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A natureza do capitalismo é capitalizar a natureza: uma análise da mineração predatória em Minas Gerais

Mafê Macêdo

A natureza do capitalismo é capitalizar a natureza: uma análise da mineração predatória em Minas Gerais

Mafê Macêdo

Contraditoriamente ao clima esperançoso que nos é depositado todo início de ano, fomentando a ideia de que as coisas serão melhores no ano que começa, Janeiro se tornou, para milhares de trabalhadores, sinônimo de enchentes, desabamentos, invasão de lama, mortes e destruição de casas. Sinônimo de tragédias capitalistas que, embora vistas por muita gente como “desastres naturais”, poderiam ser evitadas.

Janeiro em Minas Gerais foi marcado por barragens operadas pela Vale com maior risco de desabamento, o transbordamento da barragem da Vallourec em Macacos, a ameaça de transbordamento da barragem da CSN em Congonhas. Além do risco de rompimento da barragem hidrelétrica da Usina do Carioca, em Pará de Minas e de algumas outras barragens hidrelétricas do estado.

Esse estado, que tem a exploração de minérios marcada na sua história, desde a escravidão, é também o local onde ocorreram crimes como o da Vale em Brumadinho, reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho como o maior desastre trabalhista mundial dessa década e classificado como o segundo maior desastre industrial do século, uma das maiores tragédias socioambientais do mundo e o pior desastre de barragem da década no mundo.

Para além da tragédia de Brumadinho, que completará 3 anos em 25/01, o rompimento de barragens de rejeito de mineração em Minas não tem sido exceção, mas uma regra. O histórico de rompimento conta com: Rio Verde, em Nova Lima (2001), Rio Pomba Cataguases, em Miraí (2007), Herculano, em Itabirito (2014), Samarco-Vale-BHP, em Mariana (2015) e Córrego do Feijão, em Brumadinho (2019).

Todos esses territórios passam pelo o que passou a ser chamado de Terrorismo de Barragem, por abrigarem trabalhadores “barrageiros” e outras milhares de pessoas que, embora não tenham tido contato direto com a lama, passam a ser atingidas também, por perderem em decorrência desses crimes seus sonhos, amigos, familiares, trabalho, fontes de renda e a perspectiva de seguir em frente. Há traumas pelo o que aconteceu, angústia pelo o que acontece todos os dias e muito medo do que ainda pode vir a acontecer.

Os ocorridos em Minas Gerais neste Janeiro de 2022 foram resultados da mineração predatória que, como uma forma concentrada de exploração, que serve ao lucro e não as necessidades humanas, preparou a terra para que houvessem deslizamentos na ocorrência de chuvas. Reduzindo a natureza, vidas humanas e animais a um patamar de subordinação ao lucro no capitalismo.

A situação atual conta com 374 cidades em emergência, quase 27 mil desalojados e 25 mortos desde o início das tempestades deste ano. Em Ouro Preto, o casarão colonial Solar Baeta Neves, patrimônio histórico construído no século XIX, foi soterrado devido a um deslizamento. Em Nova Lima, o transbordamento de um dique de contenção da Mina de Pau Branco, da empresa Vallourec, inundou a BR-040. Em Capitólio, banhistas foram atingidos pelo deslizamento de rochas do cânion do Lago de Furnas.

Além disso, 3 barragens: Forquilha III, em Ouro Preto; B3/B4, em Nova Lima; e Sul Superior, em Barão de Cocais; encontram-se em situação de emergência, sendo que três delas já estão no nível 3, que significa rompimento iminente ou em curso. Todas as 3 são operadas pela Vale S.A e próximas a cidades que, juntas, têm população estimada em 255 mil pessoas. Além destas, com os níveis de chuva acima da média histórica, outras 33 barragens de rejeito de minério em Minas Gerais encontram-se em situação de emergência. Atualmente, mais de 10.000 terceirizados trabalham 12 horas por dia, em áreas insalubres, perigosas e de risco permanente.

A mineração predatória, sempre a serviço do lucro capitalista, gera inúmeras consequências negativas, que causam mortes e inúmeros danos na vida das populações que vivem ao redor de atividades minerais. Algumas dessas consequências, segundo a Nota Técnica desenvolvida pelo Polos de Cidadania, programa de pesquisa-extensão da UFMG, “Dano-morte, Necroeconomia e Dano existencial no rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho, MG.”, são: exposições ambientais tóxicas de trabalhadores e moradores através da água, do solo e do ar contaminados com metais pesados vazados dos rejeitos das minas, o que gera o consumo de alimentos contaminados e se liga ao aumento de casos de câncer e de doenças neurológicas, respiratórias, dermatológicas e gastrointestinais; condições de trabalho perigosas que expõem os trabalhadores a situações de risco como explosivos, desabamentos de minas, poeira, gases e substâncias tóxicas; respostas violentas na repressão de protestos contrários às atividades de mineração; facilitação de doenças transmitidas por vetores, como insetos pela má manutenção da infraestrutura; e aumento do estresse e de transtornos mentais quando as atividades de mineração provocam violência, pobreza ou outras perturbações na comunidade.

Além disso, segundo a referida nota, a mineração também apresenta formas indiretas de morte e dano, como causar a perda de territórios tradicionais e ancestrais, através do deslocamento imposto ou da venda forçada de terras, retirando dos membros da comunidade recursos de sustento, cultura e bem-estar espiritual; provocar a queda de rendimentos agropecuários, seja por causa da contaminação do meio ambiente ou da escassez de água pelo superconsumo da mineração e gerar maior pobreza e desigualdade de renda e tensões comunitárias, a separando entre grupos “pró” e “anti-mineração”.

A expropriação de povos originários, camponeses e trabalhadores em prol da mineração, em Minas Gerais, assim como o desflorestamento, plantações, pecuária extensiva para a exportação aos países capitalistas centrais, no Brasil como um todo, contribui decisivamente para a ofensiva do capitalismo sobre a periferia do sistema capitalista internacional e sobre os recursos naturais.

Em Minas Gerais, o modo de vida e os direitos dos povos originários são constantemente e cada vez mais ameaçados; as populações locais de ribeirinhos, pescadores e agricultores são atingidas com a contaminação de minérios e, ainda assim, abre-se um espaço para a entrada ainda maior do capital estrangeiro explorar as terras e com cada vez menos fiscalização.

A irresponsabilidade predatória das empresas mineradoras se soma à cumplicidade dos governos reacionários de Zema e Bolsonaro que atuam na flexibilização das leis ambientais. Entretanto, vem de décadas a falta de ações robustas de prevenção dos acidentes de trabalho e grandes desastres. O crime da Samarco no município de Mariana em 2015, por exemplo, ocorreu quando Dilma estava na presidência e Pimental enquanto governador de Minas Gerais. O boom no valor da commodities têm determinado as ações das mineradoras que atuam com a complacência e o silêncio cúmplice do Estado em todos os seus níveis.

Todos esses riscos dizem sobre a priorização do lucro à vida e ao bem-estar humano e isso resulta em escolhas práticas, como na decisão de métodos mais baratos na construção de barragens. Na maioria dos casos é utilizado o modelo à montante, que tem sua instabilidade mais facilmente causada por ser construída em direção aos rejeitos. Ou seja, à medida que a barragem vai se tornando mais alta e fazendo os subsequentes alteamentos (os ‘degraus’), ela tem uma inclinação, subindo sobre o rejeito. Assim, chega um momento em que se faz a barragem sobre o próprio rejeito, um material, que pelo seu teor de água, não é muito estável.

Atualmente, a mineração representa 4% do Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma dos bens e serviços produzidos no país, e contribui com 25% do saldo comercial brasileiro, segundo o Ministério de Minas e Energia. O minério de ferro, sozinho, representa 8,82% do total das exportações brasileiras, atrás apenas da soja.

Toda essa situação pode ser melhor apreendida e explicada pelo esmiuçamento da relação entre capitalismo e natureza. Como coloca Karl Marx “A produção capitalista [...] só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”. Essa dinâmica é profundamente marcada desde os primórdios do capitalismo no século XVIII, quando o funcionamento social se redimensiona em função da extração de mais valia e, a partir disso, uma parte significativa do trabalho humano se transforma em atividades que produzem valor.

A natureza não foge deste mecanismo de incorporação por parte do capitalismo. A concorrência por lucro e exploração desenfreada do meio natural foi uma grande vantagem para o modo de produção capitalista, na medida em que, como diz Marx: “As forças naturais que não custaram nada podem ser incorporadas efetivamente como agentes no processo de produção. O seu grau de eficácia depende, portanto, dos métodos e avanços científicos que não custaram nada ao capitalista.” Isso é exatamente o que acontece quando falamos de mineração predatória, tendo em vista que os capitalistas se apropriam e destroem da forma que desejam os morros de Minas Gerais, pagando somente o custo da técnica e da mão de obra dos trabalhadores, e um imposto para o Estado, o que para as grandes mineradoras representam valores baixíssimos se comparados aos seus lucros.

O capitalismo demonstrou ter uma dupla face contraditória na relação que os seres humanos foram estabelecendo com a natureza. Ou seja, por um lado, é inegável que o desenvolvimento da tecnologia no capitalismo teve um alcance civilizacional como nunca antes no plano do domínio das forças da natureza e mesmo do seu conhecimento. A explosão das Ciências Naturais na modernidade é fruto do desenvolvimento extraordinário das forças produtivas no capitalismo. Por outro lado, com desenvolvimento explorador das forças produtivas, a sua tendência para se reproduzir numa escala constante e crescente, o capitalismo é a primeira sociedade capaz de uma verdadeira catástrofe ambiental planetária, tal que pode mesmo colocar em risco os requisitos materiais para a sua existência (BURKETT, 1999, p. 68).

Pensando nisso o próprio Marx argumenta que "a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital, ou seja, o vetor estrutural que atua simultânea e contraditoriamente como alavanca e entrave ao desenvolvimento do capitalismo é a própria produção capitalista, sendo este o eixo nuclear onde se decide a evolução deste modo de produção do viver social.”

Seguindo essa lógica, a natureza é transformada em algo que não vale pelo que pode proporcionar ao desenvolvimento coletivo das capacidades e necessidades humanas, mas pelo que é passível de rentabilizar nos mercados financeiros. Segundo Chesnais:

As políticas neoliberais enfatizaram a criação de mercados financeiros especializados cujo objetivo é a imposição de direitos de propriedade sobre elementos vitais como o ar, mas também a biosfera enquanto tal, que devem deixar de ser ’bens livres’ e tornar-se ’esferas de valorização’ fundadas pela instauração de direitos de propriedade de um tipo novo (os ’direitos de poluir’) e de mercados ad hoc.

 [1]

Esta mercadorização dos recursos naturais provoca um efeito de ilusão em relação à natureza, pois esta é compreendida pelos mercados financeiros como um recurso contábil e numérico, como algo para ser usufruído como um meio para a produção de lucro e para uma cada vez maior acumulação de capital.

Um exemplo bastante emblemático disso é o fato da mineradora Vale S.A., segunda maior mineradora do mundo, dimensionar seus custos em reais e em metros quadrados, mas auferir seus lucros em dólares e em metros cúbicos e mesmo atingindo lucros cada vez maiores se recusar a pagar a indenização de 1 milhão de reais a uma parcela dos atingidos pelos seus crimes.

Um aspecto fundamental para que essa mercadorização possa acontecer se trata da separação dos trabalhadores das condições de produção. A lógica de funcionamento do capitalismo é converter de maneira irracional em mercadoria, através do trabalho humano, toda e qualquer matéria, seja em seu estado natural ou já previamente transformada pela cadeia produtiva, para a reprodução do capital.

István Mészáros, em “A teoria da alienação em Marx” diz que Marx indica o trabalho alienado como a conexão essencial entre a totalidade do estranhamento e o sistema do dinheiro. Assim, a propriedade privada é considerada apenas o produto, a consequência necessária do trabalho alienado, ou seja, da relação exterior do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

Essa alienação também diz sobre a relação dos trabalhadores com a produção científica. A ciência é instrumento essencial no conhecimento e na mediação sociedade e natureza. Entretanto, o que vemos acontecer é que com o foco no lucro e na produção de mais valia, a ciência é fomentada, apoiada e estimulada apenas quando permite elevar o volume de extração de valor proveniente do trabalho humano. Ou seja, hoje a ciência é desenvolvida fundamentalmente nas áreas onde pode, de múltiplas formas elevar a produtividade do trabalho e, consequentemente, a taxa de exploração. Sendo assim, é imprescindível o questionamento da sujeição da ciência ao capital.

A alienação na produção científica apenas pode acontecer porque a ciência é separada dos seus produtores. Isso implica a desvinculação dos trabalhadores, cientistas e estudantes das funções de coordenação, direção e gestão do processo de trabalho e de concepção dos bens a produzir.

Não é possível aceitar que pólos de produção de conhecimento como a UFMG tenha convênios com a criminosa Vale ao invés de estar ao lado dos moradores, ribeirinhos e indígenas que até hoje não tiveram sequer suas casas entregues após a destruição de territórios inteiros. Esse questionamento diz sobre a busca de uma produção de conhecimento universitário que realmente impacte o mundo positivamente e esteja a serviço da classe que move o mundo e que produz todo esse conhecimento.

Daí chega-se a uma questão fundamental, que é o fato da propriedade privada ser apagada na repercussão de crimes, como os de barragem, pela grande maioria dos ambientalistas e pela população em geral. Além de dizer sobre a natureza de classe das organizações políticas, isso demonstra o efeito da penetração da ideologia burguesa sobre o pensamento e a ação da população, dos ecologistas e dos cientistas sociais.

Na prática, a exclusão do debate sobre a propriedade privada faz com que a luta ecológica seja facilmente desarmada e que careça de estratégia real de combate à crise ambiental. É impossível imaginar o fim desta sem uma superação do modo de produção capitalista.

Uma luta ecológica que pretenda pôr realmente em xeque a destruição da natureza e dos recursos dela derivados, que combata a mineração predatória, terá de partir de uma luta anticapitalista revolucionária onde a classe trabalhadora atua como motor do movimento social mais geral. Só a luta da classe explorada e a instauração de relações de produção libertas de qualquer tipo de exploração, poderão alterar profunda e radicalmente o modo como as sociedades humanas dominam a natureza e, dessa forma, estabelecer um relacionamento harmonioso e realmente sustentável dos seres humanos com a natureza, onde não seja mais a população e o meio ambiente a pagar devido à ganância capitalista.

Não é aceitável que os capitalistas sigam lucrando enquanto a população corre risco de vida. É urgente que a ganância capitalista seja enfrentada com a luta da classe trabalhadora e da população oprimida, com os seus próprios métodos. Como através da reversão dos lucros de grandes mineradoras para um grande plano de obras públicas e atendimento imediato às famílias atingidas, da luta pela estatização das mineradoras sob gestão de trabalhadores e controle popular e de um plano para responder à catástrofe em Minas e acabar com a extração predatória fazendo com que os capitalistas paguem pelos danos que são causados por eles. Não podemos depositar nossa confiança e toda nossa força em campanhas esporádicas, medidas judiciais e projetos de lei.

Apenas outro tipo de sociedade, pode verdadeiramente estabelecer uma nova relação com a natureza e nos livrar dessas tragédias. A consideração do meio ambiente como um mero custo monetário pelo capital é incompatível com a resolução dos graves problemas ecológicos que ferem o planeta de morte. Isso porque a dinâmica de desenvolvimento do capitalismo também é incompatível com os recursos naturais disponíveis e seu ritmo próprio de reprodução. O caminho é, através da luta revolucionária, construir uma sociedade que aponte para o fim da exploração e da opressão e para um modo produção que seja verdadeiramente ecologicamente sustentável.

Referências bibliográficas:
CHESNAIS, F. Ecologia e condições físicas da reprodução social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 16, p. 39-75, 2003.
DIAS; REPOLÊS. Dano-morte, Macroeconomia e Dano Existencial no rompimento da barragem da Vale S. A. em Brumadinho, MG - Plataforma Áporo, Programa Polos de Cidadania, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. André Luiz Freitas Dias e Maria Fernanda Salcedo Repolês (Org). Belo Horizonte, MG: Marginália Comunicação, 2021, p. 55. Disponível em: https://polos.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2021/07/Nota-Tecnica-Brumadinho.pdf
MARX, Karl. O capital: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 570, 571.
MARX, K. Capital, Book II: The Process of Circulation of Capital. London: Penguin Books, 1992.
MARX, K. Capital, Book III: The Process of Capitalist Production as a Whole. London: Penguin Books, 1991.


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FOOTNOTES

[1CHESNAIS, F. Ecologia e condições físicas da reprodução social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 16, p. 39-75, 2003.
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Mafê Macêdo

Psicóloga e mestranda em Psicologia Social na UFMG
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