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"A concepção socialdemocrata de hegemonia está em crise". Entrevista com o autor do livro O marxismo de Gramsci, que será lançado no Brasil em dezembro

Danilo Paris

"A concepção socialdemocrata de hegemonia está em crise". Entrevista com o autor do livro O marxismo de Gramsci, que será lançado no Brasil em dezembro

Danilo Paris

A Edições Iskra entrevistou Juan Dal Maso sobre as principais ideias e debates presentes no livro O marxismo de Gramsci, que será publicado no Brasil em dezembro pela editora. Dal Maso pesquisa sobre o pensamento de Gramsci há mais de uma década e é autor de vários artigos sobre problemas da teoria marxista. Após O marxismo de Gramsci (2016), publicou em 2018 Hegemonía y lucha de classes. Tres ensayos sobre Trotsky, Gramsci y el marxismo.

Ideias de Esquerda: Quais são os temas e conteúdos presentes no livro O marxismo de Gramsci?

Juan Dal Maso: O marxismo de Gramsci é um livro que propõe uma leitura de Gramsci sem o prisma de certas leituras social-democratas ou reformistas que foram muito fortes durante as últimas décadas na América Latina e outras partes do mundo.

Para o público que está se iniciando na leitura de Gramsci são expostos alguns conceitos fundamentais dos Cadernos do cárcere, como Estado integral, hegemonia, revolução passiva, crise orgânica, guerra de posição e guerra de movimento, o moderno Príncipe, a vontade coletiva nacional-popular, as distintas acepções do termo Ocidente, sua concepção de Estado operário e de socialismo e uma pequena retomada do itinerário de Gramsci na América Latina.

Para quem está mais familiarizado com o pensamento de Gramsci, o texto propõe uma leitura “metodológica” que é baseada na ideia de que os conceitos de “tradutibilidade das linguagens científicas e filosóficas” e o “novo conceito de imanência” são inerentes à construção dos próprios argumentos gramscianos. Gramsci utilizava essas categorias para pensar a relação do marxismo com a cultura do Ocidente, mas também para propor uma abordagem sobre a coerência interna do marxismo. A "tradutibilidade das linguagens" servia para retomar, a partir do marxismo, problemas ou conceitos colocados por outras filosofias estabelecendo certas equivalências (por exemplo entre o marxismo e a filosofia de Benedetto Croce), assim como para analisar certos processos históricos e sua relação com a constituição de corpos teóricos (a Revolução francesa e o idealismo alemão) ou para estabelecer paralelos entre correntes revolucionárias de distintas épocas (jacobinismo e bolchevismo). Ao mesmo tempo, Gramsci desloca essa ideia de tradutibilidade para a própria coerência interna do marxismo, estabelecendo uma relação estreita entre a categoria da práxis no plano filosófico, a teoria do valor na crítica da economia política e a concepção de Estado na teoria política. Com o conceito de nova imanência realiza uma operação parecida, contudo focada na ideia de uma "síntese" que a teoria de Marx realizou entre as correntes mais importantes de sua época (idealismo alemão, socialismo francês e economia política inglesa), que Lênin apresentou como três fontes e três partes constitutivas, que para Gramsci não deveriam ser separadas. Segundo sua visão, na economia, na política e na filosofia do marxismo, a síntese dessas três correntes estava presente, constituindo um pensamento teórico que vai além do alcance de cada uma dessas "fontes" separadas, e permite entender a teoria marxista em termos de uma unidade inseparável entre filosofia, economia, história e política. A proposta do livro é utilizar essas mesmas categorias que Gramsci utiliza para pensar a coerência interna do marxismo para compreender o modo como ele tenta desenvolver conceitos “unitários” ou “integrais” a partir de uma relação permanente entre filosofia, política, economia e história. Isso permite, por sua vez, colocar limites às leituras excessivamente “politicistas” de seu pensamento, que separam a política das condições e dos processos econômicos e sociais.

IdE: Na América Latina houve uma importante recepção e utilização das ideias de Gramsci. Na sua opinião, a discussão sobre os chamados "usos" de Gramsci continua sendo atual?

JDM: Pelas condições em que produziu os textos dos Cadernos do cárcere, pela forma que depois o PCI [Partido Comunista Italiano] usou-se de sua referência para justificar sua política de "via italiana ao socialismo" (e outras), por certos posicionamentos "híbridos" que fazem de Gramsci uma figura difícil de classificar, seu legado esteve desde muito tempo em disputa. Por esses motivos, os "usos" são inevitáveis e não necessariamente negativos.

Para mim, os “usos” que assimilam Gramsci a perspectivas políticas que eram basicamente alheias a ele, são as mais discutíveis, sobretudo se não é feito um esclarecimento de que está se distorcendo seu pensamento de alguma forma.

Penso nas instrumentalizações de seu pensamento que fez o Partido Comunista Italiano durante o segundo pós-guerra ou a que fizeram os intelectuais latino-americanos quando nos princípios dos anos 1980 apresentaram Gramsci para justificar a reivindicação da democracia burguesa como o único horizonte possível.

De todo o modo, inclusive nesses casos, houve desenvolvimentos que foram produtivos. Foram os próprios intelectuais do PCI, em uma equipe dirigida por Valentino Gerratana, quem publicou a edição crítica dos Cadernos do cárcere em 1975, superando as “edições temáticas" que haviam sido publicadas por Togliatti e Felice Platone entre 1948 e 1951, abrindo novas possibilidades para o conhecimento e interpretação da obra de Gramsci.

No caso da América Latina, muitas reflexões, principalmente de Aricó e Portantiero, que embora foi feita a partir de uma matriz mais ou menos reformista (me refiro a uma matriz frentepopulista ou social-democrata, dependendo do momento) jogaram luz sobre problemas da realidade latino-americana, pelo que merecem ser resgatadas, embora não compartilhamos das motivações políticas dos autores. Também um autor como René Zavaleta Mercado, que em muitos aspectos se inspirou em Gramsci e utilizou algumas de suas categorias, escreveu uma obra que merece ser levada em conta para pensar a realidade de nosso subcontinente e também vários problemas de teoria política.

Para o público anglófono (e o público universitário em geral) é muito popular o texto de Anderson, As antinomias de Antonio Gramsci, que sintetiza várias das críticas que se podem fazer “pela esquerda” à interpretação eurocomunista de Gramsci. Nesse trabalho oferecemos uma leitura alternativa a de Anderson, já que embora compartilhamos em grande parte as motivações políticas de seu trabalho, tem importantes problemas teóricos e filológicos (que abordamos em maior profundidade em um livro posterior a esse, intitulado Hegemonia e luta de classes).

Há também o trabalho, de tipo filológico, que se realiza nos marcos da International Gramsci Society, que embora, em muitos casos mantêm certos núcleos compartilhados com aspectos da leitura “togliattiana” de Gramsci, contêm muitas contribuições, poderíamos dizer, científicas para a compreensão de sua obra. Atualmente há uma equipe de investigadores dirigidos por Gianni Francioni que está preparando uma nova edição crítica dos Cadernos do cárcere. Fabio Frosini, que é um dos investigadores que trabalha nessa nova edição crítica, teve a gentileza de escrever o prólogo da versão em português de O marxismo de Gramsci, pelo qual estou muito agradecido. Além disso, me parece um feito que expressa um diálogo teórico que para mim é muito significativo.

IdE: Um eixo de reflexão do livro é o da relação entre hegemonia e a revolução permanente. Como você vê essa relação?

JDM: Propomos uma interpretação da problemática da hegemonia que questiona a oposição total desta categoria com a de revolução permanente. Isto é muitas vezes um lugar comum compartilhado tanto por gramscianos antitrotskistas como por trotskistas antigramscianos.

Neste contexto, abordamos outros problemas relacionados, como a proposta de uma compreensão “integral” da hegemonia contra a ideia que contrapõe esse conceito à centralidade da classe operária. Aqui é importante destacar que isto não se coloca a partir de um ponto de vista “moral” ou por defeito (“Gramsci lutava pela revolução” ou “Gramsci nunca renegou a centralidade da classe operária”, questões certas mas relativamente estéreis teoricamente) senão estabelecendo um nexo metodológico entre o “novo conceito de imanência” e o de hegemonia, que podemos sintetizar na ideia de que o papel fundamental na atividade econômica é parte constitutiva da hegemonia e essa questão é colocada claramente pelo próprio Gramsci. A propósito desses temas, dialogamos também com as elaborações de autores como Fabio Frosini, Álvaro Bianchi, Peter Thomas, Massimo Modonesi, entre outros.

IdE: Nesse sentido, que contrapontos e confluências podem-se resgatar entre Gramsci, Lênin e Trótski?

JDM: Lênin é para Gramsci a referência principal para pensar o problema da hegemonia, e por isso, considero infundadas as interpretações que dizem que nos Cadernos do cárcere, Gramsci rompeu com o marco teórico e estratégico de Lênin (que não é o mesmo que os que depois usaram sua figura como bandeira).

Com Trótski a relação é mais problemática. Me parece que há uma confluência clara na análise da reconfiguração das formas estatais durante o período entreguerras, que Gramsci relaciona com a questão do Estado integral e Trótski com a da estatização dos sindicatos. Por sua vez, a reflexão gramsciana sobre a luta pela hegemonia contra as alternativas burguesas que denomina de “revolução passiva”, quer dizer, processos em que se reforça a autoridade estatal assumindo algumas demandas que vem desde baixo, mas esvaziando seu potencial revolucionário, tem notáveis pontos de contato com o que seria a “mecânica” da revolução permanente no Ocidente.

Há um ponto de confluência também na importância das relações de forças militares, mas com não menores diferenças de ênfase. Ambos coincidiram em linhas gerais em distinguir a luta de classes “legal”, a guerra civil e a insurreição. Mas Gramsci de algum modo submete a questão insurrecional em um processo de fôlego mais longo, centrado na preparação política primeiro e na guerra civil depois. Trótski, por sua vez, enfatiza a insurreição como momento específico chave de toda revolução. Por último, na questão do “socialismo em um só país” há um ponto de divergência fundamental. Todos esses temas estão abordados no livro, embora esteja centrado nas colocações de Gramsci e os pontos de vista de Trótski se expõe somente na medida em que não se pode dá-los por pressupostos. Sobre alguns destes temas segui trabalhando em meu segundo livro.

IdE: No livro há um debate com a tradição "eurocomunista", e na versão brasileira agregamos um anexo que debate com as interpretações de Carlos Nelson Coutinho. Poderia nos contar um pouco sobre este debate?

JDM: A obra de Coutinho é ampla e tem distintos momentos, tanto teóricos como políticos. Neste caso não tentei fazer uma análise exaustiva, mas abordar um texto que transcendeu o autor e que fundou um modo de ler Gramsci na América Latina desde os anos 1980. Esse texto é o ensaio "A democracia como valor universal" (1979) que é como uma adaptação dos debates do eurocomunismo para Brasil. Nesse trabalho, Coutinho propunha uma ideia de democracia socialista que partia de reivindicar como indissolúvel o vínculo entre socialismo e democracia. Para Coutinho, a democracia podia e devia ser separada conceitualmente da dominação burguesa e por este motivo propunha como tarefa imediata o estabelecimento de uma frente que permitiria restaurar a democracia no Brasil como antessala do socialismo. De passagem, ligava esta perspectiva com uma ideia de revolução por etapas, que para o Brasil significava uma primeira etapa democrática, antimonopolista e anti-imperialista. Essa parte da revolução por etapas foi abandonada pela maioria da intelectualidade, não tanto pelo rechaço ao etapismo, mas porque se passou a considerar que a revolução não era possível em nenhuma de suas variantes. E o que perdurou foi a ideia da democracia como antessala do socialismo (depois como objetivo em si mesmo). Em toda a América Latina ocorreu essa discussão e Coutinho foi um dos que sintetizou seus principais argumentos, embora depois tenha desenvolvido outras posições mais críticas. Sendo historicamente um dos principais animadores do debate sobre Gramsci no Brasil, me parecia necessário incluir este debate embora tenha sido como um anexo e esclarecendo que não pretende ser uma análise do conjunto de sua obra, mas uma crítica de como leu nesse momento a teoria marxista e o pensamento de Gramsci.

IdE: Para você, qual é a atualidade desses debates frente ao turbulento cenário na América Latina?

JDM: Me parece que a concepção de tipo "social-democrata" de hegemonia (como poderia ser a do PT) está em crise. A ideia cultivada pelo PT desde quase toda sua trajetória (talvez com exceção de alguns sectores mais críticos que participaram de sua fundação), de que a política começa onde termina a luta de classes, se demonstrou totalmente impotente frente ao golpe institucional contra Dilma Rousseff, os ataques de Temer, o encarceramento de Lula e a ascensão de Bolsonaro. Agora Lula foi liberado, o que é uma conquista de todos nós que denunciamos sua prisão arbitrária, mas para colocar de alguma forma, segue sendo Lula. Anuncia caravanas, mas os sindicatos que o PT dirige não organizam a luta contra os sucessivos ataques do governo, tão pouco o PT chama a mobilização. Toda a expectativa está colocada nas próximas eleições, primeiro legislativas e municipais, e depois presidenciais. No caso da Bolívia, frente ao golpe da direita fascista e racista, foi o povo que fez a resistência e não os dirigentes, que estão chamando a "pacificação" e negociaram a “transição” com os golpistas. Em síntese, seja em suas variantes "social-democrata" ou "populista" as concepções políticas e teóricas que buscaram algum tipo de "articulação" hegemônica através do Estado e dentro dos marcos do capitalismo, se mostraram impotentes frente aos avanços impetuosos de uma direita que não tem problema em apelar à relação de forças bruta e com métodos violentos. No caso do Chile, onde o governo de Piñera está encurralado pela mobilização operária, juvenil e popular, a esquerda reformista propõe algum tipo de canalização institucional, no lugar de apoiar a máxima expansão da mobilização para derrotar Piñera junto com uma autêntica Assembleia Constituinte Livre e Soberana, que discuta todos os problemas de fundo e não somente algumas reformas limitadas.

É um cenário que coloca por sua vez muitos desafios para a esquerda que pretende desenvolver uma prática revolucionária, que volte a colocar em primeiro plano os problemas da relação entre a luta de classes em suas expressões mais diretas, as relações entre os distintos componentes a classe trabalhadora, a juventude e os setores populares, assim como as formas em que estes setores podem articularem-se para oferecer uma alternativa frente às direitas autoritárias e a impotência das variantes reformistas. Isso implica uma política que coloque em movimento o potencial dos setores da classe trabalhadora que ocupam posições estratégicas, como os transportes, os portos, o petróleo e as comunicações, com ações decididas que golpeiem o funcionamento “normal” do capitalismo, confluindo na ação com a juventude, os movimentos de mulheres e todos os setores oprimidos da sociedade, articulando suas demandas em direção à uma saída anticapitalista e socialista.

Ou seja, uma nova exigência para pensar, de maneira rigorosa tanto política como teoricamente, as relações entre hegemonia e revolução permanente.


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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
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