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SEMANÁRIO

A questão ucraniana

Leon Trótski

Tradução: Marie Castañeda

A questão ucraniana

Leon Trótski

No contexto recente da guerra na Ucrânia, publicamos a tradução de um texto de Leon Trótski sobre o país, o qual foi originalmente publicado na revista Socialist Appeal, em 9 de maio de 1939.

A questão ucraniana, que muitos governos e tantos “socialistas”, inclusive “comunistas”, tem tratado de esquecer ou relegar às profundidades da história, encontra-se novamente na ordem do dia, desta vez com força redobrada. O recente agravamento da questão ucraniana se relaciona intimamente com a degeneração da União Soviética e da Comintern [1], com os êxitos do fascismo e a iminência de uma nova guerra imperialista. Crucificada por quatro estados, a Ucrânia ocupa agora a mesma posição no destino da Europa que uma vez foi ocupada pela Polônia, com a diferença de que as relações mundiais são atualmente muito mais tensas e os ritmos do processo muito mais acelerados. No futuro imediato, a questão ucraniana está destinada a cumprir um papel importante na vida europeia. Por alguma razão Hitler defendeu tão ruidosamente a criação da uma “Grande Ucrânia”, e foi também por algum motivo que deixou esta questão de lado com tamanha rapidez.

A Segunda Internacional, expressando os interesses da burocracia e da aristocracia operária dos países imperialistas, ignorou por completo a questão ucraniana. Inclusive sua ala esquerda não lhe deu a necessária atenção. Basta lembrar que Rosa Luxemburgo, apesar do seu brilhante intelecto e seu espírito genuinamente revolucionário, considerou admissível afirmar que a questão ucraniana era a invenção de um punhado de intelectuais. Esta posição deixou uma marca profunda até com o próprio Partido Comunista Polonês. Os dirigentes oficiais da seção polonesa da Comintern viram a questão ucraniana mais como um obstáculo que como um problema revolucionário. Por isso as constantes tentativas oportunistas de desviar esta questão, suprimi-la, passar silenciosamente por cima dela ou adiá-la para um futuro indefinido.

O Partido Bolchevique, não sem dificuldade e só gradualmente sob a constante pressão de Lênin, pôde adquirir um ângulo correto da questão ucraniana. O direito à autodeterminação, ou seja à separação, foi estendido igualmente por Lênin tanto para os poloneses, como para os ucranianos. Ele não reconhecia nações aristocráticas. Considerava toda tentativa de desviar ou adiar o problema de uma nacionalidade oprimida uma expressão do chauvinismo grão-russo.

Depois da tomada do poder, uma séria luta aconteceu no partido pela solução dos numerosos problemas nacionais herdados da velha Rússia czarista. No seu caráter de comissário do povo para as nacionalidades, Stálin representou invariavelmente a tendência mais burocrática e centralista. Isso ficou evidenciado especialmente na questão da Geórgia e na da Ucrânia [2]. Até esta data, a correspondência sobre estas questões não foi publicada. Esperamos poder editar a pequena parte da qual dispomos. Cada linha de cartas e propostas de Lênin vibra com a urgência de compensar na medida do possível aquelas nacionalidades que haviam sido oprimidas no passado. Em vez disso, nas propostas e declarações de Stálin, destacava-se invariavelmente a tendência ao centralismo burocrático. Com o fim de garantir “necessidades administrativas”, ou seja, os interesses da burocracia, as mais legítimas reivindicações foram declaradas manifestações de nacionalismo pequeno-burguês. Estes sintomas já podem ser percebidos precocemente em 1922-1923. Desde essa época, tem tido um crescimento monstruoso, levando a uma completa asfixia a qualquer tipo de desenvolvimento nacional independente dos povos da URSS.

Na concepção do velho Partido Bolchevique, a Ucrânia soviética estava destinada a se transformar no poderoso eixo em torno do qual se unificariam as outras seções do povo ucraniano. Durante o primeiro período da sua existência, é indiscutível que a Ucrânia Soviética foi uma poderosa força de atração em relação às nacionalidades, assim como estimulou a luta dos operários, dos camponeses e da intelectualidade revolucionária na Ucrânia Ocidental escravizada pela Polônia. Porém, durante os anos de reação termidoriana, a posição da Ucrânia Soviética e com ela, a defesa da questão ucraniana mudou bruscamente de conjunto. Quanto mais profundas foram as esperanças despertadas, mais tremendas foram as desilusões.

A burocracia também estrangulou e saqueou ao povo da Grande Rússia. Mas nas questões ucranianas as coisas se complicaram ainda mais pelo massacre das esperanças nacionais. Em nenhuma outra parte as restrições, expurgos, repressões e, em geral, todas as formas de tirania burocráticas assumiram dimensões tão assassinas como na Ucrânia, ao tentar esmagar poderosos desejos de maior liberdade e independência profundamente enraizados nas massas. Para a burocracia totalitária, a Ucrânia Soviética se transformou em uma divisão administrativa de uma unidade econômica e uma base militar da URSS. Que não fique qualquer dúvida: a burocracia de Stálin levanta estátuas em memória de Shevchenko mas o faz somente com o objetivo de esmagar mais minuciosamente o povo ucraniano sob seu peso e obrigá-lo a cantar hinos da camarilha estupradora do Kremlin na língua do Kobzar [3].

No que diz respeito às partes da Ucrânia que hoje estão fora de suas fronteiras, a atitude atual do Kremlin é a mesma que com todas as nacionalidades oprimidas, as colônias e semicolônias; são moedas de troca nas suas combinações internacionais com os governos imperialistas. No recente 18º Congresso do “Partido Comunista”, Manuilski, um dos mais repugnantes renegados do comunismo ucraniano, explicou com bastante franqueza que não somente a URSS, mas também a Comintern (a “falsa-união”, segundo a formulação de Stálin) se negavam a garantir a emancipação dos povos oprimidos quando seus opressores não eram inimigos da camarilha moscovita no poder. Stálin, Dimitrov e Manuilski defendem atualmente a Índia contra o Japão, mas não contra a Inglaterra. Os burocratas do Kremlin estão dispostos a ceder definitivamente a Ucrânia Ocidental para a Polônia em troca de um acordo diplomático que lhes pareça proveitoso. Estamos longe dos dias nos quais não se atreviam para além de combinações episódicas.

Não ficou nenhum resquício da anterior confiança e simpatia das massas ucranianas com o Kremlin. Deste o último “expurgo” assassino na Ucrânia, ninguém quer que o Oeste passe a ser parte da satrapia do Kremlin que continua levando o nome da Ucrânia Soviética. As massas operárias e camponesas da Ucrânia Ocidental, de Bukovina, dos Cárpatos ucranianos estão confusas. A quem recorrer? O que pedir? Esta situação desvia naturalmente a liderança para as camarilhas ucranianas mais reacionárias, que expressam seu “nacionalismo” tratando de vender o povo ucraniano a um ou outro imperialismo com o pagamento de uma promessa de independência fictícia. Em cima desta trágica confusão Hitler baseia sua política na questão ucraniana. Dissemos um uma ocasião: se não fosse Stálin (por exemplo, com a política fatal da Comintern na Alemanha), não haveria Hitler. A isso se pode agregar agora: se não fosse pela violação da Ucrânia Soviética por parte da burocracia stalinista, não haveria política hitlerista na Ucrânia.

Aqui nós não vamos nos parar para analisar os motivos que fizeram Hitler descartar, ao menos por um tempo, a consigna de a “Grande Ucrânia”. Estes motivos devem ser buscados, por um lado, nas fraudulentas combinações do imperialismo germânico e, por outro, no medo de evocar um espírito maligno que seria dificilmente exorcizado. Hitler presenteou os Cárpatos ucranianos aos carniceiros húngaros. Ainda que não o fez com a aprovação expressa de Moscou, sim ao menos com a segurança de que esta aprovação viria no futuro. É como se Hitler tivesse dito a Stálin: “Se eu estivesse me preparando para atacar a Ucrânia Soviética amanhã, teria tido os Cárpatos nas minhas mãos”. Em resposta, Stálin, no 18º Congresso, pronunciou-se abertamente em defesa de Hitler contra as calúnias das “democracias ocidentais”: Hitler tenta atacar a Ucrânia? Nada disso! Brigar com Hitler? Não há o menor motivo para fazê-lo. Obviamente Stálin interpreta como um sinal de paz a transferência dos Cárpatos ucranianos para a Hungria.

Isso significa que parte do povo ucraniano se transformou em moeda de troca para os cálculos internacionais do Kremlin. A Quarta Internacional deve compreender claramente a enorme importância da questão ucraniana não somente no destino do leste e sudeste europeus, mas na Europa de conjunto. Trata-se de um povo que demonstrou sua viabilidade, numericamente igual à população da França e que ocupa um território excepcionalmente rico e, além disso, da maior importância estratégica. A questão do destino da Ucrânia está colocado em todo seu alcance. É necessária uma consigna clara e definida, que corresponda à nova situação. Na minha opinião existe na atualidade apenas uma consigna: Por uma Ucrânia Soviética de operários e camponeses, unificada, livre e independente.

Este programa está, antes de tudo, em contradição irreconciliável com os interesses das três potências imperialistas: Polônia, Romênia e Hungria. Somente pacifistas irrecuperavelmente imbecis são capazes de pensar que a emancipação e a unificação da Ucrânia pode ser levada adiante por meio de tratados diplomáticos passivos, referendos ou decisões da Liga das Nações etc. Logicamente, não são melhores as soluções propostas pelos “nacionalistas”, que consistem em se colocar à serviço de um imperialismo contra o outro. A estes aventureiros, Hitler lhes deu uma lição inestimável jogando (por quanto tempo?) os Cárpatos aos húngaros, que imediatamente exterminaram não poucos ucranianos leais. Enquanto a questão dependa do poderio militar dos estados imperialistas, a vitória de um bando sobre o outro só pode significar um novo desmembramento e uma vassalagem ainda mais brutal do povo ucraniano. O programa de independência da Ucrânia na época do imperialismo está direta e indissoluvelmente ligada ao programa da revolução proletária. Seria criminoso alimentar qualquer ilusão neste sentido.

“Mas…”, gritaram em coro os “amigos” do Kremlin, “a independência da Ucrânia Soviética significaria sua separação da URSS?”. “O que isso tem de tão terrível?”, contestamos. O culto apaixonado das fronteiras estatais é alheio a nós. Não sustentamos a posição de uma totalidade “unificada e indivisível”. Afinal, inclusive a constituição da URSS reconhece o direito de seus povos federados à autodeterminação, ou seja, à separação. Assim, nem sequer a própria oligarquia do Kremlin se atreve a negar este princípio, ainda que só tenha vigência no papel. A mais mínima tentativa de colocar abertamente a questão da uma Ucrânia independente significaria a imediata execução sob a acusação de traição. Mas é precisamente este equívoco desprezível, essa perseguição implacável de todo pensamento nacional livre, que levou as massas trabalhadoras da Ucrânia, em um grau muito maior do que as da Grande Rússia, a considerar o governo do Kremlin como monstruosamente opressivo. Frente a uma situação interna com estas características, é naturalmente impossível falar de uma união voluntária da Ucrânia Ocidental à URSS, tal como esta é atualmente. Consequentemente, a unificação da Ucrânia pressupõe a libertação da Ucrânia Soviética da bota stalinista. Também nesta questão a camarilha bonapartista colherá o que plantou.

“Mas isso não significaria a debilitação militar da URSS?” uivarão com horrores os “amigos” do Kremlin. Respondemos que a debilitação da União Soviética se deve às tendências centrífugas em permanente crescimento que gera a ditadura bonapartista. No caso da guerra, o ódio das massas com a camarilha governante pode levar ao colapso das conquistas de Outubro. A fonte dos sentimentos derrotistas é encontrada no Kremlin. Em vez disso, uma Ucrânia Soviética independente se transformará, ainda que só fosse por interesse próprio, em um poderoso baluarte do sudeste da URSS. Quanto mais cedo a atual casta bonapartista for minada, derrubada, esmagada e varrida, mais firme se tornará a defesa da República Soviética e mais seguro será seu futuro socialista.

Naturalmente, uma Ucrânia independente de operários e camponeses poderia logo se unir à Federação Soviética; mas voluntariamente, sob condições que ela mesma considere aceitáveis, o que por sua vez pressupõe uma regeneração revolucionária da URSS. A autêntica emancipação do povo ucraniano é inconcebível sem uma revolução ou uma série de revoluções no Oeste, que possam conduzir, em última instância, à criação dos Estados unidos soviéticos da Europa. Uma Ucrânia independente poderá se unir a esta federação como membro igualitário e sem dúvida o faria. A revolução proletária na Europa, por sua vez, não deixaria em pé nem uma pedra da repugnante estrutura do bonapartismo stalinista. Neste caso, seria inevitável a estreita união dos Estados unidos soviéticos da Europa e a regenerada URSS, e representaria infinitas vantagens para os continentes europeu e asiático, incluindo, é claro, a Ucrânia. Mas aqui nós estamos nos desviando para questões de segunda ou terceira ordem. A questão da primeira ordem é a garantia revolucionária da unidade e independência da Ucrânia de operários e camponeses na luta contra o imperialismo, por um lado, e contra o bonapartismo de Moscou, por outro.

A Ucrânia é especialmente rica em experiências de falsos caminhos de luta para conseguir a emancipação nacional. Ali tudo foi testado: a Rada (governo) pequeno-burguês e Skoropadski, Petlura, uma “aliança” com os Hohenzollern e combinações com a Entente [4]. Depois destes experimentos, somente cadáveres políticos podem seguir depositando esperanças em qualquer fração da burguesia ucraniana como líder da luta nacional pela emancipação. Unicamente o proletariado ucraniano é capaz não somente de realizar esta tarefa, revolucionária em essência, mas também de tomar a iniciativa para conseguir sua solução. O proletariado e somente o proletariado pode congregar em torno de si as massas camponesas e a intelectualidade nacional genuinamente revolucionária.

No começo da última guerra imperialista, Melenevski (“Basok”) e Skoropis-Yeltujovski tentaram colocar o movimento de libertação ucraniano sob a ala de Ludendorff, general dos Hohenzollern. Para fazê-lo se disfarçaram de esquerdistas. Os marxistas revolucionários os expulsaram com uma patada. Essa é a forma na qual devem atuar os revolucionários no futuro. A iminente guerra deverá criar uma atmosfera favorável a todo tipo de aventureiros, caçadores de milagres e buscadores do velo de ouro [5]. Estes cavaleiros, que tem preferência especial por esquentar suas mãos no fogo da questão nacional, não devem ser admitidos nas fileiras do movimento operário. Nem mais compromissos com o imperialismo, seja fascista ou democrático! Nem a mais mínima concessão aos nacionalistas ucranianos, sejam clericais-reacionários ou liberal-pacifistas! Não à “frente popular”! Completa independência do partido proletário como vanguarda dos trabalhadores!

Essa me parece a política correta para a questão ucraniana. Falo de aqui pessoalmente e em meu próprio nome. Esta discussão corresponderá em primeiro lugar aos marxistas revolucionários ucranianos. Os escutaremos com grande atenção. Mas lhes convém apressar-se! Resta pouco tempo para preparativos!


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FOOTNOTES

[1A Internacional Comunista, ou Terceira Internacional, que foi dissolvida pelo stalinismo em 1943, NdT.

[2No verão de 1922 surgiram desacordos sobre a maneira como a Rússia controlava as repúblicas russas da Federação Soviética. Stálin estava prestes a apresentar uma nova constituição, muito mais centralista que sua antecessora em 1918, que restringia os direitos das nacionalidades não russas transformando a Federação de Repúblicas Soviéticas em uma União Soviética, ao que se opunham com todas suas forças os georgianos e ucranianos. Lênin no início apoiou Stálin mas, em dezembro de 1922, depois de receber o informe de uma comissão investigativa independente que havia enviado para a Geórgia, mudou de opinião sobre os acontecimentos ocorridos naquela região. Defendeu então os direitos dos georgianos, ucranianos e outras nacionalidades não russas eram mais importantes que as necessidades de centralização que defendia Stálin. Lênin expressou essa opinião no seu artigo “Sobre a questão nacional e a ‘autonomização’”(Obras completas, T.36).

[3Taras Shevchenko (1814-1861): poeta ucraniano que chegou a ser considerado o pai da literatura nacionalista do seu país. Fundou uma organização para promover igualdade social, a abolição da escravidão etc, e segue sendo o símbolo das aspirações e objetivos do povo ucraniano. Kobzar foi seu primeiro livro de poesias (publicado em 1840), considerado geralmente como uma das mais grandes obras da literatura ucraniana. O título vem de um antigo instrumento de cordas e simboliza a variada herança ucraniana.

[4Pavel Skoropadski (1873-1945): general do exército czarista, em 1918 foi durante um breve período o governador fantoche da Ucrânia quando as tropas alemãs ocuparam o país e dissolveram a Rada. Seu regime caiu depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.
Simon V. Petlura (1877-1926): foi socialdemocrata de direita antes da Revolução. Em junho de 1917 foi designado como secretário geral para assuntos militares da Rada ucraniana, e aliou com a Polônia na guerra soviético-polaca de 1920.

[5Figura da mitologia grega, corresponde a uma espécie de talismã que outorgava a quem o possuísse prosperidade e poder, NdT
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