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A herança de Gorbachev: da restauração à guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

A herança de Gorbachev: da restauração à guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

Nos últimos tempos, dois acontecimentos reabriram a discussão sobre o significado do colapso da União Soviética para a situação atual, fato que, segundo o historiador Eric Hobsbawm, encerrou o breve século XX. O primeiro desses acontecimentos é, sem dúvidas, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia/OTAN, que a seis meses do seu início produziu mudanças geopolíticas de dimensões históricas. O segundo, com valor mais simbólico que político, é a morte de Mikhail Gorbachev, em Moscou, no dia 30 de agosto.

Há muito que o tempo histórico de Gorbachev, arquiteto e executor das “reformas” que levaram à restauração capitalista e à dissolução da União Soviética, se esgotou. Depois de firmar o decreto que pôs fim à existência da URSS no gélido Natal de 1991 – seu último ato como presidente de um país que desapareceu dando lugar a 15 repúblicas – caiu no esquecimento, inclusive no Ocidente.

Uma nota relevante serve para dar uma ideia de até onde sua figura perdeu toda a relevância política na era pós soviética. Trata-se de uma publicidade de 1997. A cena transcorre em um restaurante de Moscou em que Gorbachev entra inesperadamente com sua pequena neta. Em uma mesa, uma família discute o legado de Gorbachev. O pai o acusa do caos econômico e da instabilidade, o filho reivindica a “liberdade”. Porém, a mãe aponta a conquista que todos estão de acordo. Ela diz mais ou menos, em outras palavras, que graças a Gorbachev os russos podem comer Pizza Hut. Todos celebram, até o próprio “Gorby” com sua porção do cobiçado fast-food norte-americano na mão. Por essa propaganda, o último presidente da segunda potência mundial recebeu um milhão de dólares. Patético.

Seu último biógrafo, Willian Taubman [1], tenta restaurar seu lugar na história baseando-se no fato indiscutível de que foi um dos grandes arquitetos do mundo pós-guerra fria, junto a Ronald Reagan e Margaret Thatcher, embora termine dando a ideia de que foi uma espécie de “aprendiz de feiticeiro” que desatou forças além de seu controle.

Os obituários do “Ocidente” são muito mais amigáveis do que o comunicado conciso do Kremlin e a fria despedida do presidente Vladimir Putin no hall do hospital em que morreu. Isso para não falar do Partido Comunista Chinês, que sempre o considerou um traidor dos interesses da burocracia.

No entanto, a mídia imperialista oscila entre considerá-lo um “herói trágico” e um burocrata buscando salvar o “império do mal”, que terminou mudando o curso da história liquidando a ex-URSS. Ninguém faz justiça ao enorme serviço que “Gorby” prestou ao capitalismo, aceitando a ofensiva neoliberal, e aos Estados Unidos em particular, que com seu triunfo na Guerra Fria assegurou ser a “hiperpotência” incontestável por uma década.

Embora Gorbachev tenha passado para a história há um tempo, sua herança, como um sintoma, continua sendo reescrita em seus efeitos. A dinâmica da situação atual, incluindo a guerra da Rússia contra Ucrânia/OTAN e a rivalidade entre Estados Unidos e China, é inseparável das consequências do colapso da União Soviética e do curso particular que tomou o processo de restauração capitalista de conjunto. O objetivo deste artigo não é abordar o conjunto do desenvolvimento histórico da ascensão e da queda de Gorbachev (o grande impasse de Brezhnev, o interregno de Andropov e Chernenko, o golpe de 1991, o papel de Yeltsin, etc.), mas fazer um recorte dos elementos que seguem sobredeterminando a realidade do capitalismo russo sob Putin: no plano interno, o significado da perestroika para a conformação da nova classe dominante, e no plano externo, a dinâmica que levou à expansão da OTAN ao Leste.

Perestroika. Oligarcas e bonapartismo de Gorbachev a Putin

Em sua autobiografia [2], parafraseando a famosa definição de Marx, Gorbachev se considerava um produto da “nomenklatura” e, ao mesmo tempo, seu “coveiro”, sobretudo pela morna abertura democrática controlada pelo partido comunista e pelo Estado – conhecida como glasnost – que acompanhou a perestroika. Para falar a verdade, diferente de responsável por “enterrar” a “nomenklatura”, foi ele quem criou as condições para que setores da “nomenklatura”, ou seja, da burocracia estatal do partido comunista em decomposição, dessem o salto de casta privilegiada com interesses cada vez mais diferenciados para se tornar a classe proprietária.

Do ponto de vista marxista, a discussão sobre se Gorbachev buscou, conscientemente ou não, esse resultado e o fim da União Soviética é irrelevante. Essa dinâmica estava inscrita na própria natureza da burocracia estalinista que, como tal, era a força social interna mais importante da restauração capitalista.

Em A revolução traída (1936), seu último trabalho sistemático sobre a natureza e as perspectivas da União Soviética, Trótski considerou que a variante improvável do retorno das relações capitalistas era que a burocracia conseguisse manter o poder estatal. Trótski antecipou corretamente que a burocracia buscaria sustentar sua posição nas relações de propriedade – “não basta ser diretor do truste, é preciso ser acionista”, dizia – e por essa via se tornaria uma nova classe possuidora.

Essa brilhante intuição de Trótski, que surgiu do estudo cuidadoso das condições materiais – nacionais e internacionais – do surgimento do regime burocrático na União Soviética, tomou valores concretos com a perestroika e outorgou sua configuração particular ao capitalismo russo, tanto à nova classe possuidora – os oligarcas – e sua relação com o Estado, como seu papel reduzido na hierarquia mundial de Estados, dominada pelos Estados Unidos. Marcou também uma diferença fundamental com a restauração capitalista na China, com um forte componente de dirigismo estatal sob a condução do Partido Comunista Chinês.

A perestroika foi lançada com a lei de empresas estatais (1987) que supostamente tinha por objetivo fortalecer o “socialismo”, mas que foi de fato o passo inicial para desmantelar a planificação econômica. As empresas estatais deveriam se autofinanciar (pagar salários e dívidas se as tivessem), determinar seus níveis de produção em função da demanda e negociar os preços dos insumos com seus provedores. Essa lei foi complementada com a lei de cooperativas (1998) que deu lugar às primeiras formas de propriedade privada em décadas, inicialmente nas pequenas empresas de serviços e, depois, nas manufaturas, e avançou na liquidação do monopólio do comércio exterior.

Essas medidas desorganizaram a produção e causaram uma situação caótica, que produziu o desabastecimento e deu lugar a uma espiral inflacionária. A pressão imperialista, através da corrida armamentista, que o presidente norte-americano Ronald Reagan tinha redobrado, tornava a situação de estagnação mais grave. Os custos de sustentar a ocupação do Afeganistão se tornaram insustentáveis. Foram anos terríveis, nos quais Gorbachev oscilou entre “terapias de choque” e retrocessos, continuados pelos governos de Boris Yeltsin, que terminaram produzindo uma verdadeira catástrofe social comparável aos efeitos de uma guerra.

Entretanto, enquanto a população sofria de escassez, a burocracia conservava seus privilégios e, nesse processo, uma nova classe capitalista se constituía partindo de uma acumulação primitiva acelerada saqueando a propriedade estatal. Os diretores das empresas estatais e os cooperativistas utilizaram a nova estrutura legal pra fazer um negócio formidável com a acumulação e revenda de matérias-primas e insumos estatais, além de lavagem de dinheiro e outros negócios que permitiram a criação de bancos comerciais que podiam negociar créditos com o exterior, uma zona cinzenta de negócios ilegais com o Ocidente. O dinheiro geralmente fluía para os balanços da cidade de Londres e do banco de Nova York. Segundo o historiador M. Baña, “desde o seio da elite surgiu uma coalizão pró-capitalista que prepararia o caminho para a transição a uma economia de mercado. Os novos capitalistas seriam os velhos comunistas”.

Esse capitalismo de oligarcas é o traço distintivo do capitalismo russo, que começou com Gorbachev, aprofundou-se com Yeltsin e se aperfeiçoou sob os longos anos do regime bonapartista de Vladimir Putin. Como aponta T. Wood, desde o começo, o futuro dos novos oligarcas dependia de decisões estatais que, através de atribuir preços absurdos às porções da economia planificada, deram um salto durante os anos de Yeltsin e suas “privatizações por decreto”. Em seu estudo, Wood distingue duas categorias de oligarcas, duas frações da elite que disputam o poder: os chamados “insiders”, um estrato composto por ex-diretores de fábricas e setores ligados à indústria; e os “outsiders”, que estão ligados às finanças, dos quais o principal expoente foi M. Khodorkovsky. Se durante os anos 1990 predominavam os “outsiders”, em 2000 o pêndulo oscilou para os “insiders [3].

Quando Putin chegou ao poder, em 2000, no meio do caos dos governos de Yeltsin, reformulou as relações entre o Estado e os oligarcas, que mantiveram suas fortunas e negócios em troca de limitar sua influência política. Aqueles que não obedeceram foram expropriados e perseguidos. M. Khodorkovsky passou 10 anos na prisão acusado de fraude fiscal e sua companhia petrolífera, Yukos, foi expropriada e transformada na atual Rosneft.

Sob Putin, o capitalismo russo combina o controle do estado sobre recursos naturais exportáveis – principalmente gás e petróleo – com um aprofundamento do neoliberalismo e um crescente papel do setor privado na educação, na saúde, na habitação e na monetização de benefícios sociais. Inclusive, grandes empresas energéticas estão organizadas como empresas privadas, com acionistas entre os quais o estado é o principal. G. Easter, em seu ensaio Revenue Imperative: State over Market in Postcomunist Rússia, [4] argumenta que essa mescla sui generis estatista-neoliberal dá origem a uma economia “ascendente/descendente” no qual as grandes indústrias energéticas estão direta ou indiretamente subordinadas ao Estado, enquanto que as empresas privadas se ocupam do setor bancário, da construção e do comércio.

Em suma, a partir da perestroika de Gorbachev, a conformação de uma classe possuidora parasitária com uma importante dependência estatal é o traço distintivo do capitalismo russo que, com variações, continuou com Yeltsin e Putin. As disputas ocorrem entre camarilhas de magnatas, mas enquanto que os primeiros fizeram sua fortuna nos anos das privatizações e saque da propriedade estatal, aqueles que se enriqueceram sob Putin e ascenderam à elite derivam seu poder em grande parte de sua proximidade com o Kremlin. Esse elemento, que deriva do “pecado original” de uma casta transformada em classe, explica que Putin consolidou mas não criou um regime bonapartista autoritário ex nihilo.

A OTAN. A guerra da Ucrânia. Uma nova guerra fria?

Segundo Putin, o colapso da União Soviética é “a maior tragédia geopolítica do século XX”. É importante reter o adjetivo “geopolítica” porque o papel de superpotência mundial da União Soviética é a única coisa que o presidente russo sente falta do legado da revolução de outubro. Comparada à ex-URSS, a Rússia perdeu território, peso econômico, influência política nos assuntos internacionais, ainda que tenha conservado seu velho status de nada menos do que a segunda potência mundial, que continua lhe garantindo seu lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas com poder de veto, juntamente às outras quatro grandes potências: Estados Unidos, França, Reino Unido e China. Esquematicamente, uma consequência de longo prazo da desaparição da União Soviética é o lugar da Rússia na ordem internacional, que se baseia em um equilíbrio frágil: devido à sua base material, é uma potência de segunda ordem (regional, intermediária). Devido ao seu poderio militar, tem aspirações de grande potência.

Se no plano interno Gorbachev abriu as portas à restauração capitalista, no plano externo projeta-se a sombra de seu legado até a atual guerra da Ucrânia.

Antes de assumir como chefe do Estado Soviético, Gorbachev havia conquistado a confiança de Margaret Thatcher que, guiada por seu olfato contrarrevolucionário, considerou que era um “homem com quem se podia fazer negócios” e o recomendou fervorosamente ao seu par norte-americano, Ronald Reagan. Thatcher não se equivocou.

Gorbachev permitiu o fim da guerra fria, mas contra suas ilusões iniciais de um esquema de segurança europeu que incluísse os interesses da URSS, o resultado não beneficiou a todos, apenas o bando ocidental, em particular o imperialismo norte-americano que ficou com a vitória.

Aqui vamos apenas nos referir ao acontecimento nodal que, desde 1989 em diante, é o fator estruturante das relações entre Rússia e Estados Unidos/Ocidente: a expansão da OTAN. Após a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, iniciou-se o processo de reunificação alemã, um período perigoso carregado de tensões entre as potências imperialistas, sobretudo o Reino Unido e a França, que temiam as consequências do poderio de uma Alemanha unificada para a Europa. O mesmo ocorreu com a União Soviética, que ainda tinha tropas estacionadas na Alemanha Oriental. O conflito era evidente: A República Federal da Alemanha era membro da OTAN. O chanceler alemão, H. Kohl tinha dado como certo que, nas negociações sobre a unificação, Gorbachev exigiria a neutralidade da Alemanha unificada, ou seja, sua retirada da OTAN. Porém, para a surpresa de Kohl e Bush, Gorbachev não fez essa exigência e aceitou que a antiga RDA fosse incorporada como parte da Alemanha na OTAN.

Segundo a história oral – e as recordações dos participantes – o então secretário de Estado do presidente G. Bush (pai), James Baker, prometeu a Gorbachev que a OTAN não se expandiria “nem uma polegada a mais” [5] ao leste, ou seja, em direção às fronteiras da União Soviética.

Enquanto alguns historiadores e jornalistas consideram que Gorbachev cometeu um grande erro, guiado por sua confiança naive nas potências imperialistas, W. Taubman em sua biografia dá a entender que as ações de Gorbachev não tinham relação com uma suposta ingenuidade, mas sim com a mesma desconfiança de Thatcher. Em última instância, considerava um mal menor que a Alemanha estivesse sob o controle dos Estados Unidos do que como um elétron livre na Europa.

O resto da história é conhecida. As palavras foram levadas ao vento. Os Estados Unidos interpretaram corretamente o generoso presente de Gorbachev como um sinal inequívoco de fragilidade e decidiram avançar. A primeira expansão permitida pela ex-URSS (em pouco tempo Rússia) da OTAN na Alemanha deu origem às seguintes expansões. A Aliança Atlântica passou de 16 para mais de 30 membros, incluindo três ex-repúblicas soviéticas – Lituânia, Estônia e Letônia. Sob governos democratas e republicanos, a OTAN se transformou em uma ferramenta de assédio contra a Rússia. Em grande medida, a possibilidade da Ucrânia ser incorporada às instituições ocidentais – União Europeia e OTAN – está entre os fatores que levaram à atual guerra reacionária de Putin.

Os efeitos do fim da primeira Guerra Fria se esgotaram. A crise capitalista de 2008 pôs fim a longa hegemonia neoliberal globalizante. O processo de decadência da liderança norte-americana converge com o ascenso da China, que se transformou no principal perigo para os interesses imperialistas dos Estados Unidos.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia/OTAN está perturbando a geopolítica mundial. A Alemanha iniciou seu processo de rearme. As sanções econômicas contra a Rússia atingiram diretamente a economia mundial, aprofundando as tendências inflacionárias. A energia (petróleo e principalmente gás) e os alimentos são parte da guerra.

Em contrapartida ao alinhamento das potências ocidentais e o fortalecimento, ao menos no curto prazo, da OTAN, constituiu-se uma aliança entre a China e a Rússia. Sua consolidação ou não depende também do grau de hostilidade dos Estados Unidos em relação à China. A visita de Nancy Pelosi a Taiwán foi respondida com os exercícios militares de Vostok 2022, com a participação de militares da China e da Índia, junto aos aliados tradicionais de Moscou. Longe do mundo do imediato pós-guerra fria e perto das condições clássicas da época de crises, guerras e revoluções.


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FOOTNOTES

[1William Taubman, Gorbachov: Vida y época, Debate, Barcelona, 2018.

[2M. Gorbachev, Memoirs, Doubleday, New York, 1995.

[3Tony Wood, Russia without Putin: Money, Power and the Myths of the New Cold War, Londres, Verso, 2018.

[4AA.VV, The Political Economy of Russia, Rowman & Littlefield Publishers, Maryland, Londres, 2012.

[5M.E. Sarotte. Not One Inch. America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate. Yale University Press, New Haven & London, 2021.
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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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