinamizada pelo boom das matérias-primas, o que mudaria o signo da situação. Porém, todo aquele processo deixou assentada uma tradição que segue presente na Argentina e que se reatualiza diante de cada crise.

Outro exemplo que podemos mencionar é a luta em torno da escala móvel de salários, que atravessou a década do “longo 1968 italiano”, um dos processos de ascenso operário mais importantes dos anos 1960-1970. A luta pela escala móvel foi um ponto chave nos choques entre a classe trabalhadora e a patronal durante todo um período de aguda luta de classes, cuja derrota fez emergir a “reestruturação” neoliberal do capitalismo italiano. O conflito em torno dela nos anos 1970 era tanto uma luta em defesa dos salários frente à inflação, como para reduzir as brechas salariais entre as diferentes faixas da classe operária, que afetavam especialmente os novos setores jovens, provenientes em grande medida do sul do país – uma primeira “escala móvel” havia sido conquistada na saída da Segunda Guerra Mundial, porém, com cláusulas que a limitavam e fomentavam as diferenças segundo qualificação, sexo e idade. A disparada dos preços a partir da crise de 1973 fez daquelas diferenças um fator determinante, afundando os salários dos setores mais explorados. Foram anos de enormes lutas que incluíram desde a sabotagem, formas de guerra de guerrilhas no interior das fábricas, o recurso ao absenteísmo generalizado, bloqueios da produção, greves selvagens, choques com os fascistas etc. Como parte desse processo, as patronais tiveram que aceitar em 1975 a reivindicação dos trabalhadores de uma escala móvel de salários integral, que protegesse os salários dos setores mais baixos [21] . Foi a partir de 1978 que se produziu a contraofensiva patronal que se prolongou até que a “escala móvel” fosse liquidada já nos anos 1980, depois das derrotas da resistência dos trabalhadores – que incluiu, por exemplo, a greve geral pela “escala móvel” de meados de 1982 e uma onda espontânea de greves.

De um ponto de vista normativista, que separa as consignas transitórias da luta pelas necessidades imediatas, um processo como este tampouco expressaria “realmente” a batalha pelas consignas transicionais. Pois bem, nos anos 1970 os trabalhadores italianos tomaram essa consigna muito a sério. A burocracia sindical nem tanto; assim, depois dos acordos com a patronal de meados dos anos 1970, deu aos empresários tempo para reagruparem-se e se defenderem agitando que a inflação era fruto da nova escala móvel. O Partido Comunista, sob a política do “compromisso histórico”, fez eco dos argumentos sobre a responsabilidade dos trabalhadores para não travar o rumo da economia. O problema da possibilidade ou impossibilidade das consignas transicionais separado da dinâmica da relação de forças derivada da luta de classes leva a um critério econômico puramente estático, atado ao quadro do funcionamento “normal” do capitalismo.

Casos como o processo de ocupação e colocação de fábricas para produzir por seus trabalhadores em 2001 na Argentina ou o processo da luta pela escala móvel de salários no ascenso operário dos 1970 na Itália mostram que determinadas consignas transicionais são tomadas em suas mãos por setores do movimento operário quando este se radicaliza, e que inclusive podem ser conquistadas – ainda que seja parcialmente – a partir de impor uma determinada relação de forças. Daí que Trótski afirme que em momentos de radicalização a “possibilidade” ou “impossibilidade” de materializar determinadas consignas depende da relação de forças e é uma questão que só pode ser resolvida com a luta. Claro que o que entra em jogo aqui, do ponto de vista do desenvolvimento desses processos, são situações concretas: a ação da burocracia, da burguesia e do Estado, a luta política – e física –, a preparação ou não de um partido revolucionário, a existência ou não de determinadas “tradições” de luta e de organização etc.; em síntese, toda a luta de classes real.

Mas não se trata apenas de uma discussão histórica. Na atualidade, por exemplo, uma palavra de ordem transicional como a “divisão das horas de trabalho e escala móvel de salários” adquire renovada vigência diante da pulverização na prática da conquista da jornada de 8 horas, o aumento do desemprego e o crescimento exponencial da precarização do trabalho.

Em comparação com o movimento operário que em seu momento protagonizou a nível internacional inumeráveis combates para impor a jornada de 8 horas, hoje a classe trabalhadora se expandiu enormemente a nível mundial, mas também se encontra profundamente fragmentada entre trabalhadores “formais”, um exército de “precarizados” e desempregados que ficam à mercê da assistência estatal. É claro que um movimento histórico com a força para impor a redução da jornada laboral para 6 horas deveria unir toda essa força social que o capitalismo e as diferentes burocracias dividem [22]. Aqui é onde a barreira entre a luta pelo programa mínimo e o transicional se torna muito mais difusa e sobretudo problemática do ponto de vista da articulação de forças. Por que alguém desempregado, precário ou “informal” se veria interpelado a lutar pela redução da jornada de trabalho a 6 horas desconectada da perspectiva de acabar com o desemprego e a precarização? Se nos conformássemos com a separação entre o programa “mínimo” e “máximo”, para agitar uma consigna como a “divisão das horas de trabalho e escala móvel de salários” deveríamos esperar que a classe trabalhadora esteja no poder ou perto de tomá-lo. O que deveria ser um objetivo da luta se transformaria assim em uma pré-condição.

A articulação de consignas está estreitamente ligada à articulação de forças. Originalmente, no Programa de Transição, com a defesa da divisão das horas de trabalho frente às consequências do crack de 1929, a agitação daquela consigna buscava um diálogo para avançar na unificação da luta dos trabalhadores empregados com os desempregados. Daí também a importância de levá-la para a discussão nos sindicatos. Ao mesmo tempo em que, como parte dos sindicatos, se participava da luta pelas demandas mínimas, o objetivo era impulsionar a articulação de um setor o mais amplo possível que levante a “escala móvel de horas de trabalho” para confluir com os desempregados, lutando contra a burocracia sindical que pretendia dividir ambos os setores da classe operária. Trótski considerava que aquela disputa política representava também uma oportunidade para semear novas ideias, não só da necessidade de um governo dos trabalhadores, mas também da perspectiva comunista, de que os avanços da ciência, da técnica e da cooperação do trabalho, arrancados do domínio do capital, permitiriam produzir o mesmo em menos tempo, e que isso se traduzisse na utilização de cada vez menos energias para subsistir e em conquistar tempo livre, e poder assim despertar a criatividade, a produtividade e as capacidades humanas.

Em síntese, podemos dizer que o enfoque transicional, longe de esperar que a História com letra maiúscula “coloque de pé” a classe trabalhadora, busca contribuir ativamente em seu desenvolvimento como sujeito hegemônico, “semeando” determinadas ideias, instituindo determinadas “tradições” de luta e organização na vanguarda e, através dela, em setores de massas, e articular as forças necessárias para preparar a passagem da defensiva para a ofensiva quando a situação o permita.

O enfoque transicional e a configuração do cenário político em termos de classe

Onde mais claramente se pode estudar em estado prático é na ação dos bolcheviques durante a Revolução Russa entre fevereiro e outubro de 1917, que permitiu a eles conquistar uma maioria para o programa revolucionário. Sobre essa base terão lugar desenvolvimentos posteriores da III Internacional – em particular para os países “ocidentais” – que Trótski mais tarde sistematizaria no Programa de Transição. Para identificar aquilo que em nossa interpretação constitui o núcleo da problemática inscrita na metodologia transicional, com fins ilustrativos, nos permitimos analisar a consigna central da Revolução Russa, “paz, pão e terra”, a partir de três autores que propõem interpretações muito diversas: Ernesto Laclau, Nahuel Moreno e Rolando Astarita.

As situações revolucionárias se caracterizam, entre outras questões, pela divisão das classes dominantes ante a impossibilidade de seguir dominando nos mesmos termos. Essa divisão, mais cedo ou mais tarde, chega às classes intermediárias (urbanas e/ou rurais) e à própria classe trabalhadora com expressões diversas. Que ao início dos processos revolucionários a dicotomização do espaço político não se estabeleça seguindo linhas de classe propriamente ditas não diz respeito a um caráter contingente das próprias classes, mas sim da fortaleza relativa que possuem nesse momento as diferentes lideranças e organizações políticas pré-existentes; uma equação que em geral começa favorecendo aquelas que respondem, de forma direta ou indireta, às classes dominantes.

É nesse tipo de cenário que se dá, já não a preparação, mas a própria batalha pela emergência da classe trabalhadora como sujeito hegemônico. Em sua História da Revolução Russa, Trótski define esse momento nos seguintes termos: "não há nenhuma classe histórica que passe da situação de subordinada à de dominadora subitamente, da noite pro dia, ainda que essa noite seja a da revolução. É necessário que já na véspera ela ocupe uma situação de extraordinária independência com relação à classe oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que se concentrem nela as esperanças das classes e das camadas intermediárias" [23] . É nesse marco que se coloca o problema fundamental de como reconfigurar em termos de classe aquela dicotomia do espaço político que emerge originalmente “ordenada” segundo a divisão das próprias classes dominantes. Tomemos o exemplo de 1917 e da consigna de “paz, pão e terra”.

Na hora de explicar o papel daquela consigna, Laclau aponta que "...todos os antagonismos da sociedade russa se condensam em uma unidade disruptiva ao redor das demandas de ’pão, paz e terra’". O momento de vacuidade é aqui decisivo: sem termos vazios como “justiça”, “liberdade” etc., investidos dentro das três demandas, estas teriam permanecido encerradas dentro do seu particularismo; porém, devido ao caráter radical dessa investidura, algo da vacuidade da “justiça” e da “liberdade” foi transmitida às demandas, que se converteram então nos nomes de uma universalidade que transcende seus conteúdos particulares reais” [24] .

A partir dessas considerações, nosso autor centra seu olhar na função simbólica por fora de seu conteúdo particular, não porque não o reconheça, mas sim porque não lhe interessa problematizá-lo. “A esta altura – diz ele – deveria estar claro por que estamos falando de ‘vacuidade’ e não de ‘abstração’: paz, pão e terra não são o denominador comum conceitual de todas as demandas sociais russas em 1917. Como em todos os processos de sobredeterminação, mazelas que não tinham nada a ver com essas três demandas se expressavam, no entanto, através delas” [25].

Partindo de sua ótica, o conteúdo mesmo das demandas não nos diz nada de relevante sobre a construção de uma “identidade popular”. Ficam de fora da problemática as possibilidades de realização das demandas, assim como as perguntas em torno de quais condições elas são possíveis e como poderiam ser efetivamente conquistadas. Evidentemente, estas últimas perguntas são chave para o marxismo para pensar a articulação das demandas e, em torno delas, a articulação de uma força revolucionária. O que não implica uma aproximação mecânica ao problema, que ignorasse a dimensão simbólica no que diz respeito à capacidade de demandas como “paz, pão e terra” de transcender seus conteúdos particulares para expressar, condensar nelas mesmas, o conjunto das mazelas que levam a uma revolução. Para problematizar esta questão, introduzamos as leituras realizadas por Nahuel Moreno e Rolando Astarita desse mesmo problema.

Segundo Astarita, “as consignas paz, pão e terra (divisão da terra) e Assembleia Constituinte, efetivamente não eram ‘comunismo’, mas tampouco foram demandas transicionais, e sim mínimas. Tenhamos presente que o programa mínimo [segundo Lênin] ‘é um programa que, por seus princípios, é compatível com o capitalismo e não ultrapassa seu quadro’ […]. É claro que a paz, a terra para os camponeses, o pão e a AC, ‘por seus princípios’, eram compatíveis com o capitalismo. Em troca, as consignas transicionais são intrinsecamente contraditórias com o sistema capitalista” [26].

No entanto, numa aproximação deste tipo, a pergunta que sobrevém é: por que, se as consignas de “paz, pão e terra” eram tão compatíveis com o capitalismo e não ultrapassavam seu quadro, elas deram lugar a uma revolução que pôs de pé o primeiro Estado operário da história?

No caso de Moreno, temos uma interpretação oposta. Ele assinala que: “qualquer consigna pode adquirir um caráter ‘transitório’ no sentido de ser a ponte para a revolução socialista, se se transforma em bandeira da mobilização revolucionária. A classe operária tomou o poder na Rússia, acaudilhando as massas de milhões de camponeses, com três consignas ultramínimas ou democráticas: ‘paz, pão e terra’, porque a única forma de conquistá-las […] era varrer a burguesia do poder, a tomada do poder pelos trabalhadores, e varrer o Estado burguês e os capitalistas” [27] .

Se bem coincidamos na última parte de sua afirmação, que trata de fato de uma constatação empírica, a conclusão que Moreno extrai acerca de que “qualquer consigna pode adquirir um caráter ‘transitório’” levaria inevitavelmente à pergunta de para que então precisaríamos de consignas transitórias. Ou, dito mais concretamente, em seu esquema bastaria a utilização de consignas mínimas que tenham “força vital”.

Em síntese, poderíamos dizer que Laclau enfatiza a “vacuidade” da demanda de “paz, pão e terra”, e em como ela se converteu no nome de uma universalidade que transcendeu seus conteúdos particulares reais; para isso, evita se deter em seu significado na situação concreta, e menos ainda nas condições para a realização (histórica) dessa demanda. Diferentemente de Laclau, tanto Moreno como Astarita colocam o centro no problema de se a consigna de “paz, pão e terra” podia ou não se realizar sob o capitalismo, e dão respostas opostas. Astarita responde que sim, o que contradiz a própria experiência histórica da Revolução Russa. Moreno afirma que a Revolução de 1917 mostrou que não é possível a sua realização sob o capitalismo, porém generaliza tal fato para tirar a conclusão de que então as consignas mínimas podem assumir o lugar das transicionais.

O certo é que tanto a concepção de Astarita como a de Moreno parecem partir de uma relação mais ou menos transparente entre o significante “paz, pão e terra” e o seu significado. Assumindo a literalidade da consigna como um fato, dão de barato aquele momento que condensa a chave da luta político-programática travada pelos bolcheviques na Revolução Russa, a saber: a luta por seu significado. Nesse sentido, não é supérfluo o exercício que faz Laclau de problematizar este aspecto e pô-lo no terreno das “operações hegemônicas”, ainda que é claro que, no seu caso, isso seja feito sempre sob o axioma da total abstração das classes sociais, das relações sociais de produção, da luta de classes e do Estado.

Teoricamente, como afirma Astarita, “paz, pão e terra” em sua literalidade poderia ser uma consigna “realizável” sob o capitalismo. Porém, historicamente, na situação concreta da Revolução Russa e da época imperialista, não o foram, como bem aponta Moreno. No entanto, ao contrário do que afirma este último, tampouco estava dado que as consignas de “paz, pão e terra” fossem levar necessariamente à luta pelo poder pela classe trabalhadora. A mesma demanda era passível de adotar diversos significados. Quando Laclau chama a atenção para o caráter instável das fronteiras antagônicas e sua condição de objeto de construção hegemônica – ligada à existência de “significantes flutuantes” capazes de articular-se em distintas cadeias de significação [28] – ele está remarcando um problema que transcende os marcos de sua própria teoria. E isso é muito importante para compreender a disputa em torno da própria consigna de “paz, pão e terra” que se deu em 1917.

Os mencheviques partiam de uma concepção teórica similar à que refere Astarita, de que “paz, pão e terra” eram consignas que podiam e deviam se realizar sob o capitalismo. Sob este prisma as interpretavam. Assim, a consigna de “paz” era assimilada ao pacifismo burguês, que se colava ao discurso do Governo Provisório, segundo o qual era preciso aspirar a uma “paz democrática sem anexações” sem se enfrentar com os imperialismos aliados à Rússia. Com respeito ao problema da terra para os camponeses, subscreviam a ideia de “esperar” que uma Assembleia Constituinte a discutisse e proclamasse “legalmente”. O que na prática significava adiá-la indefinidamente, junto com a convocatória àquela Constituinte. E quanto ao “pão”, à carestia de vida, esta se esvaziava de todo significado ao sustentar que, na Rússia de 1917 arrasada pela guerra, pudesse se resolver junto a um setor da burguesia, e não contra ela, pela via da expropriação.

Para os bolcheviques, “paz, pão e terra” significava algo diametralmente oposto. Trótski, nos anos 1930, se vê obrigado a recolocar aquele significado diante do stalinismo que na França pretendia utilizar a consigna de “paz, pão e terra” – naquele momento como “paz, pão e liberdade” – esvaziando-a de conteúdo – à maneira de Laclau – para torná-la funcional à aliança com a burguesia na Frente Popular. Naquele momento, relembra o significado que aquela consigna tripla “encerrava” para os bolcheviques: “‘Pela paz!’ significava a luta contra todos os partidos patrióticos, desde os monárquicos até os mencheviques, a exigência da publicação de todos os tratados secretos, a mobilização revolucionária dos soldados contra o alto mando e a organização da confraternização no front. ‘Pela paz!’ era um desafio ao militarismo da Alemanha e da Áustria por um lado, ao da Entente por outro” [29] . A consigna de “pão” significava para os bolcheviques “a expropriação da terra e das reservas de trigo dos latifundiários e dos especuladores e o monopólio do comércio de trigo nas mãos do governo dos operários e camponeses” [30]. E, nesse sentido, impulsionar que as comunas assumissem as terras na ação, sem esperar o aval do governo provisório.

Ou seja, o significado que os bolcheviques atribuíam à consigna “paz, pão e terra” surgia de dar conta das possibilidades de realizar de maneira íntegra e efetiva aquelas demandas na situação concreta da Rússia de 1917. Porém, ao mesmo tempo que esta interpretação da consigna tenha se imposto, era algo longe de ser um fato “dado”, estabelecido automaticamente pela situação objetiva, como parece sugerir Moreno. Que “paz, pão e terra” tenha adquirido o significado que os bolcheviques lhe pretendiam dar só foi possível através de uma ampla luta política que foi marcando a experiência das massas desde fevereiro, quando primava a interpretação menchevique, até outubro, quando aquela consigna se associou na consciência da maioria do movimento de massas à necessidade de um governo operário e camponês baseado nos sovietes.

Dito isso, podemos voltar à colocação de Laclau. Para ele, a “vacuidade” do significante “paz, pão e terra” é condição para transcender o particularismo das demandas parciais e propiciar uma articulação hegemônica. Entretanto, esta colocação, apesar de pretender ser puramente descritiva, é em boa medida prescritiva. Seguindo com o exemplo russo, se assemelha ao método das tendências conciliadoras – dos mencheviques e socialistas-revolucionários [SRs] –, que consistia em transformar a demanda de “paz, pão e terra” em um significante vazio capaz de ser contido dentro do quadro de um regime burguês nascente. A questão aqui é que, se bem exista um nível no qual o empobrecimento do sentido de uma demanda capaz de aglutinar a todas as demais é inevitável, não é aí que termina o problema e sim, justamente, onde ele começa, particularmente quando estamos falando da possibilidade de reordenar o espaço político em termos de classe.

O enfoque transicional, expresso na interpretação que fizeram os bolcheviques da consigna de “paz, pão e terra”, dá conta deste último aspecto que apontamos. Nessa abordagem, não se trata de transcender o particularismo mediante a “vacuidade” do significante, e sim de desenvolver o conteúdo particular (histórico) de cada uma das demandas na situação concreta, de expor as condições para sua realização e de extrair todas as conclusões, que se depreendem disso em relação à luta contra a burguesia e seu Estado. Esse é o papel propriamente dito do programa transicional e nisso consiste a “ponte” subjetiva que ele pretende estabelecer entre as demandas imediatas do movimento de massas e aquelas que decorrem das condições objetivas em determinado momento histórico.

Ao contrário do que defendia Moreno, não se trata de que qualquer consigna mínima possa adquirir um caráter transicional e ser em si mesma uma “ponte” para a revolução socialista, mas sim de que o programa transicional enquanto “sistema de reivindicações transitórias” busca ser uma ferramenta para travar o combate pelo significado daquelas consignas motoras, como “paz, pão e terra”. A diferença entre uma colocação e a outra está longe de ser secundária; consiste, nada mais e nada menos, em dar conta ou não da luta programática, fundamental do ponto de vista revolucionário, para que o movimento de massas, através da experiência na luta de classes, em conjunto com o desenvolvimento da auto-organização e da autodefesa, chegue à conclusão da necessidade da tomada do poder.

Dessa colocação surgem várias questões. A primeira é como surgem os sovietes, como se produz determinada articulação de forças, sobre a qual colocamos alguns elementos mais acima. A segunda, na qual vamos nos deter aqui, tem a ver com outro problema importante, que geralmente se passa por alto nas aproximações mecânicas ao problema do programa. Nos referimos à dimensão simbólica que diz respeito à capacidade de determinadas consignas como “paz, pão e terra” de transcender seus conteúdos particulares para expressar, condensar nelas, o conjunto das penúrias que enfrenta uma revolução. Para problematizar essa questão, vamos analisar alguns elementos daquela consigna de “paz, pão e terra” e o seu papel na Revolução Russa.

Ao pôr o centro no problema da possibilidade de realização daquelas consignas sob o capitalismo, Astarita contradiz a própria experiência histórica da Revolução Russa. Em boa medida isso é possível porque pressupõe uma relação mais ou menos transparente entre a consigna de “paz, pão e terra” e seu significado, dando justamente por óbvio aquele momento que encerra uma chave da luta político-programática dada pelos bolcheviques na Revolução Russa, a saber: a luta pelo seu significado. Teoricamente, como diz Astarita, “paz, pão e terra” poderiam ser três consignas “realizáveis” em sua literalidade sob o capitalismo. Porém, historicamente, na situação concreta da Revolução Russa e da época imperialista não o foram. Agora, tampouco – ao contrário de interpretações como a de Nahuel Moreno – estava dito que as consignas de “paz, pão e terra” levaram necessariamente à hegemonia da classe trabalhadora: a mesma consigna podia adotar significados diversos.

Que tenha se imposto a interpretação bolchevique da consigna estava longe de ser um fato “dado”; só foi possível através de uma enorme luta política que foi marcando a experiência da massas desde Fevereiro, quando primava a interpretação menchevique, até Outubro, quando foi associada na consciência da maioria do movimento de massas à necessidade de um governo operário e camponês baseado nos sovietes. O método expresso na interpretação bolchevique da consigna de “paz, pão e terra” consiste em desenvolver o conteúdo particular (histórico) de cada uma das demandas na situação concreta, expor as condições para sua realização e extrair todas as conclusões que se depreendem disso em relação à luta contra a burguesia e seu Estado. Este é o papel do método transicional, e nisso consiste a “ponte” subjetiva da que falava Trótski entre as demandas imediatas do movimento de massas e aquelas que se depreendem das condições objetivas em determinado momento histórico.

Nesse sentido, a ação de Lênin, Trótski e dos bolcheviques em 1917 foi uma verdadeira “escola” de agitação transicional do programa – na situação particular da Rússia de então –, a qual Astarita, empenhado em contrapor a ação dos bolcheviques ao Programa de Transição, não pode encaixar em seu esquema. Vamos tomar dois exemplos ilustrativos, um que nos traz nosso autor acerca da utilização da consigna “abaixo os dez ministros capitalistas!”, e outro sobre a exigência de publicação dos tratados secretos extraída de sua “Crítica ao Programa de Transição”. Comecemos por esta última.

Astarita afirma: “o PdT [Programa de Transição] levanta “Abaixo a diplomacia secreta, que todos os tratados e acordos sejam acessíveis a cada operário e camponês’, Lênin estava contra esta consigna” [31]. Isso claramente não é assim, a questão reside em como se defendia a consigna. Lênin efetivamente afirmou, na Sétima Conferência do POSDR: “nossa política não deve consistir em exigir do governo a publicação dos tratados. Isso seria uma vã ilusão. Exigir isso a um governo de capitalistas é o mesmo que exigir a eles que desvelem suas armadilhas comerciais” [32] . Agora, em sua proposta de mandato aos deputados para o soviete, Lênin aponta: “Nosso deputado deve advogar pela imediata publicação dos vorazes tratados secretos (sobre a submissão da Pérsia, a repartição da Turquia, da Áustria e outros), concertados pelo ex-tsar Nicolau com os capitalistas da Inglaterra, França etc.” [33] .

A pergunta é: por que, ao mesmo tempo em que defendia que era uma ilusão exigir do governo a publicação dos tratados, defendia que os deputados bolcheviques nos sovietes conciliadores tinham que advogar por sua “imediata publicação”? A explicação é dada pelo próprio Lênin, e é a seguinte: “quando as massas exigem que sejam publicados esses tratados, exigência cada dia mais insistente, o ex-ministro Miliúkov e o atual ministro Tereschienko […] declaram que a publicação dos tratados significaria romper com os aliados”. E Lênin acrescenta: “o que se deduz disso? Se os tratados não podem ser publicados, neste caso é preciso ajudar os ministros capitalistas a continuar a guerra. A outra dedução é esta: como os capitalistas não podem publicar os tratados, é preciso derrubar os capitalistas” [34] . Assim ele explicava a “ponte” que a política bolchevique se propunha a estender neste ponto, para conduzir, como dizia Trótski em relação ao Programa de Transição, “a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”.

Passemos agora ao problema da tática de “governo operário”. Em uma polêmica contra o tipo de interpretação que estamos desenvolvendo aqui, Astarita dizia: “Trótski incluiu a consigna do governo operário em seu Programa de Transição. Maiello repete que é uma consigna transicional. Porém não tem nada de transicional. Já houve muitos governos operários (de partidos social-democratas ou comunistas, de sindicalistas) que conciliaram com o capitalismo, conformando um governo operário-burguês. Com um acréscimo: não é certo o que diz Trótski (no PdT, na História da Revolução Russa) de que Lênin teria proposto aos mencheviques que formassem um governo ‘socialista puro’, excluindo do gabinete os ministros da democracia liberal”.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que Lênin não apenas levantou a consigna de “abaixo os dez ministros capitalistas”, como que se tratava de uma importante reivindicação que permitiu aos bolcheviques expor de maneira popular perante as massas que os mencheviques e os social-revolucionários à cabeça dos sovietes eram os principais sustentáculos do Governo Provisório que plasmava a aliança com a burguesia (aquilo que anos mais tarde se chamaria “governo de frente popular”) e representava o principal obstáculo para as demandas do movimento revolucionário. Nesse sentido é que Lênin utilizava a consigna, afirmando aos conciliadores: “Se não querem se limitar a lamentações sobre a contrarrevolução, se querem combatê-la, estão obrigados a dizer conosco: abaixo os dez ministros capitalistas...” [35] . Tratava-se de contrapor um “governo operário e camponês” ao governo de “frente popular” expresso no Governo Provisório e sustentado pelos sovietes conciliadores. É esse sentido antiburguês e anticapitalista da demanda que Trótski irá retomar no Programa de Transição.

Assim como a exigência de publicação dos tratados secretos cumpriu um papel importante em expor o caráter prioritário que tinham as alianças imperialistas para o Governo Provisório, a negativa das direções conciliadoras à demanda feita pelos bolcheviques (desde abril até setembro [36] ) de que rompessem com a burguesia e tomassem o poder condenou-as aos olhos da massas. Longe de qualquer pedagogia de gabinete, são mostras de que “só a luta, independente de seus resultados concretos imediatos, pode fazer que os trabalhadores cheguem a compreender a necessidade de liquidar a escravidão capitalista” [37] . É claro que estes são apenas dois exemplos de uma ampla articulação estratégica e programática que permitiu finalmente conquistar a maioria e articular as forças materiais para passar à ofensiva.

De conjunto, trata-se de uma complexa bateria de demandas programáticas com as quais o Partido Bolchevique conseguiu “ordenar” o cenário político de enfrentamento revolução-contrarrevolução em termos de classe. Isto é, como enfrentamento entre a classe trabalhadora junto ao campesinato pobre contra a burguesia liberal-imperialista e os senhores de terras. Esta configuração do espaço político, longe de ser “espontânea” ou “a priori”, foi alcançada graças ao grande trabalho “pedagógico” de agitação e articulação programática aplicado pelos bolcheviques desde muito antes de que o proletariado se transformasse em sujeito hegemônico da revolução e suas Guardas Vermelhas estivessem verdadeiramente armadas, gerando assim as condições para a passagem da defensiva à ofensiva insurrecional. Aqui é onde se situa finalmente o momento revolucionário “pré-insurrecional” que Astarita colocava como condição e que, na realidade, é produto daquele trabalho estratégico.

A vitória como tarefa estratégica

Se as situações fossem não revolucionárias, puramente estáveis, ou então totalmente revolucionárias, e a passagem de umas a outras dependesse exclusivamente das “condições objetivas”, o método transicional não teria sentido. Seria tudo uma questão de utilizar ofensivamente o “programa mínimo” combinado com a propaganda socialista e de esperar que chegue a situação revolucionária para agitar qualquer consigna transicional. Mas não é assim. As situações surgem da ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. O característico é que existe uma complexa discordância de tempos entre as crises econômicas, as crises políticas e a subjetividade do movimento de massas, o que torna indispensável a preparação estratégica. Portanto, uma questão central é: como a classe trabalhadora chega à compreensão subjetiva da tarefa histórica colocada por determinada situação objetiva?

O método transicional é uma forma de responder àquela pergunta e é fruto de uma experiência revolucionária sem paralelo até o dia de hoje, que vai desde a ala esquerda da II Internacional, os bolcheviques em 1917, até a III Internacional, e que foi sistematizada no Programa de Transição. Trótski afirmava, com razão, que a vitória não é o fruto acabado da “maturidade” do proletariado, mas sim uma tarefa estratégica. Seu método frente aos processos de radicalização era tomar como ponto de partida o nível determinado de “maturidade” das massas e se propor a empurrá-las para frente. E, em termos mais amplos, trata-se de uma preparação que surge, como dizíamos, de “semear” determinadas ideias, instituir determinadas tradições de luta e organização que podem – e deveriam – se desenvolver com antecedência para a educação da vanguarda (e, através dela, de setores de massas) e forjar um partido revolucionário capaz de colocar-se à frente dessas batalhas.

Claro que, em vez disso, poderíamos nos dedicar a explicar por que as lutas que vão além do programa mínimo estariam condenadas a fracassar de antemão pelas leis do capital, a não ser que tivessem previamente garantias (relação de forças) para conquistar o poder. Mas digamos que nenhum partido revolucionário se construiu assim, e se é disso que estamos falando, sem dúvida o Programa de Transição tem muito a contribuir para nós ainda hoje para os combates que temos pela frente.


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FOOTNOTES

[1Cf. texto adiante nesta edição.

[2Idem.

[3León Trotsky, “El atraso de los obreros norteamericanos”, El Programa de Transición, Buenos Aires, IPS.

[4Leon Trótski, O Programa de transição.

[5Junto a esses três tipos, acrescentava: “Em 1958, nosso partido formulou em Leeds a tese de que há um quarto tipo de consigna, que são também parte essencial do programa de transição: as consignas internas às organizações operárias. Estas consignas também têm uma origem histórica objetiva: são uma consequência distorcida da decadência imperialista, que se manifestou dentro do movimento operário organizado e dentro do primeiro Estado operário como degeneração burocrática, e criou para a classe operária a necessidade de lutar contra essa degeneração” (Nahuel Moreno, El partido y la revolució. Disponível em: www.nahuelmoreno.org, p. 211).

[6Nahuel Moreno e Mercedes Petit, “Conceptos políticos elementales”. Disponível em www.nahuelmoreno.org, p. 15.

[7Nahuel Moreno, El Partido y la revolución, ob. cit., p. 171.

[8Nahuel Moreno, “Escuela de cuadros”, 1984. Crítica a las Tesis de la Revolución Permanente.

[9Sobre esses “objetivos transicionais”, elucida: “isto é, que apareçam ante os trabalhadores como necessárias para a solução de seus problemas, mas impraticáveis no quadro do funcional normal do regime capitalista, ou seja, conduzir a uma situação pré-revolucionária, inclusive à criação de corpos de dualidade de poder” (Ernest Mandel, Introducción a la edición en español del Programa de Transición, publicado por LCR-ETA VI em janeiro de 1973; tomado da edição em francês: Paris, Ed. De la Taupe Rouge, 1977).

[10Ernest Germain, In Defence of Leninism: In Defence of the Fourth International, 1973. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/mandel/1973/01/index.htm#top.

[11Ibidem.

[12Ver, por exemplo: León Trotsky, Programa de transición: la agonía del capitalismo y las tareas de la Cuarta Internacional / León Trotsky. Introd. por Ernest Mandel. Pref. por Pierre Frank. [París]: Ed. De la Taupe rouge, 1977. (Cuaderno "rojo": nueva serie; 8) / Nota: Esta introdução está contida na edição em espanhol do Programa de transição publicado por LCR-ETA VI em janeiro de 1973. Este não é o texto original, escrito em francês, mas sim uma tradução do texto.

[13Ernest Mandel, “In Defense of Permanent Revolution. A Reply to Doug Jenness”, Marxists Internet Archive, consultado em 5/3/2017, em: https://www.marxists.org/ archive/mandel/1982/dec/permrevo.htm.

[14G. Lora, El partido y su organización, 1983. Disponível em:
https://www.marxists.org/espanol/lora/1983/1983-partido-y-su-organizacion.pdf

[15Juan Pablo Bacherer, “El POR se ha transformado en secta nacionalista”. En Defensa del Marxismo, jul. 1997.

[16Para uma polêmica com o Partido Obrero da Argentina a esse respeito, ver: Matías Maiello, Una vez más sobre los debates de estrategia y su actualidad. Disponível em www.ips.org.ar/?p=4275.

[17Para uma análise sobre a deriva da II Internacional e, em particular, de seu principal partido, a social-democracia alemã, e os debates que a atravessaram, ver: Albamonte, Emilio; Maiello, Matías, Estratégia socialista e arte militar, capítulo 1.

[18Ver: Rolando Astarita, Crítica ao Programa de transição.

[19Leon Trótski, “Um resumo das reivindicações transitórias”, Programa de transição.

[20Ver: Raúl Godoy, López Eguía, Grace; Chialvo, Alejo, Zanón. Fábrica sin patrones. El rol de los trotskistas, Buenos Aires, IPS.

[21Sobre as lutas e os debates em torno da escala móvel na Itália, ver, entre outros: Lucio Magri, El sastre de ULM, Buenos Aires, CLACSO, 2011.

[22Ver também sobre este debate: Paula Bach, ”La jornada laboral, el reparto de las horas y la relación de fuerzas”. Disponível em: www.laizquierdadiario.com.

[23León Trotsky, Historia de la Revolución Rusa, Tomo I, ob. cit., p. 187.

[24Ernesto Laclau, La razón populista, ob. cit., p. 126-127.

[25Idem.

[26Rolando Astarita, Crítica al Programa de Transición.

[27Nahuel Moreno; Mercedes Petit, Conceptos políticos elementales, ob. cit.

[28“Em nosso modelo original, somente duas dessas operações concebíveis, a saber: a formação da cadeia equivalente e sua cristalização em uma entidade unificada mediante a produção de significantes vazios. Mas a fronteira antagônica como tal foi considerada algo dado e não objeto de construção hegemônica. Agora sabemos que a construção do povo implica também a construção da fronteira que o povo pressupõe. As fronteiras são instáveis e estão em um processo de deslocamento constante. É por isso que falamos de ’significantes flutuantes’" (Ernesto Laclau, , La razón populista, op. cit., pp. 192-193), tradução nossa.

[29León Trotsky, ¿Adónde va Francia?/Diario del exilio, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2013, p. 91.

[30Ibidem, p. 92.

[31Rolando Astarita, ob. cit.

[32V. I. Lenin, “Informe sobre la situación actual”, Obras Completas, Tomo XXV, Madrid, Akal, 1977, p. 178.

[33V. I. Lenin, “Mandato a los diputados para el Soviet de Diputados Obreros y Soldados que se elijan en las fábricas y regimientos”, Obras completas, Tomo XXV, ob. cit., p.326.

[34V. I. Lenin, “Conferencia: la guerra y la revolución”, Obras Completas, Tomo XXV, ob. cit., p. 393.

[35V. I. Lenin, “Como combatir la contrarrevolución”, Obras Completas, Tomo XXVI, Madrid, Akal, 1977, p. 167.

[36Depois de julho, quando a direção conciliadora havia mostrado seu verdadeiro rosto e, especialmente, a partir de setembro, quando a influência bolchevique crescia de forma exponencial (depois de meses em que as direções conciliadoras se negaram a assumir o poder), não se mantêm esperando a que os mencheviques e social-revolucionários aceitassem tomar o poder, e sim avançam como partido nos preparativos para a insurreição.

[37León Trotsky, El Programa de Transición y la fundación de la IV Internacional, ob. cit., p. 48.
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Matías Maiello

Buenos Aires
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