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COLUNA | A justiça sob o olhar do menino Miguel

terça-feira 16 de março de 2021 | Edição do dia

Nessa semana, foi anunciada a condenação de Sari Corte Real e Sérgio Hacker a pagarem uma multa de 386 mil reais em função do crime de “homicídio culposo” frente a morte do jovem Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes Renata. Para relembrar o caso, em 2 junho de 2020, o menino Miguel foi levado pela empregada para casa da patroa, por estarem em meio a uma pandemia e não haver com quem deixá-lo, e ao Mirtes sair da casa para passear com o cachorro, nos poucos minutos que Miguel ficou só, entrou no elevador e a patroa apertou o botão da cobertura e enviou o menino sozinho (o que resultou na tragédia, ao cair do 9º andar). Como bem sintetizou Marta Alves, avó de Miguel, “Eu dei 6 anos da minha vida para os filhos dela, ela não conseguiu dar 10 minutos da vida dela pra meus filhos”.

Diferente de outros milhares de casos em que mães negras que veem seus filhos perderem a vida sem nenhuma reação, a luta de Mirtes foi valente, manteve a chama da indignação viva, e resultou na multa à patroa (que, é necessário apontar, irá para o Ministério Público do Trabalho, não para Mirtes). Mas esse resultado está longe de ser chamado de “justiça”, pelo contrário. Na realidade, nos deve levar a perguntar: existe justiça em julgamentos de negros no nosso país?

A questão tem um componente histórico, um econômico e outro político. Começo pelo primeiro: a origem histórica do nosso país, como sabemos, é a espoliação imperialista de Portugal, rapidamente transformada em exploração do trabalho negro escravizado. Um contingente de milhões de negros foi escravizado no continente africano e vem ser parte da produção de riquezas no Brasil para saciar metrópole e as necessidades da realeza. Por isso, em 400 anos não se pode falar de nenhuma forma em “justiça” para a população negra e indígena brasileiras, julgamento era sinônimo de penitência.

Nas terras de Miguel e Mirtes isso foi verdade em muitos momentos. Bastaria lembrar o caso de Zumbi, em que como veredito de seu “julgamento” teve a cabeça cortada e exposta na Praça do Carmo, em Recife. Ou poderíamos citar o exemplo da Revolução Praieira, de 1848, onde as camadas populares em massa foram condenadas ao trabalho forçado e uma parcela fuzilada.

Do ponto de vista histórico, pelo menos em 4/5 da história do país não se pode falar sequer em direito a justiça para a população negra no Brasil, quando essa palavra aparecia significava trabalho forçado, chibata, fuzilamento e forca.

E daqui deriva o aspecto econômico: por que após a abolição e a proclamação da República continuamos com uma justiça voltada contra a população negra? Pois o capitalismo brasileiro, sistema no qual se perpetuou a forma do trabalho, baseou-se em um setor negro deixado a própria sorte no pós-abolição, sem emprego, sem moradia, sem direitos sociais, vivenciando o negro drama, mantendo dessa forma uma população em situação de grande precariedade e buscando as possibilidades de sobreviver nas selvas de pedra urbanas. Ou seja, contratou-se uma força de trabalho imigrante massivamente vinda para o Brasil em empregos formais e baseou-se no racismo herdeiro da escravidão para empurrar a população negra para os postos mais precários.

Dessa forma, manter uma estrutura econômica advinda da escravidão foi e continua sendo vital para o empresariado brasileiro, latifundiários e setores financeiros continuarem lucrando nas empresas e contentando a estrutura escravista, que por exemplo obriga uma trabalhadora doméstica a ir trabalhar durante a pandemia, não lhe assegura nenhum direito e retira a vida de seu filho, com patrões como esses em prédios luxuosos em Recife e outras capitais envoltas de comunidades pobres e em empregos precários. É claro que a justiça, nesse caso, nunca será plenamente favorável à Mirtes e outras milhares de mães que perdem seus filhos na fome, nas balas perdidas da polícia ou no desprezo da elite herdeira do país escravocrata como na morte de Miguel, pois se trata de um “dever de Estado” para com o conjunto dos empresários, banqueiros e latifundiários garantir a “manutenção da ordem”, que no plano político, figuras desprezíveis como Bolsonaro encarnam com orgulho o papel de representantes do racismo escravocrata com nome e sobrenome.

Por fim a questão política: segundo os ditames do capitalismo brasileiro, quando o trabalho assalariado negro não está sendo explorado, deve estar com a cabeça baixa ou encarcerado. Julgar contra a população negra é fundamental para desmoralizar qualquer revolta. Quando ela surge, vira caso de justiça, e quando se julga, é para arrancar lágrimas, reafirmar que vidas negras não importam. Talvez o caso mais significativo disso foi o julgamento do massacre do Carandiru, onde 111 detentos foram mortos numa das maiores chacinas do país e os policiais foram absolvidos, e não só isso, dos 74 envolvidos, 58 tiveram promoções nos anos seguintes ao ocorrido. O racismo do judiciário, nesse caso, tem um significado bem profundo e político: apoiar a violência generalidade do Estado contra a população negra, e dar um verniz “legal”. Todos sabemos que se fosse o contrário, Mirtes tivesse enviado o filho da patroa sozinho em um elevador, nem precisaria de uma tragédia para ela estar condenada e presa. A justiça é de classe.

Essa é a realidade do judiciário em nosso país (como parte racismo de Estado), mas valeria lembrar de outro julgamento, nos Estados Unidos, para tirarmos lições: em 1986, um grupo de racistas brancos norteamericanos perseguiu um grupo de jovens negros e terminou com a morte de Michael Griffith fruto de um atropelamento por um carro quando ele fugindo da perseguição. O processo poderia levar a mais um caso de racismo sem consequências, mas foram obrigados a prender alguns envolvidos em função dos expressivos protestos, quando, segundo alguns estudiosos, teria surgido a consigna “No justice, no peace” (sem justiça, sem paz). A emblemática consigna retornou com as importantes mobilizações de Los Angeles em 1992, emergiu novamente nos anos de 2013 a 2015 com o surgimento do Black Lives Matter e ganhou notoriedade internacional em 2020 com as massivas marchas do movimento em função da morte de Georg Floyd, morto brutalmente por um policial em frente às câmeras.

Qualquer ilusão no judiciário brasileiro, especialmente por parte da esquerda e setores políticos, à luz dessa longa história, é mais que ingenuidade. E é especialmente necessário observar isso em tempos de confraternização das políticas do STF até por setores da esquerda. O sistema judiciário brasileiro, assim como o americano, só compreende uma linguagem da população negra: a dos quilombos, das revoltas, da luta de classes. E frente ao caso de Miguel, nós retornamos a mesma questão: tudo que foi conseguido foi graças à luta de Mirtes e todas as trabalhadoras e trabalhadores que se indignaram com o caso, mas pelos olhos de Miguel, que teve sua vida retirada, não podemos falar de justiça.

Então, como parte de nossa crítica ao capitalismo brasileiro, seguiremos dizendo: sem justiça, sem paz...




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