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Afeganistão: entre o imperialismo, o Talibã e a burocracia chinesa

André Barbieri

Ilustração: Juan Chirioca | @macacodosul

Afeganistão: entre o imperialismo, o Talibã e a burocracia chinesa

André Barbieri

No mês em que se completam os 81 anos do assassinato de Leon Trótski, chegamos ao final político do último projeto hegemônico dos Estados Unidos, com a conclusão do fracasso da invasão no Afeganistão com o retorno do Talibã ao poder, duas décadas depois. Coincidência ou não, o trotskismo, contra a impotência do stalinismo e do pós-marxismo, lança luz sobre o necessário combate para a emancipação da opressão imperialista e pela conquista de todos os direitos democráticos das mulheres e das etnias minoritárias e da exploração capitalista, algo impossível de ser feito junto às burguesias nacionais.

Depois de 20 anos de intervenção no Afeganistão, o fracasso político já concretizado dos Estados Unidos ganhou seu contorno final, com a humilhação sofrida tendo de remocer por helicóptero seus funcionários na embaixada em Cabul, para onde retornavam as tropas do Talibã para assumir novamente o governo central. O governo de Asgraf Ghani, apoiado pelos EUA depois da queda de Hamid Karzai, dissolveu-se no ar em poucas semanas, e evaporou depois da saída das tropas do Pentágono. Os informes de inteligências das agências de espionagem dos EUA falharam em calcular a firmeza do exército afegão, cujas 300.000 unidades capitularam sem resistência na maior parte do país. Segundo Tariq Ali, marxista britânico de origem paquistanesa, infiltrados do Talibã foram treinados pelos EUA como parte do Exército oficial, e rapidamente desertaram durante a ofensiva das milícias islâmicas. Trata-se de um fracasso coroado do conjunto do imperialismo norte-americano, tanto de Republicanos quanto de Democratas, “senhores da guerra” no Oriente Médio.

A devastação do Afeganistão pela invasão dos EUA é evidente, e teve como marco o 11 de setembro de 2001, após o que a invasão do Afeganistão não teve questionamento, e serviu como plataforma de disseminação da xenofobia imperialista contra os árabes. A economia afegã foi desmantelada ao ponto que a atividade mais lucrativa hoje é a exportação de ópio, fonte de renda durante anos para o Talibã. Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), no início da pandemia, o Afeganistão já enfrentava uma das crises alimentares mais graves do mundo. No final de 2020, 16,9 milhões de pessoas – 42% da população – enfrentavam níveis de “crise” ou “emergência” de insegurança alimentar. De acordo com as Nações Unidas, quase 12 milhões de cidadãos afegãos enfrentam insegurança alimentar aguda e não têm acesso a empregos e renda estável. O Afeganistão tem um dos piores PIB per capita do mundo, somente 524 euros; em 2019 mais da metade da população não conseuia 1 dóolar por dia para cobrir suas necessidades. Segundo o Unicef, apenas 23% da população tem acesso a água potável e 12% a sistemas de saneamento. O Afeganistão é o terceiro país do mundo com a maior taxa de mortalidade infantil entre menores de cinco anos, com 161 mortes por 1.000 nascimentos. Os crimes de guerra cometidos contra mulheres e trabalhadores são incontáveis: mulheres afegãs sofreram estupros pelas tropas ocidentais, o nefasto “mercado do sexo” se proliferou, com denúncias de troca de alimentos por serviços sexuais, nos moldes em que as tropas da ONU se habituaram a fazer nas chamadas “Missões de Paz”, como na Bósnia e no Haiti. Escândalos como o chamado "Diário de Guerra do Afeganistão", coleção de relatórios vazados em 2010 pelo WikiLeaks, detalhando as piores atrocidades cometidas pelas tropas dos EUA e da OTAN contra a população local, incluindo a matança de civis, esquadrões da morte, grupos de extermínio de muçulmanos e bombardeios indiscriminados, deterioraram ainda mais a falsa retórica de “liberdade e democracia”, enterrada cinicamente por Biden em seu comunicado oficial, ao revelar o óbvio: os EUA nunca quiseram “construir uma democracia” no Afeganistão. Na França, Emmanuel Macron não tardou a apresentar-se como uma Marine Le Pen 2.0: entrou em completo modo xenófobo e afirmou que o país não aceitará os refugiados afegãos que são obrigados a fugir pelas bombas imperialistas da OTAN, mesma posição de Josep Borrell, portavoz de Assuntos Exteriores da União Europeia. O racismo cínico do imperialismo não tem fim.

Washington busca fingir que o problema não é com ele, mas a realidade não esquece de Washington e cobra um preço. É a maior crise do governo Biden desde o início da administração Democrata, e está ligado à explosão do último projeto hegemônico lançado pelos Estados Unidos, que passou pelas mãos de quatro presidentes (dois Republicanos, George W. Bush e Trump, e dois Democratas, Barack Obama e Biden). Até agora o Biden usufruía de um grande capital político, ao ter derrotado Trump mediante o desvio das mobilizações do BLM, os trilhões de dólares dos planos de emprego e infraestrutura, e a colaboração da burocracia sindical da AFL-CIO e das organizações sociais. Não é o que acontece agora. Enquetes de opinião pública de várias agências, como a Gallup, a Five-Thirty-Eight e a Real Clear Politics, mostram que o Biden despencou pela primeira vez no mandato para menos de 50% de aprovação (ainda que esse número seja maior do que aquilo que o Trump conseguiu de aprovação em todo o seu governo). O importante desse dado é que 2022 é ano de eleições de meio mandato nos EUA, e segundo o histórico da Gallup, presidentes com menos de 50% de aprovação costumam perder emmédia 37 cadeiras na Câmara dos Representantes, enquanto aqueles com mais de 50% perdem em média 14 cadeiras. Isso é uma diferença muito grande, e que nesse caso significaria a perda do controle do Congresso pelo Partido Democrata. Divisões no interior do próprio Partido Democrata, cujos congressistas ecoaram contra Biden as críticas do líder da minoria Republicana no Senado, Mitch McConnell, podem ser seguidas por mais rusgas do governo com o deep state norte-americano, como a CIA e o Pentágono. Biden, entretanto, tem apoio de setores poderosos da classe dominante estadunidense, que querem finalmente orientar o “Pivô para a Ásia-Pacífico”, concentrando tropas nessa rgeião para conter a ascensão da China.

Na dança entre as potências, o retorno do Talibã a Cabul indica resultados geopolíticos. Os EUA são os perdedores imediatos. China, Rússia, Irã e Paquistão saem vencedores, em distintos graus. A China parece ser o poder mais bem posicionado para emergir desta seqüência, pois se encontrou com o Talibã em julho passado e disse que reconheceria um possível governo Talibã se eles tomassem o poder em Cabul. Tanto a China como a Rússia se beneficiam da saída de tropas americanas de um país tão próximo às suas fronteiras, ou diretamente limítrofes (no caso da China). A Rússia já disse publicamente que está regozijando a derrota dos EUA, sendo que Putin e Xi Jinping estão nas melhores relações sino-russas de todos os tempos, mediante o objetivo compartilhado de atrapalhar os planos de Biden na Europa e na Ásia. O Paquistão, aliado férreo da China, é apoiador do Talibã há muitos anos. E o Irã, que atuou junto à Rússia na guerra civil síria para definir o resultado do embate contra os interesses dos EUA, também se beneficia, agora com uma linha mais dura desde a ascensão ao poder do Ebrahim Raisi.

Isto muito provavelmente resultará na atividade de potências regionais, e até mesmo países menores na periferia capitalista, para remodelar certas questões, e esses acomodações podem ser incômodas. Com as tropas americanas no Afeganistão, por exemplo, a Rússia não precisava se preocupar em proteger as fronteiras de seus aliados da Ásia Central. Mas agora Moscou não pode usufruir indiretamente da invasão imperialista para a segurança regional. O mais provável é que tenha que cooperar com a China. A China tem agora todos os trunfos. A China influencia o Paquistão, mantém sua posição dentro do Afeganistão, e o Talibã precisa do ouro de Pequim para tentar reconstruir o país (o que colocará seu território no interior do Belt and Road Initiative, a Nova Rota da Seda chinesa, principal projeto de Xi Jinping). Um cenário não muito alentador para Moscou.

Mas o decisivo não é a geopolítica, e sim a luta de classes. Os problemas do Talibã para acomodar as contradições internas podem se espalhar pelo Oriente Médio. Importantes manifestações contra o Talibã ocorreram na primeira semana após a tomada do poder em Cabul. Primeiramente na comunidade afegã na região de Qom, no Irã, uma manifestação de mulheres denunciava a opressão do fundamentalismo islâmico, mulheres que já estavam fartas da devastação provocada na vida das afegãs pela invasão imperialista norte-americana. Na quinta-feira, renovaram-se manifestações e protestos em todo o país, com atos em Cabul e várias grandes cidades (Kandahar, Jalalabad, etc.) contra o Talibã, no dia em que se celebrava a Independência do Afeganistão, de 1919, quando o país se livrou do jugo britânico. Manifestantes levantavam a bandeira da república afegã que acabou de ser derrubada, em desafio ao novo governo, que instalou um emirado islâmico no Afeganistão. Isso é muito importante pela tendências de mais choques. Na região, vimos protestos nos últimos anos no Iraque e no Irã contra aumentos dos combustíveis e ajustes econômicos como a desvalorização das moedas, o desemprego, etc. Os protestos no Líbano depois de completos 1 ano da explosão no porto de Beirute se dirigem contra o governo. Na própria China o proletariado se enfrenta com as medidas pró-capitalistas do Xi Jinping. Todos esses fatores, normalmente desprezados pelas análises, são para nós um elemento definidor de como se vão desenhar as situações. O desemprego no Afeganistão tem expectativa de chegar em 13% ao final do ano (o desemprego feminino é já de 14%), a pobreza de um país devastado e a raiva contra a opressão do Islã político podem acender faíscas que explodam a situação, como indicam os protestos de “boas-vindas”.

Um país devastado pelo imperialismo e pela burguesia afegã

O surgimento do Talibã e as condições que permitiram seu retorno ao poder depois de 20 anos de intervenção iimperialista no Afeganistão não são fatores que “caíram do céu”. As disjuntivas históricas do país, a interferência política permanente dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, a política reacionária das burocracias stalinistas e o sabujismo de uma burguesia nacional covarde e corrupta deram origem, em meio a uma selvagem entropia de opressão sobre os trabalhadores e camponeses, a uma situação extremamente complexa. Estes elementos atuaram politicamente para a usurpação da resistência do povo afegão, contra o imperialismo e a intervenção estrangeira, por uma direção reacionária como o Talibã.

E quais fatores fundamentais deram origem ao Talibã? Dois deles poderiam ser enunciados sem vacilação: o aproveitamento estrangeiro da divisão multi-étnica e a disputa entre as potências pelo controle dessa região estratégica no século XX. Existem muitas etnias no interior desse país, são vários Afeganistãos dentro de um só, já que pelas próprias dificuldades geográficas as comunidades centenares na região estiveram consideravelmente separadas entre si, ainda compartilhando determinados traços culturais comuns. Tenhamos em mente que o Afeganistão faz fronteira com 6 países, na junção entre o OM e o sudeste asiático. Tem influências iranianas, paquistanesas, indianas (através do império Mughal no século 18), de muitos países da Ásia Central. As dezenas de milícias islâmicas no país estão vinculadas a distintas etnias. Existem quatro grandes grupos étnicos no Afeganistão: os tajiques (com os aimaques), os hazaras, os uzbeques (e turcomenos) e os pashtuns, que constituem a maioria étnica do país. Os dados mais recentes sobre as filiações étnicas, feita em pela The Asia Foundation, mostram que 42% das pessoas se identificaram como pashtuns, 33% como tajiques (e aimaques), 11% como usbeques (e turcomenos) e 10% como hazaras. Os restantes 4% se identificaram como nuristanis (afiliados com os tajiques), balúchis, entre outros. O Talibã é vinculado à etnia pashtun, majoritária no sul e leste do Afeganistão. Como sempre ocorreu na história dessa região, com muitos acidentes geográficos e uma longa cadeia de montanhas, o Hindu Kush, essas etnias tinham pouca relação entre si, e muitas rivalidades pelas diferenças culturais, políticas e idiomáticas. As rivalidades se traduziam em conflitos inter-étnicos, agravados com a intervenção das potências estrangeiras, que como fazem em todo lugar do mundo, aproveitam essas rivalidades para dividir e enfraquecer os países, extraindo daí sua capacidade de controle e domínio.

O cemitério de impérios, como é chamado o Afeganistão, em cujo território fracassaram expedições imperiais desde a Antiguidade com os macedônios, na Idade Média com os mongóis, e nos séculos XX e XXI com as intervenções britânica, soviética e norte-americana, mostra por outro lado como foi invadido por muitos impérios. De 1838 a 1919 a vida do território que conhecemos como Afeganistão foi determinado pela invasão colonial britânica, em que a Inglaterra dominava brutalmente a população, operando duas guerras contra os afegãos (em 1839 e em 1878) e instalando governos títeres que atendiam aos seus interesses, o que terminou no final da Primeira Guerra Mundial. O Afeganistão ficou de fora dos acordos secretos de Sykes-Picot, em 1916, através do qual Inglaterra e França dividiam entre si as zonas de influência de cada um sobre a área do Império Otomano; assim também, ficou de fora do apoio dos EUA aos nacionalismos burgueses no Egito, no Líbano, na Síria, entre outros. Isso conferiu ao país uma dinâmica distinta dos demais. No final da década de 1920, com a agitação popular e processos revolucionários em distintos países na Ásia (como a China) e no Oriente Médio, protestos surgem no Afeganistão contra o emir Amanullah Khan, que foge do país, ainda que o processo tenha culminado na instalação de uma monarquia, que na década de 1950 vai procurar auxílio na URSS.

Em 1973 Mohammed Daud dá um golpe de Estado, orquestrado pela CIA, para colocar o Afeganistão em sintonia com o Ocidente e em choque com os soviéticos, o que move a URSS a aplicar um contra-golpe em 1978, derrubando o Daud e abrindo uma guerra civil sangrenta com guerrilheiros mujahideen (ou “combatentes pela jihad”, pela guerra santa muçulmana) apoiados pelos EUA. A invasão da URSS no Afeganistão em 1979 foi influenciada pela situação regional de enfraquecimento dos EUA, especialmente com a revolução iraniana no mesmo ano de 1979, que derruba o xá Reza Pahlevi sustentado por Washington, e que havia dado origem às shorás (organismos de autoorganização de massas), um importante processo de luta de classes que terminou derrotado, com a ascensão do governo reacionário do aiatolá Khomeini. No Afeganistão, Babrak Karmal é instalado como governante, com o apoio das tropas soviéticas, no início da década de 1980.

A oposição, porém, aumenta, com vários grupos de mujahideen lutando contra as forças soviéticas. Os EUA, o Paquistão, a China, o Irã e a Arábia Saudita financiavam, treinavam e armavam os mujahideen. O conflito sino-soviético, que culmina na ruptura entre o Mao Tsé-Tung e o Leonid Brezhnev em 1969 quando Moscou e Pequim quase entram em guerra na fronteira nordeste da China, faz com que a burocracia de Deng Xiaoping colabore nos esforços imperialistas norte-americanos para armamento dos guerreiros islâmicos anti-soviéticos. Daí o caráter reacionário da política externa, não apenas do imperialismo norte-americano e europeu, mas das burocracias stalinistas nos Estados operários deformados e degenerados durante a Guerra Fria: todas essas burocracias pensavam a política como "geopolítica, ou política de Estado" e não como luta de classes, servindo aos própósito essenciais dos acordos de Yalta e Potsdam com Roosevelt e Churchill para a contenção da revolução internacional.

Durante a década de 1980 o Afeganistão é controlado pela URSS mas em permanente turbulência política com a atuação das milícias islãmicas, que serão a base de muitos grupos fundamentalistas nas décadas seguintes, como o Talibã. Com a dissolução da URSS em 1989, as tropas russas deixam o Afeganistão, encetando uma nova guerra civil para definir os contornos do novo regime, em 1992. O Talibã surge finalmente como grupo em 1994, dois anos antes de tomar o poder. Seu regime vai de 1996 até 2001, terminando com a invasão norte-americana capitaneada pelos neoconservadores de George W. Bush, depois dos ataques de 11 de setembro às Torres Gêmeas.

Produto de seu desenvolvimento ímpar frente às ingerências imperialistas, o Afeganistão nem sempre esteve sob o comando da barbárie que vemos nas últimas décadas. Os árabes afegãos haviam desenvolvido centros de cultura e universidades importantes, sendo que a ideia de uma “cultura atrasada” foi disseminada pelos Estados Unidos durante sua invasão, abrindo uma ofensiva reacionária contra os muçulmanos pós-11 de setembro. Todas as ditas “potências ocidentais” participaram da campanha xenófoba anti-islâmica em relação ao Afeganistão, cuja invasão gerou um acordo amplo muito maior que a guerra do Iraque em 2003. A “Guerra ao Terror” objetivava deteriorar também as condições de vida dos povos árabes, disseminando pelo mundo um sentimento xenófobo que era parte fundamental da estratégia imperialista de promover guerras preventivas, forma como os EUA de tentar frear sua decadência hegemônica. O imperialismo estadunidense é, portanto, responsável pela catástrofe nacional afegã. Ao sair humilhado da embaixada em Cabul, os efeitos de sua intervenção durante 20 anos subsistem. Mas também a sustentação de uma burguesia nacional subordinada aos jogos entre as grandes potências, lucrando bilhões de dólares com o tráfico de armas e de drogas, a exportação de minérios e outros recursos naturais. Essa burguesia é hoje representada pelo Talibã, outro produto da intervenção de Washington.

O reacionário Talibã e o igualmente pérfido “anti-islamismo” imperialista

Os talibãs eram uma facção ultra-ortodoxa dos mujahideen liderada pelo clérigo Mullah Omar, aos quais se juntaram os jovens das tribos pashtun que estudaram em madrassas (“escolas religiosas”) paquistanesas, ou seminários financiados principalmente pela Arábia Saudita. Os chefes do Talibã moveram inúmeras ofensivas militares de extermínio de pessoas vinculadas a outras etnias, enquanto esteve no poder. Em 8 de agosto de 1998, o Talibã lançou um ataque em Mazar-i Sharif, passando a matar pessoas de forma indiscriminada com base em sua etnia, especialmente hazaras e uzbeques. Mulheres foram estupradas, e milhares de pessoas eram trancadas em contêineres e deixadas para sufocar. Nesse período em que estiveram no poder os talibãs impuseram uma leitura wahabbista do Alcorão, mais extremista, precarizaram os serviços sociais de acordo com as instruções da burguesia local, e impuseram restrições ultraconservadoras aos direitos das mulheres, ao impor que estas não poderiam estudar ou sair de casa sem acompanhamento de um homem, além de serem obrigadas a usar burqas para cobrir completamente o corpo. Muitas mulheres foram assassinadas por apedrejamento, sob acusação de adultério. Música e televisão eram proibidas, e qualquer homem cuja barba fosse considerada muito curta seria preso.

Há muitas imagens circulando nas mídias sociais que fazem uma comparação com a derrota dos EUA no Vietnã. Embora existam alguns pontos de comparação, não é o mesmo, a começar pelo caráter reacionário e burguês do Talibã. Na verdade, apesar de nossas profundas discordâncias com os comunistas vietnamitas, o caráter reacionário do Talibã é uma diferença central. Justamente por isso, é de se esperar que surjam rapidamente contradições sociais e políticas: um governo talibã será incapaz de responder aos problemas profundos da população, apesar da rejeição real da intervenção imperialista.

É uma inverdade que no “Afeganistão só há barbarismo”. Se é certo que o Talibã é uma seita fundamentalista islâmica reacionária, que representa os interesses de frações da burguesia afegã, não menos certo é que o “anti-islamismo” imperialista é uma mostra pérfida do racismo das grandes potências. Os preconceitos contra os afegãos, como se todos fossem talibãs, oculta o fato de que foi o imperialismo norte-americano que armou e financiou o Talibã, aproveitando-se das disputas inter-étnicas para impor seus objetivos. A partir de 2001, a operação norte-americana, seguida pelo imperialismo anglo-francês, foi confundir os árabes e o Islã com o “terrorismo”, algo que significou campanhas racistas e xenófobas contra os muçulmanos que vivem nas potências centrais. Em países como a França, os muçulmanos são aqueles que ocupam os postos mais precários de trabalho, terceirizados, e residem nas banlieues (periferias) das grandes cidades, enfrentando o racismo policial. A construção da figura do muçulmano como “terrorista” é um dos produtos mais reacionários da ofensiva norte-americana e da OTAN sobre o Oriente Médio, sempre a serviço da opressão e exploração da população árabe pelo capitalismo ocidental.

A burocracia de Xi Jinping e os verdadeiros interesses da China

O rápido avanço militar dos talibãs seria incompreensível sem o auxílio, por trás dos bastidores, da diplomacia chinesa e do Exército de Libertação Popular. Quando o Ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, se encontrou oficiamente com os portavozes do Talibã, acordos já haviam sido travados para facilitar a conquista da região norte do Afeganistão, bastião anti-Talibã nas décadas anteriores.

A burocracia autocrática de Xi Jinping, líder supremo do Partido Comunista Chinês, tem planos nada modestos para o Afeganistão. Deseja incluir o país em sua esfera de influência e poder, tal como fez com o Paquistão, ex-aliado dos EUA. O Afeganistão é um ponto de junção estratégico entre o Oriente Médio e a Ásia, compartilhando fronteiras com boa parte da Ásia Central, além dos 90 km de fronteira com a região de Xinjiang, na China. Trata-se de um país chave que poderia auxiliar o governo de Pequim, a ferro e fogo, a impor seu projeto de “rejuvenescimento nacional”. Com efeito, Pequim já está utilizando seu logro – e a derrota norte-americana – no Afeganistão para alertar Taiwan de que Washington não a protegerá da política de reincorporação da ilha ao território continental da China. Para isso, Xi Jinping não tem nenhum problema em aliar-se politicamente com o Talibã, reconhecer seu governo e colaborar na opressão da população trabalhadora e pobre do país vizinho, disfarçando no possível sua política intervencionista.

É importante desmistificarmos a ideia, bastante difundida por ideólogos amigos da burocracia do Xi Jinping, de que a China "não intervem nos assuntos estrangeiros". Essa noção vem dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica, que a China assinou com a Índia em 1954, ratificado na Conferência de Bandung em 1955, num momento em que a China era fraca, pobre e se encontrava isolada internacionalmente. Essa não é mais a situação global da China. Estamos tratando da segunda potência econômica global (a primeira em termos de paridade de poder de compra, ou “purchasing power parity”), modernizando-se rapidamente em termos militares e em plena vapor na na competição estratégica com os Estados Unidos, colhendo uma vasta rede de alianças comerciais. O poderio chinês permite que a burocracia do Partido Comunista expanda sua influência internacional e adquira inclusive traços imperialistas, embora esteja muito atrás dos Estados Unidos na capacidade de comandar os destinos de outras nações. Isso ajuda a elucidar outro equívoco conceitual, segundo o qual, historicamente, os regimes despóticos na Ásia foram menos assertivos que aqueles dos impérios do Ocidente. Um dos principais expoentes dessa leitura interpretativa é o economista italiano Giovanni Arrighi, em seu famoso "Adam Smith em Pequim", em que previa a ascensão pacífica de uma China capitalista em função de uma suposta tradição orientalista menos beligerante; um retorno ao multilateralismo que, na época imperialista, não vislumbrasse novas disputas intercapitalistas que redundassem em guerras e revoluções. Para verificar o “pacifismo” das ascensão chinesa – nunca demasiado “suave” para os trabalhadores de seu próprio país, massacrados nas fábricas da costa oriental – basta verificar a atuação da China na África, em que apoia governos autoritários que servem de correia de transmissão para a opressão de Pequim (como no Sudão, no Zimbábue, na Angola, e na África do Sul, para dar alguns exemplos das violações de direitos humanos registradas por Adaora Osondu-Oti); ou mesmo o apoio da China à junta militar assassina de Myanmar, capitaneada pelo general Min Aung Hlaing, que ordenou tropas a atirar a mansalva em operários grevistas que se insurgiam contra a ditadura. O Afeganistão é apenas mais um país em que a China prova que é um governo interventor, que se imiscui nos assuntos estrangeiros, em franca dessintonia com as normativas dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica, que encantam cortesãos da burocracia como stalinistas do quilate de Jones Manoel ou Elias Jabbour…

Quais seriam os interesses materiais da China no Afeganistão? Vejamos:

a. Repressão aos muçulmanos uighures em Xinjiang: qualquer política de aliança entre Pequim e o novo Emirado estaria condicionada à abordagem do Talibã em relação a Xinjiang, região noroeste da China que compartilha fronteira com o Afeganistão. Aí, Pequim encarcera mais de 1 milhão de muçulmanos uighures e outras minorias em campos de concentração e trabalhos forçados, por exemplo, no ramo algodoeiro. Trata-se de uma região estratégica para a China, por sua importância econômica e militar, onde o Exército de Libertação Popular realizou exercícios conjuntos com Moscou, e onde constrói o complexo de centenas de silos de armazenagem de mísseis balísticos nucleares, totalizando uma área de 800 km². Tornada parte do território chinês no século XVIII durante a dinastia Qing, Xinjiang se vê atravessada por movimentos separatistas da população muçulmana que resiste à opressão racista do PCCh. Em especial, o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental preocupa a burocracia chinesa.

b. Expansão da força e influência econômica da China na Ásia: pesam fatores econômicos, como o projeto da Nova Rota da Seda, que interessam à expansão da influência política de Pequim sobre todo o continente asiático. Gideon Rachman, do Financial Times, diz que se “a China puder estabelecer uma relação de trabalho com um governo liderado pelo Talibã no Afeganistão, isso proporcionaria a Pequim benefícios econômicos - tais como a possibilidade de um corredor de trânsito, através do país, para o porto de Gwadar, no Paquistão, construído pela China”. A Nova Rota da Seda é o projeto insígnia de Xi Jinping, que busca ligar economicamente três continentes (Ásia, África e Europa) e mais de 64 países, através de obras de infraestrutura para a construção de portos, rodovias e ferrovias, cujo ponto de concentração seria Pequim. Os projetos bilionários patrocinados pelo Banco da China já levaram muitos países a uma “armadilha da dívida”, como ocorreu ao Sri Lanka, que foi obrigado a conceder o porto de Hambantota à China, ao não poder pagar a dívida contraída para sua construção. Essas obras da Nova Rota da Seda são, ademais, pontos de apoio para a crescente expansão militar internacional da China, que possui sua primeira base naval estrangeira em Djibouti, na costa oriental da África, com o objetivo de monitorar o Oceano Índico. A China também deseja os minérios afegãos utilizados para fabricação de semicondutores, como o lítio, e o Afeganistão tem uma das maiores jazidas de lítio do mundo (são reservas trilionárias, o Pentágono considerava o Afeganistão como a "Arábia Saudita do lítio"). Há minério de ferro, cobalto, ouro e cobre no país ainda.

c. Saída das tropas norte-americanas de um país de fronteira: a colaboração do Talibã com o ELP, sendo o Afeganistão um canal de acesso entre o OM e o sudeste asiático, robustecendo o corredor econômico China-Paquistão com acesso ao Golfo Pérsico.

A “manutenção da paz” é um subterfúgio conhecido por trás do qual as potências capitalistas globais defendem, muitas vezes por meios militares, seus interesses econômicos em distintas porções do mundo. Agora, os stalinistas do PCCh farão parte das hipócritas “missões de paz” da ONU para garantir seus investimentos no Afeganistão, às custas dos desespero da população local. Como não poderia deixar de ser, os grupos stalinistas brasileiros, como o PCB, reconhecem gratamente a aliança buscada por Xi Jinping nos mesmos termos hipócritas utilizados pelas Nações Unidas.

Afeganistão em permanência: um legado revolucionário para nossa época

O stalinismo, condensando em todo o seu conservadorismo a política como “geopolítica” isolada da luta de classes e a “teoria” do socialismo em um só país, representa o desastre para países em situações complexas como o Afeganistão, quer com a antiga URSS, quer com a China atual. Outro legado busca modo de uso, e é o do trotskismo. Aos 81 anos do assassinato de Trótski, a situação afegã pode ser iluminada pela teoria da revolução permanente, que no combate à opressão imperialista integra a luta inseparável contra todas as burguesias nacionais que foram criadas como correia de transmissão da influência do capital estrangeiro na estrutura interna de exploração. “Para os países de desenvolvimento burguês atrasado e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a resolução íntegra e efetiva das suas tarefas democráticas e de libertação nacional somente pode ser concebida por meio da ditadura do proletariado, que se coloca à cabeça da nação oprimida e, primeiro de tudo, das suas massas camponesas”. A classe trabalhadora afegã é o sujeito que pode dar resposta a todos os problemas do país, descortinando as tarefas democráticas e cumprindo todas as demandas dos setores oprimidos, como as mulheres e as minorias étnicas, assumindo o poder contra a burguesia nacional com um programa hegemônico. “Quaisquer que sejam as primeiras e episódicas etapas da revolução nos diferentes países, a aliança revolucionária do proletariado e do campesinato só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada em partido comunista. O que significa, por sua vez, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que se apóia na sua aliança com o campesinato e que, em primeiro lugar, decide das tarefas da revolução democrática”. As demandas democráticas mais elementares, assim como a libertação da opressão imperialista e a revolução agrária, em países de desenvolvimento capitalista atrasado como o Afeganistão, só podem ser cumpridos derrubando a burguesia com a revolução socialista.

Aqui há um debate com o reducionismo nacional feito por uma série de teóricos que buscaram separar o debate sobre as questões democráticas daquele sobre a revolução. Um grande número de teóricos passou décadas escrevendo contra a possibilidade de que a classe trabalhadora fosse um sujeito potencialmente hegemônico em nossa época, e que a única democracia possível seria essa (a burguesa), e que se tratava apenas de melhorá-la. Segundo essa teoria, a luta pelas liberdades e direitos políticos – no Afeganistão, a luta pelos direitos das mulheres e das etnias oprimidas também, ainda que pouco se ocupassem com os países de desenvolvimento capitalista atrasado – deveria ficar prudentemente separada das transformações socio-econômicas indispensáveis para sua plena realização. Dois dos representantes teóricos deste foco, popular entre o neorreformismo europeu e as correntes “pós-neoliberais” latinoamericanas, são Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Em sua abordagem da democracia e do “populismo” desaparecem os fundamentos objetivos (bases econômicas do capitalismo, a opressão imperialista, as classes sociais, as relações de força): o permissível seria somente “radicalizar a democracia” (sem adjetivos) e conquistar a articulação de um populismo progressista. O livro de Mouffe, “Por um populismo de esquerda”, com esses fundamentos, servia para apoiar Jean-Luc Mélenchon, neorreformista do La France Insoumise, sem nenhum balanço sobre as experiências do Syriza e Podemos, menos ainda dos nacionalismos burgueses latinoamericanos. Além de reformista, como não poderia deixar de ser, é uma teoria estreitamente nacional por excelência, incapaz de sequer começar a responder problemas complexos como os apresentados por situações como a que vemos no Oriente Médio: que fazer no Afeganistão? Conquistar “o avanço da democracia” nos marcos da catástrofe deixada pelos Estados Unidos? Implementar os direitos das mulheres “moderando” o Talibã, como sustentam os stalinistas? Apresentar o problema já mostra a fossilização de “teorias” stalinistas e “pós-marxistas” como essas, que se confundem na esterilidade.

Pelo contrário, a teoria da revolução permanente, elaborada por Trotsky em base às lições das revoluções do século XIX e do começo do século XX, parte exatamente do contrário: a “íntegra e efetiva resolução” dos objetivos democráticos é inseparável das transformações estruturais (por exemplo, na Revolução Russa, a luta contra a autocracia e a exploração dos latifundiários).

A teoria da revolução permanente de Trótski estava fundada na concepção do desenvolvimento desigual e combinado, como eu mencionei acima, em que ele diz que: “Unindo entre si países e continentes que se encontravam em etapas diferentes de desenvolvimento através de um sistema de dependência e oposição, aproximando e combinando estes diversos níveis de desenvolvimento e opondo-os entre si através das fronteiras nacionais, o imperialismo havia convertido a economia mundial em uma realidade poderosa que determinava cada uma de suas partes componentes”. Ou seja, é impossível conquistar as demandas democráticas elementares e estruturais, de maneira consistente (sem que retrocedam no momento seguinte) sem destruir a opressão imperialista, algo por sua vez impossível mantendo alianças com as burguesias nacionais ou limitar-se programaticamente a pressionar pela “democracia burguesa até o final”. Que tipo de emancipação das cadeias imperialistas, libertando as forças produtivas do Oriente Médio, se pode conquistar restringindo-se aos marcos da “disputa geopolítica”, como quer o stalinismo, assim como o era dentro do pensamento reacionário do “socialismo em um só país”?

Essas são as perspectuvas da derrota. Na formulação final da teoria da revolução permanente, Trótski afirma que “Na época atual, infinitamente mais que durante todas as precedentes, só pode e deve deduzir-se o sentido em que se dirige o proletariado em sua atividade nacional a partir do ponto de vista internacional, e não o contrário. Nisto consiste a diferença fundamental que distingue, desde o ponto de partida, o internacionalismo comunista das diversas variantes do socialismo nacional”. Este internacionalismo operário (e não as versões “remasterizadas” pelas organizações trotskistas que abandonaram este enfoque na segunda metade do século XX), foi provado pela história, que desautorizou a “teoria do socialismo num só país” ou o retrocesso que significavam, frente ao internacionalismo marxista, as ideologias nacionalistas. Tampouco se inscreve nessa perspectiva a ideia de que, apesar de reconhecer o caráter reacionário do Talibã, indica que o desenlace no Afeganistão, da forma que se deu com a ascensão do fundamentalismo islâmico no governo, seria um “triunfo das massas”...resgatando o etapismo próprio da tradição morenista da LIT/PSTU.

À luz da potente dinâmica estratégica do trotskismo, podemos afirmar indubitavelmente que é indispensável lutar pela emancipação dos trabalhadores e dos povos oprimidos do Afeganistão e de todo o Oriente Médio, atravessados pelas intervenções imperialistas dos Estados Unidos e dos assassinatos de palestinos pelo Estado terrorista de Israel. Só que a luta contra o imperialismo não passa pelo apoio ao fundamentalismo islâmico, que em toda a região – e não menos no Afeganistão – defende os interesses das burguesias árabes e seus acordos com as mesmas potências imperialistas (o Talibã busca agradar “gregos e troianos”, chineses e norte-americanos). Esses movimentos políticos reacionários se postulam contra os interesses mais sentidos das massas, e não à toa buscam alianças com autocracias e regimes bonapartistas como aqueles que governam a China, a Rússia e o Irã. A luta pela independência de classes e para que os trabalhadores emerjam com um programa hegemônico no Oriente Médio é a única saída contra as devastações imperialistas e os falsos amigos stalinistas. É fundamental defender a abertura das fronteiras e o acolhimento digno de todos aqueles que querem se refugiar em solo europeu e mundial.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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