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A juventude contra a ditadura: lições dos ascensos estudantis de 1968 e 1977

Bianca Rozalia Junius

Kenzo

A juventude contra a ditadura: lições dos ascensos estudantis de 1968 e 1977

Bianca Rozalia Junius

Kenzo

Não são poucos os exemplos na história que apontam os estudantes como uma “caixa de ressonância” das contradições sociais. Em várias crises históricas, é justamente nesses setores em que primeiro penetram novas ideologias, novas formas de pensar, sentir e se revoltar contra a ordem estabelecida. Assim, em diversos momentos, a juventude pôde cumprir um papel de ser uma faísca para incendiar a classe trabalhadora, antecipando processos agudos da luta de classes. A história exposta neste texto sobre o movimento estudantil na ditadura buscará reafirmar justamente isso, analisando o movimento estudantil em meio à ditadura militar. Publicamos este artigo como parte do Dossiê especial 59 anos do Golpe de 1964 pelo semanário teórico-político Ideias de Esquerda.

Para compreender o que movia esses jovens no Brasil pós-golpe militar, é preciso buscar o contexto histórico em que estavam inseridos do ponto de vista internacional. A segunda metade do século XX foi o maior período de ascensos revolucionários da história, em que ocorreram processos revolucionários em inúmeros países. Havia acabado de ocorrer a revolução chinesa em 1949, acontece a revolução cubana, além dos países que, se não protagonizaram revoluções, chegaram perto, com grandes ascensos operários e populares, por exemplo o maio Francês, em 1968, que reverberou no mundo todo com mobilizações estudantis que foram o estopim para o movimento operário também.

Esse contexto ecoava na juventude de todo o mundo, gerando inquietações em todos os níveis da vida e dos costumes. Ser jovem nessas décadas era estar exposto a um sentimento “contracultura” que se desprendia justamente de toda essa convulsão política internacional. Isso se traduzia aqui em diversas expressões de teatros, livrarias marxistas e, em especial, festivais de música que geravam discussões de massas acaloradas, em torno das músicas de protesto e do “escândalo” da tropicália misturando música brasileira com suas guitarras elétricas. Assim, enquanto o regime reprimia duramente os sindicatos e movimentos sociais, no âmbito cultural tudo seguia fervilhando como nunca, carregando ainda toda a força que vinha tendo no período de ascenso revolucionário pré-golpe, sem que num primeiro momento causasse grande preocupação à ditadura, contanto que não estivesse em contato com a massa dos trabalhadores e camponeses.

Esse fenômeno no Brasil é analisado em um texto do Roberto Schwartz que se chama “Cultura e Política, 1964-1969”, em que discute como esse fervilhamento cultural da pequeno-burguesia de esquerda (que era a localização social em que se inseriam os estudantes) não era tão inofensivo quanto pensavam os militares, justamente porque é a partir dele que se politiza uma massa estudantil universitária e até mesmo secundarista, que vai servir de estopim para a rearticulação da luta contra a ditadura e contra o sistema capitalista de conjunto.

Isso é interessante para explicar porque no Brasil as mobilizações estudantis em 1968 puderam iniciar antes mesmo do impacto mundial que veio do maio francês, que ocorreu apenas dois meses depois do início das mobilizações em nosso país, que se deram em decorrência da morte de Edson Luis, em 28 de março. Isso ocorre justamente porque esse caldo cultural, que era também político, seguia fervilhando mesmo diante do golpe, e bastou uma gota d’água como esse brutal assassinato para que a revolta transbordasse das livrarias e festivais para as ruas. Nas palavras do Schwartz, que escreve quase no calor do momento em 1969:

“Durante estes anos, enquanto lamentava abundantemente o seu confinamento e a sua impotência, a intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando, editando, filmando, falando etc., e sem perceber contribuirá para a criação, no interior da pequena burguesia, de uma geração maciçamente anticapitalista. A importância social e a disposição de luta desta faixa radical da população revelam-se agora, entre outras formas, na prática dos grupos que deram início à propaganda armada da revolução. O regime respondeu, em dezembro de 68, com o endurecimento. Se em 64 fora possível a direita "preservar" a produção cultural, pois bastara liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros já constitui massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores, - noutras palavras, será necessário liquidar a
própria cultura viva do momento.”

O que deu à ditadura a certeza de que era imprescindível liquidar a cultura e reprimir a intelectualidade com o AI-5 foram os acontecimentos ali de 1968. Como já citamos, o ciclo de grandes lutas estudantis teve início com o assassinato de um estudante secundarista, Edson Luís, de 18 anos, no Rio de Janeiro. A morte dele ocorreu em um protesto no centro do Rio, em março, contra o fechamento de um restaurante estudantil que oferecia comida a preços populares, ou seja, um protesto por uma pauta de permanência estudantil. A indignação com essa morte levou cerca de 60 mil às ruas no Rio de Janeiro.

A repercussão nacional foi gigantesca e botou em cheque os militares. Inspirados por essa crise política do governo, operários da Belgo-Mineira interromperam o curso das máquinas e ocuparam a fábrica por dez dias. Em pouco tempo a greve chegou a cerca de 20 mil operários. Isso apavorou o governo e os patrões, que terminaram cedendo um abono salarial de 10%, que, no dia 1º de maio, o ditador-general Arthur Costa e Silva foi obrigado a ceder para todos os trabalhadores brasileiros.

Porém essa concessão da ditadura não conseguiu paralisar a revolta. O emblemático 1o de maio da Praça da Sé, levado adiante pelas oposições sindicais e estudantis de São Paulo, Osasco e região, fez o governador interventor da ditadura Abreu Sodré, apoiado pelos sindicalistas pelegos, sair fugido do palanque (após levar uma paulada na cabeça) para se refugiar na catedral da Sé.

Em junho, os estudantes da USP protagonizaram a ocupação da faculdade de filosofia que se estendeu até outubro, tendo seu fim com a conhecida Batalha da Maria Antônia e a morte do estudante José Guimarães com um tiro disparado pelos grupos proto-fascistas do Mackenzie e da polícia em 2 de outubro.

Em Osasco, os operários da Cobrasma resolveram em julho também cruzar os braços. A paralisação durou três dias e atingiu 6 das 11 principais fábricas da região, com ocupação de fábrica. Só que dessa vez o governo militar não tolerou o movimento, mais de 400 foram presos e Osasco foi sitiado. Interessante notar a participação estudantil nessa greve: várias das lideranças da greve surgiram do movimento de secundaristas de Osasco (em oposição a lideranças estudantis do PCB que traíram as lutas), que eram estudantes que trabalhavam de dia e estudavam à noite. Além disso, os operários contaram com campanhas de arrecadação de entidades estudantis e de teatros.

Em julho também, o Rio de Janeiro foi invadido por uma onda de protestos após a prisão do estudante Von Der Weid. Em um ato, 10 camburões policiais foram incendiados, centenas de pessoas feridas e 28 mortas. A resposta das ruas se deu 5 dias depois, com a Passeata dos Cem Mil, fenômeno-auge da mobilização estudantil em 68 e palco das famosas fotos de multidões exigindo “Abaixo a Ditadura! Povo no Poder!”.

Para erguer essas lutas, toda irreverência cultural e política dos estudantes que abordamos teve que se enfrentar com o conservadorismo de algumas correntes que estavam à frente do movimento estudantil engessando as lutas, como era o caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB) (e depois suas dissidências maoístas e guevaristas, como vamos ver). Cabe aqui um parênteses para explicar como um partido que ficou conhecido como “Partidão” no período anterior pôde cumprir papel tão nulo em um momento tão decisivo.
O PCB nos anos 60, pré-golpe, estava dirigindo a maior central sindical em meio ao maior ascenso grevístico da história até então, tinha influência no campesinato que estava mobilizado ocupando terras, tinha influência de direção em setores dissidentes das forças armadas como os marinheiros, e simplesmente deixou passar uma oportunidade histórica de dirigir as massas para uma revolução, pois acreditava que isso não cabia para o Brasil naquele momento. Fazia isso seguindo a linha histórica que tinha sido imposta desde os anos 1930 na época de Stálin, e que nessa época (por mais que muitos PCs pelo mundo, inclusive setores do PCB, falassem de “desestalinização”), continuava sendo no essencial a mesma linha traidora.

O “Partidão” simplesmente aceita o golpe, e a classe trabalhadora e o movimento estudantil ficam sem direção. Essa traição se reverte em uma enorme crise pós-golpe com uma série de rupturas e o surgimento de novas organizações influenciadas por todo tipo de vertente política internacional. Ganham peso em especial correntes guerrilheiras, como a Ação Popular (AP), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Aliança Libertadora Nacional (ALN) e tantas outras, que divergiam entre si quanto a aspectos sobre os tempos da guerrilha (se deveria ser de imediato ou não), quanto a se deveriam se deter no campo ou na cidade e outras tantas questões. Em geral, essas várias organizações novas concordavam com a necessidade de romper com a passividade do PCB, ainda que não haviam rompido com a ideia de uma revolução por etapas do partidão (ou seja, da necessidade de uma etapa democrático-burguesa na revolução, anterior ao socialismo), ou adotavam a estratégia igualmente conciliadora do maoismo e seu bloco de quatro classes.

Os militantes dessas organizações recrutavam seus adeptos tanto no movimento operário como no movimento estudantil, e foram parte de construir importantes oposições às entidades estudantis e aos sindicatos operários (com comissões de fábricas). Isso foi fundamental para que fosse possível esse turbilhão de 1968. Porém, a correta atuação de voltar às bases dos locais de trabalho e estudo se deu mais por imposição da realidade (pois era uma questão fundamental para rearticular clandestinamente a luta desde o golpe), do que por acerto político dessas organizações. Ao analisar uma dessas correntes, a VPR, Jacob Gorender explica como a forte atuação que os operários-estudantes tiveram na Cobrasma, por exemplo, era mais a partir de um “grupo informal” do que a linha política geral da organização:

“Contudo, no caso da VPR, o componente operário-estudantil de Osasco atuava com autonomia como grupo informal - conforme caracterizou Espinosa - voltado especificamente para o movimento sindical. Graças a estas vinculações, as organizações da esquerda radical imprimiram sua marca nas manifestações do movimento operário de 1968. Ao contrário do PCB, que brilha pela ausência nas lutas de massas e vê minguar sua capacidade de direção dos trabalhadores”

Pós-68 e o AI-5, comprova-se que de fato não era a linha política e estratégica dessas organizações a atuação desde as bases para autoorganizar trabalhadores e estudantes nos locais de trabalho, afinal isso foi abandonado por essas organizações quase por completo devido a sua estratégia guerrilheira, que nada tem a ver com autoorganização de base. Essas organizações tiraram de 1968 a conclusão equivocada de que não restava nada a não ser a guerrilha. Isso foi atrativo para um setor de juventude, mas não conseguiu aglutinar grandes setores de trabalhadores, além de expor a vanguarda à repressão. Isso porque, por mais heroica e abnegada que fosse a escolha de se lançar na luta armada, por fora de uma organização desde as bases dos locais de trabalho, era uma saída totalmente isolada, de uma vanguarda muito restrita.

Ou seja, não era uma estratégia de organizar greves, com trabalhadores autoorganizados em assembleias e comitês clandestinos, que teriam o poder em suas mãos para ocupar e tomar os meios de produção, e aí sim, a partir dessa organização de base, pegar em armas e tomar o poder do Estado. Era substituir a força dos trabalhadores por pólvora, porém pólvora os militares e os EUA tinham muito mais do que algumas centenas de guerrilheiros. Sem contar que o programa desses grupos guerrilheiros que surgiram era um programa de conciliação de classes, de desenvolvimento da burguesia nacional supostamente contra o imperialismo em uma “primeira etapa”, ou seja, não era defesa de uma revolução socialista.

O ideal romântico da guerrilha, que seduzia por sua promessa de “salvar as massas” a partir de umas poucas centenas, mostrou seu fiasco já no congresso da UNE em outubro de 68 que foi reprimido pelos militares. Em vez de ser realizado clandestinamente na cidade, escolheu-se por fazer em uma fazenda rural em Ibiúna, que foi facilmente encontrada (afinal gerou estranhamento nos moradores a chegada de quase 800 estudantes, a vanguarda estudantil de todo o país, em uma cidade do interior). No documentário “A Batalha da Maria Antônia”, um dos entrevistados (José Dirceu) afirma que a escolha desse local já era estarem influenciados pela ideia de guerrilha rural.

A guerrilha foi, nos anos posteriores ao AI-5 brutalmente reprimida, colocando os melhores quadros do movimento estudantil e operário na linha de fogo da ditadura, e se afastando cada vez mais da população, como afirma Gorender:
O pior de tudo era a perda de militância e base social. O engajamento total na luta armada afastava militantes e simpatizantes por falta de aptidões pessoais ou disposição ideológica. O número de adeptos baixava dos milhares às centenas e às dezenas

O ponto de vista econômico também dificultava a rearticulação dos movimentos. Nos anos seguintes ao AI-5 até meados de 1973, também se sucederam uma série de ataques e retiradas de direitos trabalhistas que fomentaram, através de um quadro de superexploração de trabalho, o período de acumulação econômico conhecido como “milagre econômico brasileiro”, junto também ao um aumento da dívida externa e em investimentos estrangeiros para a produção de bens de consumo duráveis e na exportação de produtos manufaturados além de primários.

Essa estrutura se abalou profundamente com uma crise econômica mundial em 1974, atrelada a alta do petróleo, abrindo também uma insatisfação por parte das massas que nas eleições do mesmo ano demonstraram um forte rechaço ao governo, cujo partido ARENA havia tido seu pior desempenho eleitoral até então. A situação aberta diante dessa crise também impactou a classe média, que se desgastou com o regime. Isso começa a ser base também para uma inquietação no movimento estudantil universitário e em movimentos sociais frente a carestia de vida ou por direitos democráticos.

Além da insatisfação advinda dos impactos da crise mundial, este marco demonstrou uma mudança por parte do regime militar que, mesmo mantendo o AI-5 e a repressão, começa algumas pequenas concessões a fim de atenuar os desgastes, tentando impor ao seu próprio ritmo para que esse processo de abertura política fosse de forma “lenta, gradual e segura”. Porém, esse ritmo lento não era o suficiente para conter a panela de pressão que estava por explodir. E, como de praxe, o movimento estudantil foi o primeiro sinal de alerta dessa iminente explosão operária.

Nisso, destaca-se o papel que o movimento estudantil de conjunto cumpriu nos anos 70 antes mesmo do que foi o ascenso operário do final da década, sendo parte de um fenômeno político expressivo no país, ao serem os primeiros a se levantarem publicamente com a consigna "abaixo a ditadura” militar após o AI-5 através de atos e passeatas massivas nas cidades. Este processo também foi marcante por combinar elementos subversivos de toda uma geração com um anti-burocratismo perante suas direções, levando-os a diversas decisões muitas vezes em contraponto com a linha oportunista e ao conservadorismo promovido pelas velhas direções stalinistas como o PCB, mas também se opondo frontalmente às direções guerrilheiras.

Para esses estudantes, derrubar a ditadura não aparecia como tarefa de pequenos grupos guerrilheiros, mas sim como tarefa a ser realizada pelo movimento de massas a partir da auto organização nos locais de estudo e trabalho. Surge uma vanguarda, expressa na influência que adquiriram as organizações trotskistas e as ideias da IV internacional, superando pela esquerda as visões de conciliação de classes das direções guerrilheiras, o que também é uma mostra das potencialidades do processo operário que se seguiu. Uma inflexão que marcou essa reconfiguração foi a greve na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA) em 1975. O contexto se deu no marco dos inúmeros ataques promovidos pelo então diretor da faculdade Manuel Nunes Dias, cuja gestão sucateou diversos flancos dentro da ECA devido a questões orçamentárias, inviabilizando o andamento de cursos por falta de materiais e também as péssimas condições impostas aos funcionários e trabalhadores.

Porém, um elemento central era também a sua postura extremamente autoritária dentro da faculdade, impondo diversas medidas arbitrariamente, sendo muitas vezes tais atitudes voltadas para a perseguição política. Segundo documentos da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), há registros de que Dias se reunia diretamente para repassar informações para agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), demonstrando escancaradamente a colaboração com o próprio regime enquanto uma burocracia acadêmica.

A gota d’água foi justamente a reprovação do professor Sinval Medina em seu exame de qualificação de mestrado, resultando em sua não renovação de contrato e afastamento da unidade. Tal fato gerou uma enorme indignação não só entre estudantes, como também entre docentes, sendo que três professores do Departamento de Jornalismo, inclusive o chefe de departamento naquele momento, se demitiram em solidariedade a Medina, denunciando junto a estudantes, o caráter político na avaliação de seu exame para reprová-lo e afastá-lo da universidade.

O terreno já estava em uma grande efervescência e não surpreendentemente, o papel cumprido pelos stalinistas do PCB, que neste momento era a direção do Centro Acadêmico da ECA, Centro Acadêmico Lupe Cotrim, foi de tentar desmobilizar o máximo possível a revolta gerada por este fato. Antes da própria assembleia da faculdade que deliberou a greve no dia 16 de abril, os diretores do CALC não só se posicionaram abertamente contra um movimento grevista, como chegaram a enviar um ofício à Reitoria se colocando contra concentrações e reuniões estudantis na faculdade e que não tinha convocado nenhuma assembleia.

Mesmo com a tentativa de abafamento, foi decretada a greve exigindo a renúncia de Nunes, ainda que numa assembleia com cerca de 60 estudantes. No decorrer do processo, a gestão do CALC seguiu com uma política ofensiva contrária à greve, e em uma segunda assembleia no dia 22 de abril, com mais de 200 estudantes, foi aprovada a destituição da gestão para seguir o movimento com uma condução provisória e aprovada nesta assembleia, para nas seguintes ser definida um conselho de estudantes, através de delegados eleitos em cada sala para definir tanto as eleições da próxima gestão como também para seguir enquanto organismo representativo por parte dos estudantes durante o conflito.

Este foi um momento chave para o debilitamento da influência política do PCB na ECA, assim como em toda a USP naquele período. Por outro lado, os militantes trotskistas, que vieram a conformar futuramente a Organização Socialista Internacional (OSI) e o núcleo fundador da tendência estudantil Liberdade e Luta, e que se colocavam enquanto uma oposição à gestão, puderam organizar o repúdio demonstrado pela base dos estudantes à antiga gestão e sua política de contenção do movimento para tomarem um papel de direção do conflito aberto. Na terceira assembleia em 30/04, já com cerca de 515 participantes, os estudantes rechaçam uma proposta advinda do deputado Airton Soares, do MDB, que viera à greve apenas para contê-la também, tendo em vista que a mesma começava a gerar repercussão midiática. O movimento se expande e entra também em consonância com uma campanha aberta pelo Conselho de Centros Acadêmicos na USP (CCA), naquela época, o único organismo de mobilização entre diferentes cursos, em função do não funcionamento do DCE no início da década por conta da repressão, contra o Decreto 477, que foi uma lei nacional que previa a expulsão ou demissão de professores, alunos e trabalhadores de universidades e que tinha sido aplicada em 3 estudantes em abril daquele ano. Neste momento, diversas outras pautas foram se fundindo ao movimento conforme sua expressão e apoio se expressa com outros estudantes para além da ECA, extrapolando a renúncia em si para serem reivindicadas demandas democráticas como a própria abolição do Decreto 477; do AI-5; a anistia aos presos políticos, entre outras liberdades democráticas.

No decorrer da greve da ECA, tanto o CCA como o Conselho de Representantes convocaram uma assembleia geral de estudantes, assim como paralisações em distintos cursos no mesmo dia, 8 de Maio. As assembleias seguiram com milhares de estudantes participando, chegando também delegações de apoio por parte de estudantes de outras universidades. A greve segue até junho de 1975, mas não chega a conquistar sua reivindicação original, que era a renúncia de Nunes. Ainda assim, este processo abriu uma nova situação dentro do movimento estudantil a nível nacional, dado a enorme repercussão que teve, e que conseguiu a partir de uma situação dentro da universidade expor de forma escancarada o autoritarismo do regime e sua relação dentro das próprias instituições como na universidade.

Portanto, o debate político acerca do enfrentamento à ditadura retornou em cena e se dinamizou em um primeiro momento nesta geração de estudantes que viam as mãos opressivas do regime em seu dia-dia. O movimento estudantil seguiu se desenvolvendo a partir da retomada de entidades estudantis, como o próprio DCE Livre da USP, refundado em 1976, junto a diversos outros nesse mesmo período, terem realizado a primeira manifestação pública contra ditadura pós AI-5 em 1977, assim como a própria União Nacional dos Estudantes em 1979.

É neste contexto que a atuação da OSI, e mais especificamente de seu braço estudantil “Liberdade e Luta”, que se encheu de uma juventude radicalizada que acabava de despertar para a vida política, é chamativa. Em primeiro lugar, por desenvolver uma linha política ofensiva de enfrentamento ao regime, a partir da consigna de “Abaixo a Ditadura”, não sob uma via etapista ou através da guerrilha, mas pela ação de massas e não à toa, difundiam também a necessidade da aliança operária-estudantil dentro do movimento que atuavam, para justamente a partir disso poder golpear em cheio o regime com essa potencialidade, a partir dos próprios exemplos que a juventude estudantil de conjunto estava dando naquele momento, organizando greves massivas nas universidades, assim como passeatas de milhares com um conteúdo político bem claro de desafio à ditadura.

Isso enquanto as correntes de tradição stalinista como PCB, PCdoB ou MR-8 resistiam a qualquer política nesse sentido, acreditando que a radicalização daquele momento na realidade provocaria uma contra-ofensiva pior ainda do próprio regime, preferindo adotar uma política cada vez mais de adaptação e alianças com o MDB. Em segundo lugar, a experiência dentro da Universidade de São Paulo, apesar de ser um processo muito mais amplo do que a própria Libelu poderia empalmar, foi também um palco de luta política, em que eram claras as posições divergentes entre essas correntes e que permitiram não só avanço da greve da ECA e de todo o processo subsequente a mesma, como a própria criação do DCE Livre da USP e das demais entidades estudantis, antes findadas pela própria ditadura.

Essas mobilizações estudantis foram a antessala do grande ascenso operário que emerge em 1978 em São Paulo e no ABC, que mudou a correlação de forças nacional, fazendo com que a transição “lenta, gradual e pactuada” não fosse tão lenta quanto queriam os militares. Mesmo com as fortes greves, os militares contaram com um freio que surgiu do seio da classe trabalhadora para impedir que a queda da ditadura se desse de forma revolucionária e não pactuada por vias supostamente “democráticas”. Esse freio foi justamente a figura de Lula e a atuação dos sindicalistas “autênticos”, que atuaram para abafar o potencial político das greves.

A formação do PT foi resultado da busca da vanguarda de trabalhadores para expressar-se politicamente diante do cenário de convulsão política, inclusive em um primeiro momento sem grande entusiasmo do próprio Lula , que dizia que os sindicatos e os trabalhadores não deveriam se meter na política e só reviu sua posição quando percebeu que seria superado pelo processo. Com sua eventual fundação, as direções sindicais chamadas “autênticas”, aglutinadas em torno de Lula, operam para que o partido seja amorfo estratégica e programaticamente, evitando que a base operária que se radicalizava nas greves massivas assumisse o controle do partido. A existência dessa tendência à radicalização política da vanguarda operária que foi a base ativa da construção do PT e de tendências classistas em setores de massas tornava possível a intervenção dos revolucionários no seu interior, seja para disputar os rumos do partido, seja para organizar uma fração que poderia ter sido a base da construção de um partido revolucionário no decorrer da década de oitenta.

É neste ponto em que se escancaram as contradições que carregava a corrente estudantil Libelu e a OSI. Em primeiro lugar, diante do próprio cenário do ascenso operário, pela via de uma definição revisionista advinda internacionalmente do lambertismo. O lambertismo influenciava essa corrente teoricamente e estrategicamente, e considerava os sindicatos na América Latina enquanto entidades burguesas a serviço apenas de travar a luta os trabalhadores. Essa organização adotou uma postura extremamente sectária em relação aos mesmos, levando a frente uma linha equivocada de criar e atuar em “sindicatos paralelos” frente aos já existentes, por fora de intervir e disputar onde de fato a grande parte da vanguarda operária estava concentrada naquele momento. Essa política de sindicatos paralelos, na contramão da tradição revolucionária dos quatro primeiros congressos da III Internacional e da tradição da IV Internacional se expressou também na própria caracterização do PT, visto em um primeiro momento apenas como um partido que aglutinava pelegos, cuja única expressão era a de entravar as lutas à serviço da burguesia e, no limite, da ditadura.

Essas definições eram sectárias, pois igualavam o novo sindicalismo representado por Lula, com o velho sindicalismo abertamente colaboracionista da ditadura, fazendo com que a própria OSI e seu braço jovem, a Libelu, fossem muito mais uma corrente da pequena burguesia ilustrada que se radicalizava do que uma corrente da vanguarda operária que começava a se forjar nas fábricas. Com uma orientação assim, jamais seriam capazes de influir no movimento operário, mesmo sendo uma corrente que expressava o conteúdo correto de aliança operária-estudantil. Expressão disso é que também foram incapazes de se ligar ao movimento negro que ressurgia, em conexão com o ascenso operário e com os fenomenos culturais internacionais de uma juventude negra e periférica muito antenada com as expressões culturais do povo negro nos EUA.

A própria direção lambertista internacional impôs burocraticamente um giro de 180° em relação à OSI, definindo não só que entrassem no PT, mas passassem de definir Lula como um pelego traidor”, para reivindicá-lo com uma liderança classista que poderia ser influenciada. A intervenção burocrática provocou a desmoralização da juventude, rachas internos e abriu o caminho para a diluição completa não apenas no partido, mas na direção majoritária, reproduzindo no Brasil o mesmo giro liquidacionista de adaptação ao reformismo, tal qual essa corrente fazia na França em relação ao Partido Socialista Francês, apoiando o governo de François Mitterand que iniciou o giro neoliberal na França. Entraram para se tornar conselheiros de Lula, não para construir uma ala revolucionária no interior do mesmo. Vários dirigentes estudantis da antiga Libelu se tornaram, assim, grandes quadros do petismo, corroborando com a política de conciliação de classes contra revolucionária desse partido. Outros aderiram diretamente à elite intelectual da própria burguesia. Ao fim, a geração que poderia ter aberto um novo ciclo na história da esquerda revolucionária brasileira acabou apenas jogando água no moinho da ideia tantas vezes repetida, inclusive por Caetano Veloso, de que é a teoria da revolução permanente que produz desilusão e desmoralização. A corrente “O Trabalho”, ex-Libelu e OSI, segue até hoje no PT.

Ainda assim, independente desses descaminhos, o que podemos extrair de lição é o enorme potencial subversivo e anticapitalista dos estudantes e da própria juventude enquanto um setor que pode expressar de forma radicalizada e massiva as distintas contradições da sociedade. É fundamental nos apoiarmos nesses processos históricos para refletirmos o papel que nossa geração pode ter em um momento de crise em diversos sentidos, afinal já vimos exemplos internacionais dessa radicalidade sendo expressa e também de medidas de solidariedade entre estudantes e operários em luta em cenários exuberantes como na França atualmente. A importância de um balanço acerca das distintas estratégias nos alerta acerca da possibilidade de que mesmo o empenho e disposição de luta deste setor historicamente combativo pode ser capitalizado em estratégias que não levam a uma via revolucionária. Por isso, a construção de uma organização revolucionária que pudesse confluir com este sentimento para levar a frente uma linha guiada pelos princípios de independência de classe e pelo acúmulo teórico e estratégico do que se há de mais revolucionário dentro da tradição do marxismo, torna-se fundamental para, enfim, superarmos os desafios de hoje.

Bloco de Referências

SILVA, Antonio Ozaí da . História das Tendências no Brasil (Origens, cisões e propostas). São Paulo: Proposta Editorial, 1987

OLIVEIRA, Tiago de. Reorganização do movimento trotskista no Brasil – A formação da Organização Socialista Internacionalista (1968-1976). Um capítulo da IV Internacional no Brasil. Uma contribuição à história do trotskismo no Brasil. Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal Fluminense, 2013.

MORENO, Nahuel. A Traição da OCI, 1982

CANCIAN, Renato. Movimento estudantil e repressão política : o Ato Público na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977) e o destino de uma geração de estudantes. 2008

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https://pco.org.br/uma-breve-historia-do-pco/

https://prensaobrera.com/politicas/pierre-lambert-1920-2008-2

https://rebelion.org/politica-obrera-y-el-lambertismo-el-trotskismo-duro-entre-francia-y-argentina/

GORENDER, J. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1990

SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969: alguns esquemas. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978


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Bianca Rozalia Junius

Equipe do podcast Peão 4.0 e militante do MRT
Equipe do podcast Peão 4.0 e militante do MRT

Kenzo

Estudante da Universidade de São Paulo e militante da Juventude Faísca Revolucionária
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