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SEMANÁRIO

A reatualização da “época de crises, guerras e revoluções” e as perspectivas para uma esquerda revolucionária internacionalista

Claudia Cinatti

Matías Maiello

A reatualização da “época de crises, guerras e revoluções” e as perspectivas para uma esquerda revolucionária internacionalista

Claudia Cinatti

Matías Maiello

Foi realizado nos dias 13 e 14 de maio a sessão virtual da XII Conferência da Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-QI). Uma versão do documento que apresentamos na sequência serviu de base para o debate, junto a outros artigos e contribuições. Para sua publicação, incorporamos os aportes e conclusões resultado das discussões da Conferência.

Como viemos definindo, abriu-se um período em que as tendências profundas da época imperialista de guerras, crises e revoluções (Lenin) estão novamente no primeiro plano. No terreno militar e geopolítico, elas se expressam na guerra da Ucrânia, nas crescentes tensões entre EUA e China, na tendência à conformação de blocos de potências opostas, etc. No terreno econômico, nas perspectivas incertas da economia internacional, com ameaças de novas crises bancárias e da dívida. No que diz respeito à luta de classes, se expressam em um novo ciclo impulsionado pelas consequências da pandemia, da guerra e do endurecimento da burguesia e de seus estados. Abordaremos na sequência estes eixos um por um.

[PARTE 1]
TENDÊNCIAS À CRISE

Um panorama econômico incerto

Em sua última atualização sobre as perspectivas da economia mundial (abril 2023), o FMI voltou a colocar um cenário de incerteza, com tendências que apontam para um baixo crescimento - cerca de 3% - para os próximos 5 anos (a projeção de médio prazo mais baixa desde 1990). O FMI enumera uma série de elementos que explicariam o que chama de “perspectiva anêmica”: 1) a inflação - e as políticas monetárias para baixá-la através do aumento do juros; 2) as turbulências bancárias e financeiras reveladas com as quebras do Silicon Valley Bank e de outros bancos de médio porte; 3) as consequências da guerra da Ucrânia, em particular o impacto das sanções econômicas; 4) a crescente fragmentação e tendência a blocos regionais como consequência da crise da globalização e das cadeias produtivas e, principalmente, a disputa entre Estados Unidos e China.

Isso sem contar os fatores "extra econômicos" como a disputa interna entre democratas e republicanos nos Estados Unidos em torno ao teto de endividamento, que reativou as discussões sobre um possível calote e paralisia do estado norte-americano por falta de financiamento.

No marco dessas tendências, aceleradas pela saída da pandemia e pela guerra da Rússia/Ucrânia-OTAN, o colapso do Silicon Valley Bank, seguido pelo Sgnature Bank, e o First Republic Bank (comprado posteriormente pelo JP Morgan) voltou a colocar no horizonte a perspectiva nefasta de uma crise do sistema bancário.

Embora se trate de bancos de médio porte - e no caso do SVB com uma carteira de clientes em que prevalecem startups de tecnologia e criptomoedas -, a possibilidade de uma corrida bancária desenfreada ameaçava afetar o sistema de conjunto. De fato, o efeito contagioso cruzou o Atlântico e chegou ao Credit Suisse, o segundo maior banco suiço que teve que ser resgatado pelo Banco Nacional Suiço diante do colapso de suas ações.

Essa crise expôs as vulnerabilidades do sistema bancário, que em 2018, sob os auspícios do governo de Donald Trump e o apoio de um setor democrata, se libertou das regulações (tímidas para a magnitude da crise) que seguiram à Grande Recessão, como os chamados “testes de estresse” para os bancos do tamanho do SVB. Soma-se a isso a bolha das startups, em particular as tecnológicas, que receberam grandes investimentos de capitais de risco, inclusive antes de darem algum tipo de lucro. Depois de uma grande expansão no pico da pandemia, as empresas tecnológicas vêm respondendo à crise que afeta o setor com uma tendência crescente de concentração e demissão de dezenas de milhares dos seus trabalhadores.

Para evitar o cenário de uma crise generalizada, e tendo em vista a velocidade da corrida (42 bilhões de dólares em depósito foram retirados do SVB em 10 horas) a Reserva Federal e o governo norte-americano decidiram resgatar todos os depósitos, incluindo os não assegurados porque excedem o limite de 250.000 previsto legalmente.

Politicamente, o resgate foi muito impopular (“socialismo para os ricos” como disse B. Sanders). Por isso, o presidente Biden - que já anunciou que buscará sua reeleição - tentou apresentar que esse resgate “é pago pela Wall Street” e não pelos contribuintes, porque os recursos surgiram de um fundo financiado pelos grandes bancos. Entretanto, é evidente que se trata de uma transferência massiva de dinheiro aos grandes investidores e capitalistas do Vale do Silício, entre os quais se encontram os principais contribuintes das campanhas democratas e também libertários de extrema direita simpatizantes de Trump.

A rápida resposta do Fed e de outros bancos centrais conteve, por enquanto, essa rodada de quebras e corridas, com uma combinação de resgates protegem os balanços dos bancos e um novo impulso à concentração bancária, visto que os grandes bancos como JP Morgan ficaram com os bancos falidos a preços irrisórios.

Entretanto, o fato de não ter levado a cenários mais catastróficos não significa que o perigo de uma nova crise bancária ou financeira tenha se dissipado definitivamente. A guerra da Ucrânia aprofundou as tendências estruturais que vinham se desenvolvendo, nas quais se combinam aspectos econômicos, políticos e geopolíticos, no marco de um esgotamento (ou crise profunda) da globalização neoliberal, revelado pela Grande Recessão de 2008, e, de forma geral, da decadência hegemônica norte-americana e da emergência da China.

O colapso do SVB tem como causa imediata o impacto do aumento da taxa de juros pelo Federal Reserve sobre o exorbitante negócio financeiro que funcionava com a premissa de custo praticamente zero de dinheiro. Nesse sentido, é apenas a primeira manifestação das consequências do fim da era da “plata dulce” que prevaleceu durante os últimos 15 anos. Os programas de QE injetaram enormes somas de dinheiro à economia, evitaram quebras bancárias e mantiveram a chamadas “empresas zumbis”, ao custo de que essa massa de dinheiro foi principalmente para inflar ativos e para o crescimento exponencial do endividamento estatal e privado.

A relação da crise com o aumento da taxa de juros tem uma certa analogia com a crise das sociedades de poupança e empréstimos (S&L) da década de 1980, que entraram em colapso com a abrupta elevação das taxa de juros implementada pelo então presidente do FED, Paul Volcker. Embora neste caso a elevação seja moderada comparada com o início do governo Reagan, o FED implementou em um ano o aumento de taxa mais acelerado em 40 anos, assim como os bancos europeus.

Com a guerra da Ucrânia, as tendências inflacionárias surgidas em decorrência da pandemia se agudizaram, assim como se agravaram as políticas de injeção de dinheiro para estimular a economia e os gargalos das cadeias produtivas. As sanções econômicas que as potências ocidentais impuseram à Rússia agravaram a situação com o aumento dos preços da energia e dos alimentos, levando a inflação nos países centrais a níveis recordes em décadas.

É neste marco mais geral que devem ser lidas as tendências protecionistas que vêm se desenvolvendo, ou as realocações parciais de cadeias produtivas. O imperialismo norte-americano respondeu com a guerra comercial contra China, iniciada por Trump e em grande medida continuada pela presidência de Biden, que, em fevereiro de 2023, aprovou a chamada Lei de “Chips para os Estados Unidos” - um programa de financiamento estatal para estimular a indústria norte-americana de semicondutores para garantir a vantagem tecnológica dos Estados Unidos frente a China e outros competidores. Em relação a este último, existe uma discussão entre diversos analistas - que também atravessou os debates da Conferência da FT - sobre os alcances e consequências desse tipo de “política industrial”, centrada por enquanto na produção tecnológica no marco das crescentes disputas entre potências, da reconversão energética e da corrida armamentista.

Os governos e os bancos centrais das grandes potências aplicaram a receita monetarista de aumento das taxas de juros para esfriar a economia e assim baixar a inflação, ao mesmo tempo em que tentavam evitar o cenário de “estagflação”, ou seja, que persista a inflação combinada com recessão. O economista marxista M. Roberts defende que esse cenário recessivo nos países centrais pode ser combinado com uma crise da dívida soberana na periferia, especialmente em países fortemente endividados em dólares como a Argentina, o Paquistão e o Egito. O Sri Lanka pode ser uma amostra desse cenário.

A solução monetária à inflação supõe um ataque significativo à classe trabalhadora, esquematicamente uma recessão que leve a um aumento da desocupação que debilite a capacidade de negociação, organização e luta para conseguir uma queda substancial dos salários. Entretanto, essa receita que se impôs no início do governo Reagan não foi produto de políticas monetárias, mas sim implicou derrotas importantes para a classe trabalhadora - greve de controladores aéreos nos Estados Unidos, mineiros na Grã Bretanha. Este é o quadro em que uma nova onda de luta de classes está se desenvolvendo.

[PARTE 2]
A GUERRA NA UCRÂNIA E AS MAIORES TENSÕES ENTRE AS POTÊNCIAS

Cenário atual da guerra na Ucrânia e pressões militares por maior envolvimento dos EUA

Como viemos desenvolvendo em diversas elaborações, a guerra na Ucrânia não é apenas mais uma guerra. Embora com ritmos que não necessariamente sejam lineares, coloca o início do questionamento aberto (inclusive militar) da ordem mundial atual. O que coincide com o esgotamento da “restauração burguesa”, entendida como uma terceira etapa da época imperialista que incluiu a ofensiva neoliberal (assim como a queda do Muro de Berlin e a restauração capitalista naqueles países em que a burguesia havia sido expropriada) e que encontrou seus limites a partir da crise capitalista de 2008.

O cenário da guerra na Ucrânia permanece aberto, o que supõe um elemento central para a evolução da nova etapa da situação mundial. Como apontou Claudia Cinatti em “Há um ano da guerra na Ucrânia”: “apesar da lógica subjacente de escalada, a guerra segue circunscrita ao território ucraniano, embora à medida que se prolonga a guerra e se aprofunda a participação dos Estados Unidos e das potências da OTAN, cresce o risco de escalada ou inclusive de algum acidente involuntário.” O futuro da guerra se move nessa linha tênue. Prova disso foi o incidente, em março passado, com drone MQ-9 Reapter norte-americano nas proximidades da Crimeia (a 60 km do porto de Sebastopol) em que um avião de combate russo acabou derrubando-o. Como sabemos, a névoa da guerra e o fato das informações do campo de batalha fazerem parte do conflito, dificulta prever quais serão os próximos passos e nos deixa no terreno da especulação. Uma especulação necessária já que tudo indica que nos aproximamos de um novo momento da guerra que vem sendo discutido nos termos da sobre anunciada “ofensiva da primavera”.

Até agora, podemos distinguir três etapas no campo de batalha: 1) Uma primeira, no começo da invasão, onde o exército russo desenvolveu uma espécie de blitzkrieg (guerra relâmpago), de batalha em profundidade, que incluiu o avanço massivo de tanques até Kiev. Com o tempo ficou mais claro que, naquele momento, a intenção de Putin nunca foi ocupar a cidade, mas, com base nos relatórios de inteligência (cujos promotores foram posteriormente sancionados), se baseava na hipótese do colapso do governo de Zelenski. Isso não aconteceu. 2) Uma segunda etapa, marcada pela retirada do cerco a Kiev, pela reorganização e posicionamento das tropas russas no sul e leste da Ucrânia. Neste capítulo da guerra, os avanços russos permitiram que suas forças conquistassem o principal porto do Mar de Azov (e do Donbass) e estabelecer um corredor terrestre da península da Crimeia até os territórios da região do Donbass que estavam anteriormente sob seu controle. Em determinado momento, especulou-se que essas conquistas se estenderiam em direção ao oeste até Odessa, mas não foi o caso. 3) Uma terceira etapa - ou parte da segunda, dependendo de como queremos vê-la - foi marcada pela declaração de anexação das regiões de Lugansk, Donetsk, Zaporizhzhya e Kherson. Na sequência, teve lugar uma contra-ofensiva ucraniana na província de Kherson que obrigou as tropas russas a se posicionar do outro lado do rio Dnieper na frente sul. Também retrocederam na província de Kharkiv na frente oriental. Houve uma luta pela consolidação das posições no leste, através do uso massivo da artilharia de ambos os lados com uma importante preeminência russa e com destaque nas zonas mais quentes da companhia militar privada conhecida como grupo Wagner.

Trata-se de uma ampla fase de guerra de desgaste cujo símbolo tem sido a batalha pela cidade de Bakhmut. Essa etapa continua até a atualidade. A questão, obviamente, é o que vem a seguir. Embora os elementos para respondê-la sejam totalmente insuficientes e repletos de operações de todo o tipo, cabe levantar hipóteses.

Nesse sentido, é necessário distinguir dois níveis: um que tem a ver mais com a tática, outro mais com a estratégia na guerra.

a) No primeiro desses níveis, o mais tático. Vem se configurando uma dura “guerra de desgaste” que não se via há muito tempo. É importante destacar que um traço distintivo desse tipo de guerra é que os bandos tentam desgastar uns aos outros mediante a destruição gradual do material bélico e das tropas. A força se compara com a força. Não existe expectativa de um “golpe de misericórdia”, os combates são palmo a palmo. A questão é quem se desgasta primeiro.

Embora a guerra de desgaste tenha sido muito custosa para ambas as partes, pela assimetria entre a Rússia e a Ucrânia, o peso relativo das perdas para essa última é muito maior. Esta comparação é central, porque embora as forças ucranianas contem com uma ampla ajuda militar ocidental, tanto para o imperialismo norte-americano quanto para a OTAN trata-se de uma guerra por procuração, o que implica, entre outras questões, não pôr tropas próprias no terreno. Os soldados, assim como os mortos e feridos, correspondem, portanto, às forças ucranianas. Embora o total de baixas russas, de acordo com várias estimativas, sejam maiores, em termos proporcionais para a Ucrânia, suas baixas têm uma significação mais decisiva.

Zelenski parece estar jogando para lançar a contra-ofensiva da primavera, que pode ser a última chance para a Ucrânia retomar parte do território. Do quadro geral, parece extremamente improvável que consiga expulsar as forças russas do território ocupado. Neste cenário, taticamente a relação de forças parece mais favorável às forças russas, apesar de seu próprio desgaste.

b) No segundo nível, o mais estratégico. A estratégia do imperialismo norte-americano, definida esquematicamente, é desgastar a Rússia utilizando as tropas ucranianas como “carne de canhão”. Essa política é apoiada por Zelenski sob o argumento de recuperar todo o território ucraniano, no qual, em termos militares, supera amplamente as possibilidades das forças ucranianas, a menos que ocorra uma mudança radical nas condições atuais.

O imperialismo norte-americano tem levado a cabo essa orientação com certo êxito no que diz respeito ao desgaste russo. A pergunta neste momento é qual é o limite da estratégia de se valer das forças da Ucrânia para travar uma guerra de desgaste por procuração contra uma potência como a Rússia, uma guerra que depende, além de toda a ajuda militar, do esforço de guerra exclusivo das desgastadas forças ucranianas sobre o terreno.

Neste sentido, diante do desgaste das tropas ucranianas, o imperialismo norte-americano pode aprofundar sua intervenção e apostar em uma maior debilidade russa, ou preparar para o próximo ano algum tipo de cenário que reduza a intensidade dos enfrentamentos, e tomar medidas no sentido de propiciar algum tipo de armistício a médio prazo, no qual nenhuma das partes desista de suas pretensões, mas que de algum modo “congele o conflito”.

Essa é uma discussão interna em curso dentro do imperialismo dos EUA. Para ele, continuar a guerra tem, entre outros, o benefício de conseguir um maior enfraquecimento da Rússia e a redução da dependência dos aliados norte-americanos em relação a ela, em particular, “desacoplar” a Alemanha da Rússia. Entre os custos de uma guerra longa estão o aumento do risco de escalada envolvendo diretamente os membros da OTAN, a menor capacidade dos EUA de concentrar-se em suas prioridades no Oriente e o aumento da dependência russa da China. Essa é uma discussão sobre os limites que o imperialismo norte-americano pode obter em termos do objetivo de desgastar a Rússia.

Do ponto de vista estratégico e sem que ocorra uma grande reviravolta na guerra (que hoje não está no horizonte), toda vitória tática parcial da Rússia que se traduza em conquistas territoriais é um um triunfo pírrico diante do desgaste, que inclusive a manutenção dessas conquistas implicariam. Em qualquer caso, a Rússia terá menos liberdade de ação (deverá se apoiar mais na China, Finlândia passou a ser membro da OTAN e Suécia se prepara para seguir o mesmo caminho) e não mais do que antes da guerra. Embora a magnitude disso ainda esteja por ser vista.

No entanto, em termos globais - de “grande estratégia”, poderíamos dizer - o debilitamento da Rússia não se traduz necessariamente em um fortalecimento dos EUA. No imediato, a Rússia aumenta sua dependência da China. Entretanto, esta última, como abordaremos em breve, apesar de seus crescentes traços imperialistas, não está em condições de disputar com êxito na atualidade a primazia global frente ao imperialismo norte-americano. Assim, o resultado mais global de toda essa configuração ainda permanece em aberto.

Esses elementos tornam o cenário mais volátil no marco de uma guerra que muito provavelmente se prolongará e cujo resultado efetivo ainda não está à vista.

A evolução do conflito na Ucrânia e nossas definições políticas

Como temos apontado, a principal novidade da situação atual em termos bélicos é a irrupção da guerra interestatal com o envolvimento de potências em ambos os bandos, embora com os EUA e a OTAN atuando por procuração.

A política dos EUA e da OTAN, que se estende à guerra na Ucrânia, é a política imperialista de “cercar” a Rússia através da expansão da OTAN para o leste, embora sem entrar em um enfrentamento militar direto. Junto a isso, a interferência nas chamadas “revoluções coloridas”, buscando capitalizar revoltas contra regimes autoritários em função da expansão da influência norte-americana.

A política que Putin continua com a invasão da Ucrânia consiste em recriar um status de potência militar para a Rússia, sustentando a opressão nacional dos povos vizinhos. Atua como uma espécie de “imperialismo militar”, embora não se qualifique como país imperialista no sentido preciso do termo já que não conta com projeção internacional significativa de seus monopólios e de suas exportações de capitais (exporta essencialmente gás, petróleo e commodities, etc.). Seu “status” mais permanente no sistema de Estados dependerá do resultado da guerra.

A política do governo Zelenski, que se prolonga na guerra, é a de subordinar a Ucrânia às potências ocidentais. O processo político que atravessa a Ucrânia há décadas é incompreensível por fora de uma trajetória pendular marcada pelo enfrentamento entre as oligarquias capitalistas locais “pró-russas” e “pró-ocidentes”. Inclui-se a “revolução laranja” em 2004 e sua continuidade no Euromaidán em 2014. Em torno destes enfrentamentos, aprofundou-se a divisão alimentada pelos interesses das diferentes frações da oligarquia local. Isso tudo agudizado pela existência de uma significativa minoria de língua russa (em torno de 30% da população) e do auge dos grupos nacionalistas de extrema direita. Uma guerra civil de baixa intensidade que remonta a 2014. Essa minoria de língua russa foi alvo de medidas opressivas, incluindo restrições ao uso de seu idioma e ataques dos grupos de ultradireita patrocinados pelo Estado.

A Ucrânia é uma peça chave para o imperialismo norte-americano e a OTAN para a contenção da Rússia e para enfraquecê-la como potência. O plano máximo seria retomar o caminho de subordina-la à ordem norte-americana que havia sido iniciada com a restauração capitalista. Desde 2014/2015, a OTAN vem comandando o processo de reforma das Forças Armadas Ucranianas, incluindo armamento e financiamento. Em 2020, a OTAN concedeu-lhe o status de “sócio de oportunidades aprimoradas”, e a cúpula da OTAN de 2021 reafirmou o acordo estratégico de que a Ucrânia se converteria em membro da Aliança, sem chegar a concretizá-lo. O imperialismo norte-americano, através da OTAN, joga um papel de direção político-militar do bando ucrâniano em função de seus próprios interesses: debilitar a Rússia e alinhar seus aliados em sua disputa com a China.

Neste marco, distinguimos entre as sanções (“guerra” econômica) em que as potências ocidentais são protagonistas diretas e a guerra propriamente dita como uma “batalha em um campo entre homens e máquinas" que pode afetar decisivamente a ordem internacional, onde os EUA e a OTAN vem ampliando sua incidência (inteligência, armamento, comando, treinamento, financiamento, etc) mas sem envolver-se direta e abertamente no terreno.

É importante ter em mente que essa definição não é definitiva e que há fatores da própria guerra que pressionam para um maior envolvimento dos EUA. Se e na medida em que isso mudar, nossa posição deve se aproximar, com as ressalvas do caso, mais ao indicado por Trótski (“Observações sobre a Tchecoslováquia”) no caso da crise dos Sudetos de 1938. Ali, diante da anexação de Hitler do que naquele momento era parte da Tchecoslováquia com o argumento de proteger a população alemã desse território, Trótski defendeu uma política diretamente derrotista de ambos os lados, no que foi um dos prolegômenos da Segunda Guerra mundial (finalmente as principais potências europeias, sem a Tchecoslováquia, assinaram os Acordos de Munich e reconheceram os Sudetos como território alemão). Por sua vez, contra aqueles que com um discurso imperialista “democrático” falavam de defesa da democracia tchecoslovaca, Trótski destacou a opressão, dentro do país, por parte dos tchecos contra os eslovacos e os alemães dos Sudetos, entre outros.

A nossa política desde o início do conflito, que consideramos correta e sintetizada na declaração da FT, foi: “Não à guerra! Fora as tropas russas da Ucrânia. Fora OTAN do Leste Europeu. Não ao rearmamento imperialista. Por uma unidade internacional da classe trabalhadora. Por uma política independente na Ucrânia para enfrentar a ocupação russa e a dominação imperialista”. Assim, no início do conflito apontamos a relevância do elemento da autodeterminação nacional, destacando, ao mesmo tempo, as medidas opressivas contra a minoria de língua russa, dentro dos fatores a serem considerados para uma política independente no conflito, marcado pela invasão russa e pela intervenção por procuração dos EUA e da OTAN. Contudo, à medida que a intervenção dos EUA e da OTAN se expande, aquele elemento da autodeterminação nacional fica cada vez mais em um segundo plano para determinar nossa política enquanto se subordina ao enfrentamento militar entre potências.

Contra o belicismo e o pacifismo burguês em suas duas variantes: pró-otan e pró-russo/chinês

Na centro-esquerda e na esquerda podemos identificar, com diferentes pesos, quatro grupos de posições que sustentam os lados em disputa. Por um lado, as correntes que defendem a intervenção na guerra a partir de um ou outro “campo” e, por outro lado, aqueles que defendem algum tipo de “paz democrática” imperialista baseada na diplomacia de um ou outro campo.

O grosso da centro-esquerda internacional apoia a propaganda que a imensa maioria dos grandes meios de comunicação fomentam desde o início da guerra, que tentam utilizar o repúdio à reacionária invasão de Putin à Ucrânia para apresentar a OTAN como defensora da paz e da democracia. Boa parte da esquerda, com diferentes nuances e intensidades, aderiu a esta política (LITCI, UITCI, SU, etc.). Desde o início do conflito viemos desenvolvendo diversas polêmicas neste sentido. Algumas dessas correntes levantaram a consigna “armas para a Ucrânia” por fora de qualquer delimitação de classe, situando-se de fato no campo otanista.

Por outro lado, em menor escala, alguns partidos comunistas e setores do populismo latino-americano apresentam Putin - e um bloco com a China - como uma espécie de alternativa ao imperialismo e defendem que a invasão da Ucrânia é uma medida necessária de “defesa nacional” por parte da Rússia frente à OTAN.

Outra posição bastante difundida, é a da assumida pela maior parte da esquerda reformista da Europa (ver a polêmica de Santiago Lupe) que inclui setores do Die Link da Alemanha, La France Insumise, Syriza na Grécia, Podemos e o PCE no Estado espanhol, etc. Em todos estes casos, criticam a invasão russa assim como parcialmente a reação da OTAN, e defendem um cessar-fogo imediato e a mediação da UE para facilitar as negociações de paz. O conteúdo de classe dessas propostas é a articulação de “outra política exterior” mais efetiva para a defesa dos interesses dos estados da UE, ou seja, de seus próprios imperialismos.

Por último, uma variante dessa política pacifista é aquela que se baseia na ideia de que a potência chinesa representaria uma espécie de alternativa, se não progressista, ao menos mais benévola que a hegemonia do imperialismo estadunidense. Uma expressão dela defende Rafael Pouch de Feliú, que advoga pelo “multilateralismo”, crítica a subordinação europeia aos EUA e elogia uma tradição “não hegemônica” da China (que atualmente faz propaganda com sua “proposta de paz”), ou deposita esperanças em um suposto multilateralismo dos “não alinhados” ao estilo do Brasil com Lula. Maurizio Lazzarato, com quem debatemos em “Para além da ‘Restauração Burguesa”, embora afirme que “a paz não é uma alternativa”, desliza uma ideia de “mal menor” que se orienta em um sentido similar sob o argumento de que o imperialismo norte-americano “é muito mais perigoso do que o da China, o da Rússia, ou de qualquer outro país que ainda não disponha dos instrumentos militares e financeiros para saquear o mundo como os estadunidenses faz agora”. Por outro lado, existem casos como Gilbert Achcar que defendeu um campismo alinhado com o bando Ucrânia/OTAN e, mais recentemente, denunciou a administração Biden por dificultar a proposta da China como via para “a paz”.

A verdade é que a China, embora tenha visto seu acesso à todo o Leste Europeu dificultado pela guerra, pretende se beneficiar da situação conseguindo combustível barato e novas condições de aquisição de tecnologia militar, por exemplo, e avançando com a Rota da Seda via terrestre sobre o Cazaquistão, Turcomenistão, Quirguistão e Uzbequistão. Seu “modelo” é baseado em um regime de partido único e de sindicatos estatizados e burocráticos que garantem uma dura disciplina de sua enorme classe operária, base incontornável do crescimento econômico que beneficiou as grandes empresas estrangeiras e nacionais, segundo as regras do sistema capitalista internacional (FMI, OMC, etc.).

Todas essas posições acabam se colocando à reboque de algum dos “campos” reacionários em disputa, seja postulando uma vitória do campo Ucrânia/OTAN ou de Putin, seja criando ilusões em uma solução de “paz” imperialista articulada pela UE ou pela China, quando o belicismo das grandes potências está em pleno desenvolvimento. A tarefa dos revolucionários é constituir um polo contra a guerra na Ucrânia que defenda a unidade internacional da classe trabalhadora com uma política independente, pela retirada das tropas russas, contra a OTAN e o armamento imperialista, por uma Ucrânia operária e socialista, na perspectiva dos estados unidos socialistas da Europa.

Viemos de décadas de globalização imperialista dirigida sem questionamentos pelos EUA. Por isso, diante das crescentes disputas entre potências, o importante é ir contra toda ilusão no “multilateralismo”. Não existe multilateralismo de esquerda. Contra as visões que colocam esperanças no equilíbrio entre potência e blocos regionais de Estados capitalistas, a luta para semear uma política internacionalista proletária é de primeira ordem. Em oposição a essas variantes, é preciso propor um anti-imperialismo e um internacionalismo que una a classe que compõe os mais de três bilhões de trabalhadores do planeta junto com os povos oprimidos do mundo para acabar com o sistema capitalista.

Política interna e internacional: as crescentes fricções burguesas

No marco do esgotamento do avanço unilateral da integração mundial hegemonizada pelos EUA, se exacerba a contradição entre a integração internacional das forças produtivas e o retorno do militarismo das potências. A guerra na Ucrânia e as crescentes tensões geopolíticas em geral atravessam cada vez mais a política interna dos diferentes Estados, especialmente os imperialistas. Fazem isso em um nível muito superior ao que estávamos acostumados durante as décadas anteriores. Com o prolongamento da guerra e o avanço do militarismo, como tudo indica que vai acontecer - nem falar no caso de ocorrer um salto nos enfrentamentos militares - essa dinâmica vai se aprofundar ainda mais.

Thomas Friedman contou que, em um almoço com Biden, entendeu nas entrelinhas que “apesar de ter unido o Ocidente, ele teme não poder unir os Estados Unidos”. Cada vez mais se levantam as vozes republicanas em oposição à intervenção dos EUA na guerra da Ucrânia. Trump disse que a guerra poderia ter sido evitada e se concorre para “evitar a terceira guerra mundial" com uma retórica mais isolacionista. Ron DeSantis, que é o Trump com bons modos no qual o establishment republicano aposta, chegou a dizer que a Ucrânia não é de interesse estratégico para os EUA e que os Estados Unidos não deveriam tomar partido em uma disputa entre russos e ucranianos. O consenso a favor de uma guerra na Ucrânia, embora segundo as pesquisas ainda seja majoritário, se mostra desgastado por cima. Novos reveses ucranianos no teatro de operações podem contribuir mais para miná-lo. Isso também nos diz sobre um momento delicado sobre a guerra na Ucrânia em relação aos EUA.

O verdadeiro consenso entre as classes dominantes norte-americanas está no enfrentamento contra a China. À época, Trump implantou uma política mais agressiva de “guerra comercial” como parte de um processo de readequação estratégica das cadeias de valor que continua com Biden preparando o terreno para enfrentamentos superiores. Os EUA querem empurrar também a Europa para este “desacomplamento”, começando por desacoplar a Alemanha da Rússia, aproveitando o máximo possível a guerra na Ucrânia.

O envolvimento dos EUA no atentado do Nord Stream põe sobre a mesa algo que é mais ou menos evidente para uma parte das classes dominantes alemãs: que a escalada contra a Rússia favorecida pelos EUA tem uma clara intenção de priorizar seus interesses em detrimento da Europa e da Alemanha em primeiro lugar. Um elemento que, por exemplo, a extrema direita da Alternativa pela Alemanha (AfD) está utilizando cada vez mais. O deputado Steffen Kotré da AfD, em uma entrevista a um meio de comunicação chinês, qualificou a explosão do gasoduto como um ato de terrorismo de estado perpetrado pelos EUA. De fundo, expressa a tensão nas classes dominantes alemãs em que, por um lado, se alinham aos EUA e, por outro, várias de suas principais transnacionais como Volkswagen, Deutsche Bank, Siemens e BASF, entre outras, buscam estreitar a relação com a China, cuja economia está amplamente integrada com a alemã e da qual a Alemanha depende, enquanto outros vão para os EUA para fugir de custos energéticos mais altos.

Neste marco, as tensões entre os diferentes setores burgueses de cada imperialismo, entre os mais transnacionalizados e os menos, entre aqueles que têm seus negócios mais vinculados à plataforma chinesa ou à norte-americana, etc., se transformarão em disputas cada vez mais abertas à medida que avancem as tensões militares e geopolíticas e a articulação dos blocos. Ou seja, na política nacional, as diferentes políticas não serão mais jogadas simplesmente pela gestão do capitalismo local e sua melhor ou pior localização sob o guarda-chuva norte-americano, mas jogarão, em perspectiva, verdadeiros alinhamentos de fundo, de confrontação amigo/inimigo no terreno internacional. É uma questão importante que faz com que a política no interior dos regimes burgueses adquirem também tendências mais “clássicas” nos termos da época imperialista.

A dinâmica dos alinhamentos

Diante do bloco liderado pelos EUA, existe um “bloco em construção” menos consolidado e em estado fluido que tem no centro uma aliança entre a Rússia e China que começou a tomar mais forma e que vem atuando como um polo de atração para vários países “emergentes”. No marco da guerra na Ucrânia, a China apoia a Rússia mas publicamente se coloca em uma posição de pretendida neutralidade. O intercâmbio entre os dois países vem se fortalecendo cada vez mais. Em 2022, as exportações chinesas para a Rússia aumentaram 12,8% - com muito peso em máquinas, automóveis e peças de reposição - e as exportações russas de petróleo para a China aumentaram 44% em dólares, enquanto que as de gás mais do que duplicaram. Nesse contexto, com a guerra na Ucrânia e as crescentes tensões sino-estadunidenses de fundo, Xi Jinping recentemente realizou sua viagem oficial para a Rússia, com uma agenda que não incluiu apenas a guerra na Ucrânia (em que a China se coloca como “promotora da paz”) mas também o aprofundamento dos laços estratégicos entre ambos os países e o panorama da “frente oriental” no pacífico onde os EUA têm uma política cada vez mais hostil, com a intenção de cercar a China.

Embora os EUA tenham conseguido alinhar atrás de si a Europa e o bloco com o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul, e embora todo um setor de países tenham votado a favor das sanções contra a Rússia, todo outro setor não os acompanhou na ONU. Como apontou Claudia Cinatti no artigo citado anteriormente, diferentemente da guerra fria, a maioria dos países desenvolveram uma “dependência cruzada” com os EUA, China e Rússia, razão pela qual estão mudando seus posicionamentos, administrando seus alinhamentos em função de interesses econômicos, de seguridade ou inclusive de afinidade política. Rússia e China, como dissemos, atuam como um polo de atração para vários países do chamado “sul global”, entre os quais se encontram potências regionais como a Índia, grande parte da África, Ásia e América Latina, e inclusive aliados históricos como a Arábia Saudita (e até Israel), que, por diversos interesses nacionais (nem sempre convergentes), não se alinharam aos Estados Unidos em votações das Nações Unidas.

Neste marco, a diplomacia chinesa surpreendeu os norte-americanos atuando como “compositora” da relação entre a Arábia Saudita e o Irã. Este último, contando com o apoio velado da China para fugir das sanções “ocidentais” pela venda de seu petróleo e para avançar no comércio de armamentos com a Rússia. Por outro lado, na África, a China avançou no último período para se tornar no principal sócio comercial de vários de seus Estados em detrimento dos EUA, Reino Unido e França. Moscou ganhou crescente peso em países como Mali e Burkina Faso em detrimento da França, como mostrou a recente viagem de Lavrov, que pode ser vista em espelho com a movimentada viagem de Macron, que teve que enfrentar a crítica pública do presidente do Congo.

O caminho ascendente do militarismo imperialista e o cenário oriental

O embate entre a integração global sob a hegemonia dos EUA, atualmente em crise, e a contestação redobrada a esta ordem mundial por parte das potências ditas "revisionistas" marcam as coordenadas da política que se continua na guerra da Ucrânia. Trata-se de questionar essa ordem unipolar, onde cada um o faz, por agora, nos termos em que os EUA vem colocando o conflito. No caso da Rússia, em termos diretamente militares, no caso da China ainda em termos de “guerra” econômica, embora com tensões crescentes no campo militar. Enquanto no caso da Rússia apontamos que ela atua como uma espécie de imperialismo militar, no caso da China assumimos que possui traços imperialistas. Como se vê nos acordos financeiros e comerciais em troca de acesso privilegiado ao saque de matérias-primas, a troca de créditos por direitos de exploração de recursos que a África e a América Latina fazem, por exemplo, de sua incipiente vocação política de buscar ser fator nas decisões internas em alguns países da periferia capitalista, o próprio Cinturão e a Rota da Seda, entre tantos outros aspectos.

É importante diferenciar entre o atual fortalecimento dessas características imperialistas e a constituição de hegemonia mundial alternativa pela China, o que implicaria um nível de enfrentamento muito maior. A possibilidade de qualquer tipo de “sucessão” da hegemonia norte-americana não será em nenhum caso pacífica, evolutiva, ou seja, não acontecerá sem guerras em grande escala. O que envolve também pensar na localização de grandes potências como Alemanha e Japão nessa disputa.

O que é novo hoje é que a disputa entre a China e os EUA, inicialmente enquadrada em termos de “guerra econômica”, está cada vez mais a par com o aumento das tensões geopolíticas/militares sobre Taiwan e o controle do Mar da China Meridional, sendo adicionado como um dos cenários mais graves de um eventual confronto entre as duas principais potências da atualidade. Somando-se à militarização progressiva da área, temos o recente acordo militar EUA-Reino Unido-Austrália (AUKUS) sobre submarinos nucleares de propulsão nuclear, dando acesso a essa tecnologia secreta dos EUA à Austrália (esclarecendo que os submarinos não carregam armas nucleares). O acordo visa adequar a presença militar ocidental no Pacífico. O primeiro objetivo é implantar, a partir de 2027 e de forma rotativa, quatro submarinos americanos e um submarino britânico na base australiana de Perth.

Nem os EUA nem a China parecem querer uma guerra por causa de Taiwan no momento. No entanto, uma sucessão de ações hostis vem tomando forma (visita de Pelosi, exercício militar chinês perto de Taiwan, avanço AUKUS, exercícios militares conjuntos entre China, Irã e Rússia no Golfo de Omã, etc.) e medidas comerciais relevantes como a restrições ao mercado internacional de microchips contra a China desde outubro de 2022. No final de janeiro deste ano, Biden chegou a um acordo com a Holanda e o Japão para aderir aos controles de exportação de semicondutores. O curso incremental dessas medidas significa que temos que enfrentar a eventualidade de um cenário de confronto militar em torno de Taiwan. É claro que um conflito dessa magnitude, mesmo no cenário limitado às ilhas taiwanesas de Matsu, na costa da China, não apenas militarmente, mas também em termos de capitalismo global, teria o potencial de "desestabilizar" o mundo. Notavelmente, Taiwan, lar da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), é o maior fabricante de semicondutores do mundo, e a China é o maior importador de chips do mundo. Trata-se de um mercado onde é muito difícil repor a produção e que, em caso de guerra, seria seriamente afetado. Isso constitui um elemento importante nos cálculos de todos os potenciais players, começando obviamente pela China.

Um conflito deste tipo não se apresenta como o mais provável no futuro imediato e não podemos que no meio das tensões haja momentos de distensão. No entanto, o que se pode afirmar é que muitas das medidas acima mencionadas fazem parte dos preparativos para um possível conflito futuro, o que de fato aumenta as perspectivas de conflito militar, mesmo além das intenções originais das partes. A forma específica como um conflito militar deste tipo pode eclodir depende de múltiplos elementos que fazem com que qualquer hipótese não possa ir além da especulação. A sua iniciação poderá tomar diferentes rumos, desde a já referida invasão das Ilhas Matsu a um bloqueio da ilha pela China, em retaliação a algum tipo de ação, como a declaração de independência ou o avanço na associação militar com os EUA. O que importa neste quadro é definir os critérios para nos situarmos, os revolucionários socialistas internacionalistas, ante um hipotético conflito armado entre a China e os Estados Unidos por causa de Taiwan.

Com este objetivo temos que partir de qual é a política que cada um dos lados continuaria na guerra. No caso dos EUA, seria a continuação de sua política imperialista de integração mundial (globalização) baseada na subordinação da China e da Rússia capitalistas e, mais especificamente, de suas tentativas de impedir que a China continue avançando como potência por questionando o papel hegemônico americano em declínio acentuado.

No caso da China, é uma continuação da política do PCCh que restaurou o capitalismo na China. Ela foi realizada ao longo da etapa anterior sob os auspícios do capital financeiro internacional e, principalmente, norte-americano. Porém, pelo peso específico que sua economia foi adquirindo, precisava – e precisa cada vez mais – projetar o capitalismo chinês em termos imperialistas. Longe da ideologia que a apresenta como uma potência mais benigna, “não hegemônica”, a atual disputa imperialista com as demais potências é o curso mais ou menos inevitável da emergência da China capitalista do século XXI. Ou seja, uma eventual invasão de Taiwan não seria, sob nenhum ponto de vista, uma medida defensiva, como poderia ser o caso, por exemplo, de um Estado operário que está prestes a ser atacado, como apontou Trotsky a respeito Finlândia em 1939, embora a ação da burocracia naquela época, do seu ponto de vista, trouxesse mais mal do que bem. Em vez disso, seria uma extensão da política restauracionista, onde a atual China capitalista busca romper o cerco para ampliar seus traços imperialistas, traduzindo sua influência econômica global em poder político-militar.

No caso de Taiwan, desde o surgimento da China como potência capitalista e suas crescentes disputas com os EUA, sua política tem sido cada vez mais tensa entre os dois pólos. Tal processo vem desde 1986 com a criação do Partido Democrático Progressista (DPP) que vem a agrupar grande parte das correntes que defendem a independência de Taiwan. Em 2014 ocorreu o movimento Girassol, no contexto com o qual cerca de 200 estudantes ocuparam o parlamento contra o acordo de livre comércio com a China (Trade in Services Agreement) promovido pelo governo de Ma Ying-jeou do Koumintang e que contou com o apoio de grande parte da burguesia taiwanesa. O acordo não se concretizou e finalmente, em 2016, Tsai Ing-wen do DPP assumiu a presidência, sendo reeleita em 2020. Atualmente, a política de Taiwan encarnada pelo governo do Partido Democrático Progressista de Tsai Ing-wen consiste no alinhamento cada vez mais ofensivo com o imperialismo estadunidense. Um alinhamento não isento de tensões internas. Recentemente, enquanto Tsai Ing-wen estava em sua viagem aos EUA, Ma Ying-jeou estava viajando para a China expondo essas tensões internas que atravessam a ilha e sua própria burguesia entre os negócios com a China e a dependência política, econômica e militar dos EUA.

Em suma, no caso de um confronto militar entre China e EUA por causa de Taiwan, e a partir da definição dos traços imperialistas da China, seria uma guerra reacionária em que o derrotismo de ambos os lados seria considerado como definição central. O desenvolvimento concreto da guerra ditará as definições complementares que devem ser feitas. Essa definição quanto ao posicionamento dos socialistas internacionalistas diante de um possível conflito desse tipo é hoje imprescindível.

[PARTE 3]
TENDÊNCIAS MAIS PRÉ-REVOLUCIONÁRIAS NA LUTA DE CLASSES

Guerra, crise e luta de classes

As condições mais gerais estão motorizando um novo ciclo de luta de classes. As consequências da guerra, para além das da pandemia, já tiveram um efeito imediato nas condições objetivas dos principais processos. A inflação dos preços dos combustíveis e fertilizantes foi um fator chave nas revoltas do Sri Lanka e do Peru. Na Europa, os níveis históricos de inflação marcaram as crescentes greves no Reino Unido, são também uma das componentes em França marcadas pela luta contra a reforma das pensões, na Grécia o acidente ferroviário no final de fevereiro foi um catalisador para uma crise mais geral após anos de ajuste. Se novos capítulos da crise econômica internacional se desenvolverem, se dará sob esse contexto anterior de lutas, estendendo e exacerbando essas tendências.

Os ciclos anteriores da luta de classes – iniciados em 2010 e 2019 respectivamente – embora tenham sido marcados pela crise histórica do capitalismo em 2008 que implicou um enorme salto na desigualdade, não tiveram como pano de fundo catástrofes da magnitude como as que ocorreram na primeira metade do século XX. Com a guerra na Ucrânia, os efeitos residuais da pandemia e ainda mais se as contradições que atravessam a economia mundial se agravarem, essa situação começa a mudar e o capitalismo aproxima-se progressivamente de cenários mais “clássicos” em termos de choques. Deve-se esclarecer que com "mais clássicos" não estamos nos referindo, obviamente, a um retorno ao início do século XX, o mundo atual é muito diferente em muitos aspectos (ver, "Para além da Restauração burguesa") e em termos da subjetividade da classe trabalhadora há uma distância enorme entre a situação atual, onde viemos de décadas de “restauração burguesa”, e a do início do século passado marcada pelo surgimento das grandes organizações sindicais (partidos operários, sindicatos , etc.) e depois para a revolução russa. No seu conjunto, isto implica que temos de nos preparar para novas formas de luta de classes, mais radicais do que as que temos visto nos últimos tempos, e, por sua vez, articular formas de intervenção que respondam à situação específica (por exemplo, em torno de a luta pela frente única, táticas como os “comitês de ação”, aos quais nos referimos a seguir).

As condições geopolíticas e econômicas também estimulam governos mais duros no enfrentamento dos desafios da luta de classes. O Peru é um exemplo disso, onde o regime, apesar do alto número de mortes, não moveu um pingo e manteve, não com seu plano inicial de que Boluarte ficasse até o fim do mandato do presidente deposto Castillo, mas com a recusa de eleições imediatas, muito menos a convocação para um constituinte ou algum tipo de desvio “democrático”. Neste caso, foi possível porque o levante massivo foi, em grande parte, circunscrito aos setores camponeses e precários de certas regiões como Puno, Cusco, etc. O protagonismo desses setores deu radicalidade ao processo, porém, a classe trabalhadora dos setores mais estratégicos permaneceu desmobilizada sob a liderança da burocracia da CGTP. A postura mais dura da burguesia também pode ser vista na resposta ensaiada do primeiro-ministro Sunak, no Reino Unido, à onda de greves que assola o país. O exemplo mais marcante nesse sentido é o do próprio Macron, que usou um mecanismo totalmente bonapartista como o artigo 49.3 para aprovar a reforma da previdência sem votação, apesar da rejeição da ampla maioria da população.

Nesse quadro, a nova onda da luta de classes traz várias novidades importantes que podem potencialmente contribuir para a superação do estágio rebelde das últimas ondas: 1) Desenvolvendo-se tanto nos países periféricos como nos países centrais, esta nova onda tem o seu centro na Europa. 2) Setores do movimento de massas tendem a radicalizar diante do endurecimento dos governos capitalistas e das classes dominantes. 3) Tanto o contexto da guerra na Ucrânia quanto os desequilíbrios da economia mundial tendem a agudizar os confrontos. 4) Vemos uma maior centralidade da classe trabalhadora. No Reino Unido, com greves que incluem enfermeiros, paramédicos, carteiros, ferroviários, bombeiros, motoristas de transporte público e professores universitários, entre outros. Na França, com a luta contra a reforma previdenciária de Macron, que se tornou um verdadeiro movimento de massas de amplas camadas da classe trabalhadora estendida em escala nacional. Também na Grécia, a luta de classes que se desenvolveu após o acidente ferroviário que deixou 57 mortos e colocou sobre a mesa todas as consequências de anos de ajustamento estrutural, contra o qual, para além das manifestações, houve uma greve que incluiu os transportes, a saúde, portos, etc. (Ver "A Primavera de Greves na Europa e as Potencialidades da Classe Trabalhadora" de Josefina Martínez). Na América Latina, a situação mais radical foi a resistência ao golpe no Peru, que envolveu um bloco social de camponeses, indígenas, trabalhadores informais, do interior do país, com tendências a convergir com setores da classe trabalhadora no cidades que não terminaram se desenvolvendo, e o regime conseguiu manter o movimento isolado que depois retrocedeu. Como parte dessa onda, a rebelião ocorreu no Sri Lanka e, antes disso, a luta contra o golpe em Mianmar (o sul e o sudeste da Ásia estão emergindo como uma área "quente" da luta de classes).

A França como o centro da luta de classes hoje

O centro da luta de classes neste momento está na França e, de forma mais geral, na Europa. Macron aspirava fortalecer a projeção do imperialismo francês como potência no cenário internacional, bem como promover uma série de reformas estruturais no país. Se, na arena internacional não conseguiu desempenhar um papel significativo no contexto da guerra na Ucrânia e perdeu influência na África, internamente sua autoridade encontrou um desafio fundamental com o movimento massivo contra a reforma previdenciária, enquanto na Assembleia Nacional foi isolado e atingido tanto pela esquerda do NUPES quanto pela direita do lepenismo. Como aponta Juan Chingo: “Quanto à crise atual, ela ocorre em um contexto internacional de maior competição que coloca o capitalismo francês em dificuldades. Nesse sentido, acredito que a guerra ucraniana também desempenha um papel no endurecimento da burguesia francesa. Ao contrário de um período anterior em que existia a ilusão de desenvolvimento pacífico entre as potências imperialistas, o aumento do orçamento de defesa mostra que isso não é mais assim”.

Muito da dureza que a classe trabalhadora francesa vem mostrando tem a ver com o caráter marcadamente bonapartista da própria Quinta República, em um país que é o próprio berço do conceito de bonapartismo. Macron apela cada vez mais para esses mecanismos da Quinta República idealizados em 1958 por De Gaulle. Naquela época, a França estava à beira de uma guerra civil, perdendo seu controle colonial na Argélia e acabara de perder o Canal de Suez. O general De Gaulle assumiu plenos poderes e elaborou o projeto de constituição que, com algumas modificações, rege a França até hoje. De acordo com a própria constituição, a figura do Presidente da República é aquela que “garante o respeito pela Constituição. Assegura, com a sua arbitragem, o regular funcionamento dos poderes públicos e a continuidade do Estado”, por sua vez, também é o chefe das Forças Armadas, preside à defesa e à política externa. Seus poderes incluem poderes extraordinários caso instituições, independência, integridade territorial (colônias) e até o cumprimento de compromissos internacionais sejam ameaçados. O artigo 49.3, que concede ao primeiro-ministro o poder de aprovar uma lei, a menos que um voto de censura vença o Parlamento em 24 horas, é mais uma peça desse andaime.

O fato de, após várias jornadas de mobilizações e greves de várias categorias, e quase dois meses de mobilização, a massificação ter se mantido, tanto nas grandes cidades quanto nas médias e pequenas, mostra a profundidade do movimento. O fato de não se ter aberto uma nova dimensão de luta, ou seja, uma greve que se generaliza na perspectiva de uma greve de massas, é responsabilidade centralmente da Intersindical e da sua recusa em incorporar toda uma série de reivindicações que mudam a realidade atual de milhões de explorados, especialmente os mais precários, o que faria que o movimento tivesse mostrado uma determinação cem vezes maior que a classe capitalista. Num segundo momento do conflito, diversos setores estratégicos de vanguarda entraram em greve renovável (greves por tempo indefinido, onde assembleias frequentes vão decidindo pela sua continuidade ou não). A medida bonapartista de Macron com o uso do artigo 49.3 pôs em questão esse impasse. Com um Macron cada vez mais enfraquecido e isolado, em resposta ao decreto, milhares de pessoas imediatamente saíram espontaneamente às ruas de Paris e de várias cidades. Então um “momento pré-revolucionário” se abriu. Após o fracasso das moções de censura ao governo, a greve do dia 23/3 voltou a mostrar a dinâmica do movimento. Em particular, verificou-se o reforço qualitativo da presença da juventude, que se combinou com a continuidade da greve renovável em diferentes setores estratégicos. A multiplicação de ações espontâneas testemunhou importantes mudanças subjetivas que estão ocorrendo.

Posteriormente, como desenvolve Paul Morao neste artigo apesar da massificação das manifestações, no contexto da política de desgaste da burocracia, as paralisações em vários setores começaram a diminuir. A chave que explica a continuidade da unidade da Intersindical está na tentativa de impedir que o "momento pré-revolucionário" após o voto de 49.3, desse um salto ao mudar a relação de forças, já que a luta contra Macron havia adquirido um caráter abertamente político. Se a unidade sindical que no início do movimento podia desempenhar um papel progressista, encorajando os trabalhadores cansados ​​das divisões dos sindicatos a entrar na luta, tornou-se um obstáculo, uma barreira à radicalização, dado o peso decisivo da CFDT na sua direção, vetando qualquer tendência a uma greve geral renovável. No entanto, Macron não conseguiu um retorno à normalidade, apesar do impasse e do retrocesso da mobilização como consequência da estratégia derrotista da Intersindical, como mostram as manifestações, panelaços e diferentes lutas de protesto que estão ocorrendo.

Nesse processo, o Révolution Permanente tem desempenhado um papel muito importante na organização dos setores mais avançados. Tanto o NPA como a LO desertaram da luta pela auto-organização da vanguarda operária para poder influenciar, a partir daí, o rumo da greve contra a estratégia de desgaste do próprio movimento levado a cabo pelo burocracia sindical e impor uma verdadeira greve geral que pode derrubar Macron de forma revolucionária. O Révolution Permanente assumiu a liderança neste objetivo, apelando para táticas de reagrupar os setores em luta, promovendo a Réseau pour la grève générale (Rede para a Greve Geral). No encontro de 13 de março, na Bourse du Travail, em Paris, com mais de 600 pessoas presentes na sala e cerca de 900 que o acompanharam ao vivo por toda a França, foi um grande sucesso político. A Rede surge como um verdadeiro polo de referência vanguardista e de setores em greve renováveis ou salariais, daí a grande repercussão que teve. No dia 21/03, após a aprovação por decreto da reforma e a derrota das moções de censura, a Rede voltou a se reunir refletindo o peso da situação do fenômeno das greves, especialmente em setores estratégicos, e contando com a participação de estudantes , jornalistas e importantes intelectuais. No quadro do endurecimento dos patrões e do governo, impondo-se com métodos cada vez menos “consensuais” e mais abertamente bonapartistas, setores do movimento operário parecem estar amadurecendo em sua consciência através da experiência da luta de classes.

A realidade da Rede é que ela é muito mais ampla do que Révolution Permanente, de natureza diferente da "coordenação SNCF-RATP" (motoristas ferroviários e de ônibus de uma região parisiense) que promovemos na luta de 2019, composta por muitos ativistas , no máximo líderes locais das rodoviárias. Na Rede atual estão dirigentes sindicais de eletricidade, delegados de usinas nucleares, importantes ativistas do setor de coleta de lixo e esgotos da região de Paris, dirigentes do aeroporto Roissy/Charles de Gaulle, dirigentes de algumas fábricas importantes do setor privado e também da refinaria Total em Le Havre (Normandia) - a maior da França, e que continuou em greve após a primeira vitória legal contra a requisição em 7 de abril. Nesta cidade portuária e industrial do noroeste da França, a Rede reúne vários líderes que estão em estruturas estratégicas e em uma área industrial onde se realizaram greves e bloqueios. Já em Paris, a Rede reúne cerca de 300 ativistas independentes de 4 bairros da cidade e esteve à frente, principalmente entre os ferroviários, de uma série de greves que combinaram a luta contra a reforma da previdência com suas próprias reivindicações, em particular sobre os salários, e que tanto os sinaleiros de Bourget e do posto central de Saint-Denis, quanto os “grevistas selvagens” do centro de manutenção ferroviária de Chatillon, ganharam nesse campo. Houve também alguns relatos pontuais de pessoas de aldeias do interior que se organizaram e se consideram parte da "Rede" e continuam a estabelecer laços com grupos de luta locais, como recentemente com um grupo de sindicalistas de Toulon, mantendo a laços com grupos ambientalistas como Alternatiba e Les Amis de la Terre, fortemente envolvidos na mobilização brutalmente reprimida de Saint-Soline, bem como líderes na luta dos trabalhadores informais, como Mariama Sidibe do Coletivo dos Sem Papeis [1] de Paris, que é uma parte ativa da Rede.

A Rede, que vem se tornando conhecida, ganhando simpatia e é o único polo que critica abertamente a Intersindical em rádio e TV nacional, organizou uma coluna com mais de mil pessoas na passeata do Primeiro de Maio e um ato denunciando o retorno dos sindicalistas ao diálogo com o governo. Neste momento, apesar do descrédito na luta contra a reforma, a Rede tem-se mantido e desempenhado um papel, nomeadamente no apoio à onda de greves salariais que continua a ocorrer e que a burocracia sindical se recusou a unificar com luta pelas aposentadorias, ao mesmo tempo que faz um balanço da luta até agora, denunciando o papel da Intersindical na prevenção do desenvolvimento dos elementos mais radicais. No quadro de uma situação que se mantém em aberto, a coordenação e auto-organização devem continuar sendo reforçadas, de forma que os membros da Révolution Permanente continuarão a apostar na construção da Rede, abrindo ao mesmo tempo um debate sobre a necessidade de uma organização política, um partido anticapitalista, socialista e revolucionário que é uma ferramenta para travar essas lutas e lutar por uma alternativa à crise atual.

Este polo que constitui a “Rede” faz parte da nossa luta pela constituição de “comitês de ação”. O que implica a luta para conseguir a participação da base nos locais onde se desenvolvem, ou pelo menos de ativismo. Esta é uma batalha importante, considerando que nem na França, nem em geral, existem experiências de auto-organização no movimento operário já incorporadas que apontem para isso, o que coloca o papel dos revolucionários em primeiro plano para impulsionar essas tendências a fim de constituem instâncias como comitês de ação. Isso é fundamental, tanto para nosso desenvolvimento na França na luta contra a burocracia, o centrismo e os neorreformistas, quanto para nossa hipótese estratégica mais geral como FT-QI e para as possibilidades de avançar na construção de um partido revolucionário na França .

É, por sua vez, um traço distintivo do FT-QI que temos procurado colocar em prática em todos os momentos em que a luta de classes nos permitiu fazê-lo. Foi também o que o PTR fez no processo chileno de 2019 nos diferentes lugares onde teve que intervir e promover o Comitê de Emergência e Proteção em Antofagasta, que veio organizar boa parte da vanguarda da região e conquistar uma importante frente única durante a greve de 25 de novembro daquele ano.

Deve-se notar que a tática dos "comitês de ação" foi recomendada por Trotsky aos trotskistas franceses para aproveitar cada elemento de radicalização que aparece na realidade para organizar a vanguarda e os setores das massas que saem à luta em permanente instituições de coordenação e unificação como único meio para quebrar a resistência dos aparelhos da burocracia sindical e reformista e impor a Frente Única. Ao mesmo tempo, sustentava que essas instituições eram o caminho para multiplicar por dez a autoridade e a influência dos revolucionários e dos setores mais avançados e determinados. Os comitês de ação não são equivalentes aos sovietes. “Não se trata de uma representação democrática de todas as massas, mas de uma representação revolucionária das massas em luta”, disse Trótski. Mas ao mesmo tempo acrescentou que "sob certas condições, os comitês de ação podem se tornar sovietes", e deixou claro que os sovietes russos, em seus primeiros passos, "não eram de forma alguma o que se tornaram mais tarde, e mesmo naquela época eles frequentemente levavam o nome modesto de comitês de trabalhadores ou comitês de greve".

Embora tenhamos desenvolvido este ponto em outros materiais, é importante mantê-lo em mente, pois o desenvolvimento de instituições como os comitês de ação são hoje o caminho pelo qual os trabalhadores podem avançar para tomar as lutas em suas próprias mãos. No caso da França, superar a linha de marchas e mais marchas sem perspectivas propostas pela Intersindical e lutar para impor uma verdadeira greve geral. Diante do desenvolvimento da situação em sentido revolucionário, o desenvolvimento dos comitês de ação dá perspectiva ao surgimento de organizações de tipo “soviético”, não há muro entre as duas formas. A luta pelo desenvolvimento de instituições do tipo “comitê de ação” para a coordenação e reagrupamento dos setores em luta é fundamental para potencializar a influência política dos revolucionários no processo e para a luta programática. Ao mesmo tempo, pode nos permitir conquistar setores importantes da vanguarda para o programa revolucionário, estabelecer uma nova tradição na luta de classes e fortalecer a perspectiva de construção de um partido revolucionário na França em luta contra as tentativas de capitalização política de ambos neo-reformismo e do Mélenchon/NUPES como do Lepenismo.

Algumas Conclusões para a FT

Trótski destacou, a respeito do pensamento de Lênin, que o internacionalismo “não é de forma alguma uma forma de conciliar verbalmente nacionalismo e internacionalismo, mas uma forma de ação revolucionária internacional”. E acrescentou que, nesta concepção, “o mundo [...] aparece como um único campo de combate no qual os diferentes povos e classes travam uma guerra gigantesca uns contra os outros”. É nesta ótica internacionalista que concebemos a partir do FT-CI as diferentes intervenções que temos vindo a desenvolver em cada país em situações muito díspares.

Dos processos recentes, como FT, intervimos no levante do Peru, onde, pelo fato de sermos uma força inicial, temos lutado para estabelecer tradições e expandir a CST, avançando na instalação do grupo em Lima e fortalecimento do LID Peru. Para colaborar neste objetivo junto com os camaradas da CST, camaradas de diferentes grupos do FT foram ao Peru (da Bolívia, do Chile, do Brasil, da Argentina, incluindo A. Vilca e A. Barry, deputado nacional e legislador respectivamente). Desde o final do ano passado, o centro da luta de classes na América Latina passou pelo Peru. Atualmente, estamos diante de um recuo, em princípio parcial, da luta.

Na Argentina, onde está o PTS, que é a organização mais numerosa do FT, embora a crise do país seja profunda e se acenda a perspectiva de maiores enfrentamentos, ainda não há grandes processos de luta de classes como os que temos mencionado. É nestas condições que estamos levando a cabo uma luta preparatória fundamental para aumentar a influência política dos bandos de massas da esquerda revolucionária, não só através de uma grande agitação política "de cima", onde dezenas de referentes do PTS - nacionais e provinciais que têm sido protagonistas de múltiplas lutas e experiências – atuam como “tribunos do povo” procurando influenciar aspectos do nosso programa e estratégia com uma política hegemônica para os setores mais avançados, mas avançando numa construção partidária orientada para as estruturas estratégicas de o movimento operário e estudantil, com as assembleias do PTS e das agrupações, para juntos ampliarmos nossa capacidade de articular "volumes de forças" na luta de classes. Como parte da Frente de Esquerda, acabamos de travar uma importante batalha política em Jujuy, onde Alejandro Vilca (PTS) alcançou 12,8% dos votos como candidato a governador, colocando-nos como a terceira força, apesar das manobras fraudulentas do regime. Ao mesmo tempo, temos travado uma importante luta política sobre o programa, a estratégia e a prática política da FITU.

Agora, como dissemos, o centro da luta de classes hoje está na França. Toda a FT deve seguir com tudo para aprender e tirar conclusões dessa experiência. Apesar do fato de que a situação pré-revolucionária que se delineou após a aprovação da reforma previdenciária através do mecanismo bonapartista do artigo 49.3 não tenha se desenvolvido, a situação na França foi acumulando toda uma série de elementos pré-revolucionários durante o último período. Desde o movimento contra a legislação trabalhista em 2016 –para começar–, passando pela rebelião dos Coletes Amarelos em 2018 e todas as lutas se desenvolveram nos últimos anos até chegar ao atual movimento contra a reforma da previdência. Elementos pré-revolucionários, experiências e mudanças na consciência dos setores de vanguarda e das massas foram se coagulando, marcando o que poderíamos definir como uma ampla etapa da luta de classes na França que transcende o conflito atual.
Essa definição é fundamental, pois sugere que está aberta a possibilidade de avançar na construção de um verdadeiro partido revolucionário na França nessa etapa. Esta situação está também na origem do Révolution Permanente, que procura fazer parte do processo de constituição de um partido revolucionário em França, sendo atualmente a organização mais dinâmica do FT com centenas de militantes, que vem da luta no NPA, que conta com quadros e dirigentes do movimento operário e estudantil, dirigentes como Anasse e novas lideranças destacadas como Adrien, Elsa e Ariane, relações com importantes intelectuais como Frédéric Lordon, personalidades culturais como Adèle Haenel, dirigentes do movimento antirracista como Assa Traoré, entre outros, etc. Com base nisso, planejamos aproveitar os elementos mais radicais que a situação oferece e explorar corajosamente a possibilidade de avançar na constituição de uma organização revolucionária, socialista e internacionalista.

Por sua vez, a situação em França coloca toda uma série de questões estratégicas de intervenção, como a importância de articular reagrupamentos de setores em luta com táticas como os comitês de ação que sustentam a luta pela frente única e funcionam como elo entre a prática – e a construção – de uma organização revolucionária e a perspectiva de construir conselhos ou sovietes. Também questões programáticas, como a necessidade de uma pauta comum de reivindicações para unir a luta contra a reforma da Previdência à luta pela tabela móvel de salários contra a inflação e, após o decreto de Macron, a implantação ofensiva de nosso programa democrático radical, nada menos do que no país para o qual o próprio Trótski o formulou originalmente. Tudo isso em um processo que tem como protagonista a classe trabalhadora com seus métodos (greve, piquetes, etc.), com uma vanguarda que vem de experiências anteriores de luta, e ao mesmo tempo uma importante burocracia unida para desgastar o movimento, bem como variantes politicamente neorreformistas (NUPES) e populistas de direita que buscam capitalizar o processo.

A nossa rede internacional de jornais (que conta atualmente com 15 jornais em distintos países em 7 idiomas diferentes) deve desempenhar um papel preponderante, não só na divulgação das notícias da França e da Révolution Permanente como também na explicação muito bem do processo, das contradições que tem, pelo fracasso da estratégia da burocracia, etc. e em que consiste nossa política na França. Tudo isso explicado para que o público de diferentes países possa entender. Aproveitar para pedir a opinião de intelectuais de cada país sobre o processo francês. Também usar ofensivamente o processo e nossa intervenção para discutir com a periferia de nossos grupos. Isso é muito importante porque se fizermos bem pode nos ajudar a aproximar novos companheiros e companheiras da militância revolucionária. A passagem do companheiro Clément Allochon do Révolution Permanente pela Argentina, que incluiu sua intervenção no ato da 1ª. Maio na Plaza de Mayo, foi muito importante para o PTS nesse sentido, conversas com companheiros do Révolution Permanente no Estado espanhol também foram realizadas em fases anteriores do conflito. Propomos desenvolver este tipo de atividades internacionalistas nas principais organizações da FT-QI. Todas essas discussões afetam a qualidade dos grupos que estamos construindo. Salvando as distâncias, assim como Trótski em 1931 convocou todas as seções da Oposição de Esquerda Internacional a fazerem do acompanhamento da luta na Espanha uma prioridade, hoje todas as nossas organizações devem vibrar em torno do processo francês.

Como a França começou a mostrar, quando se desenvolvem processos profundos que colocam em pauta as tendências da greve geral, grupos de algumas centenas como o nosso com uma política correta podem desempenhar um papel na reorganização da vanguarda e dar saltos na influência política e na construção. O processo na França pode ter consequências internacionais do ponto de vista subjetivo se se desenvolvem os elementos pré revolucionários da cena, e também na medida que se desenvolvem. Temos que buscar todas as formas de aproveitá-lo como FT e em cada país.


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FOOTNOTES

[1Aqui, sem papel se refere a sem documento, como são chamados os trabalhadores informais na França
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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti

Matías Maiello

Buenos Aires
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