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POESIA
África: luta de libertação na poesia de Craveirinha
Jéssica Antunes

Moçambicano, filho de mãe africana e pai português, José Craveirinha foi um gigante poeta militante. Sua obra tem enorme relevância na história de seu povo, visto que retrata de forma sensível em sua poesia as transformações no pensamento da intelectualidade moçambicana e as ideias que muniram a luta pela libertação nacional do jugo imperialista de Portugal.

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A poética de Craveirinha, ainda que escrita em língua portuguesa, é fortemente carregada das expressões orais moçambicanas, como por exemplo da língua originária na qual também fora educado: o ronga. O poeta traz em seus versos fortes imagens e motivos do imaginário popular e da tradição cultural africana, retomando esteticamente as origens nativas para se opor ideológica e politicamente ao presente colonial e preconizar um futuro livre para seu povo. Assim se dá a evocação do “era uma vez...” moçambicano, o “Karingana ua Karingana”.

Ao exaltar a cultura popular local de maneira orgulhosa, em oposição ao aculturamento imposto pelos colonizadores, Craveirinha faz uma ode à emancipação africana. O plano estético transborda para a realidade incitando uma práxis de transformação social. Práxis esta marcada a ferro e fogo na trajetória pessoal do escritor, militante ativo do partido de guerrilha armada Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique.

Analisaremos o poema “Manifesto”, publicado em 1964, no livro “Xigubo”, para mostrar essa ligação direta entre a produção artística e a prática política revolucionária. Vale apontar, para melhor compreender desde já a profunda ligação entre texto e contexto, que o ano de publicação do nosso objeto foi palco do início da luta armada de libertação nacional, que em Moçambique ocupou o espaço de uma década.

“Manifesto

Oh!
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como insurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.

Como pássaros desconfiados
incorruptos voando com estrelas nas asas meus olhos
enormes de pesadelos e fantasmas estranhos motorizados
e minhas maravilhosas mãos escuras raízes do cosmos
nostálgicas de novos ritos de iniciação
dura da velha rota das canoas das tribos
e belas como carvões de micaias
na noite das quizumbas.
E a minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro
mordendo a nudez lúbrica de um pão
ao som da orgia dos insectos urbanos
apodrecendo na manhã nova
cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.

Oh! E meus belos dentes brancos de marfim espoliado
puros brilhando na minha negra reencarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho
o cálido encantamento selvagem da minha pele tropical.

Ah! E meu
corpo flexível como o relâmpago fatal da flecha de caça
e meus ombros lisos de negro da Guiné
e meus músculos tensos e brunidos ao sol das colheitas e da carga
e na capulana austral de um céu intangível
os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África.

Ah!
o fogo
a lua
o suor amadurecendo os milhos
a grande irmã água dos nossos rios moçambicanos
e a púrpura do nascente no gume azul dos seios das montanhas.

Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante
de belas e largas narinas másculas
frementes haurindo o odor florestal
e as tatuadas bailarinas macondes
nuas
na bárbara maravilha eurítmica
das sensuais ancas puras
e no bater uníssono dos mil pés descalços.

Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do bréu
e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o tótem mais invencível tótem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Tanganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.
Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore de Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
E xiguilo no batuque.
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique.”

Há no poema diversas imagens que trazem uma forte evocação da natureza, em referência ao pertencimento e à valorização da terra na cultura pré-colonial, possivelmente uma oposição a alienação e agressividade urbanizadora da suposta “civilização” portuguesa em África. Como podemos observar nos versos “das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze” e “belas como carvões de micaias”.

A forte musicalidade das culturas ancestrais africanas, e da literatura oral e popular, também deixa sua marca no poema, assim como em toda a obra de Craveirinha. Como exprime-se nos versos: “os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África”, “Eu tambor”, “Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes”. O próprio nome do livro “Xigubo”, assim como o “xiguilo” citado no poema, é uma referência a uma dança de guerra da tradição cultural moçambicana. A música e a dança têm, também na tradição africana, uma forte ligação com a luta e o combate, dessa maneira, no ritmo e em tais imagens do poema, parece haver um chamado ancestral desse eu-tambor, desse eu-guerreiro, dessa força popular necessária como presságio da luta que se avizinha.

A representação estética do colonizador se dá através da imagem negativada de insetos, como se pode ver nos versos: “ao som da orgia dos insectos urbanos / apodrecendo na manhã nova / cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.” e “pragas de gafanhotos invasores”, ligada à imagem da podridão, da decomposição, da praga como alusão a nefasta e degradante ordem social imposta pela sua fome infinita, talvez daí a imagem das cigarras obesas, dos frutos do trabalho dos nativos através de uma exploração crescente e sem limites. Essa apropriação parasitária do trabalho do negro, bem como dos recursos naturais de seu país, pode ser inferida nos versos: “E meus belos dentes brancos de marfim espoliado” e “e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho” (grifos nossos).

A evocação da cultura ancestral esmagada pelo colonizador é retomada não apenas como forma de exaltação das tradições locais, mas também como simbologia da esperança viva na liberdade futura/passada. A “nostalgia de novos ritos de iniciação” é a fé na volta da antiga liberdade cultural, social, econômica e política em África. O chamado à vitória aparece gravado nos símbolos naturais de Moçambique: “e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado / o tótemmais invencível tótem do Mundo” (grifo nosso), preconizando um futuro livre quase predestinado pelo passado.

Outra forte presença em “Manifesto” e no conjunto da obra do poeta é a exaltação do negro e sua identidade, expressão do chamado movimento de Negritude. Craveirinha afirmou ter nascido duas vezes, a primeira ao sair do ventre de sua mãe, a segunda ao se descobrir "mulato". Ao passo que avançam no campo teórico uma série de elaborações de cunho racista que animalizavam e inferiorizavam o negro, a intelectualidade negra “assimilada” profundamente descontente com a farsa do projeto assimilacionista – que oferecia aos negros que abrissem mão de sua cultura e aderisse aos preceitos europeus uma parcial igualdade perante as leis coloniais, mas os mantinha como completos párias perante a realidade social – passava à retomada de sua herança sociocultural africana, à recusa do embranquecimento e à progressiva valorização de sua identidade negra. A esse movimento inicialmente chamou-se Negritude, ainda que tenham surgido uma série de desdobramentos e correntes distintas no curso de seu desenvolvimento.

Poderíamos dizer que o manifesto apresentado no poema, é sobretudo, pela valorização do negro, pelo reconhecimento positivo de sua imagem e de sua força como sujeito de seu destino. Podemos observar a grandeza estética dessa manifestação nos versos: “Meus belos e curtos cabelos crespos”, “E a minha boca de lábios túmidos/ cheios da bela virilidade ímpia de negro”, “e meus ombros lisos de negro da Guiné”, “de belas e largas narinas másculas”, “E meu peito da tonalidade mais bela do bréu”. Existe um movimento interno no poema que passa da exaltação do indivíduo negro para o coletivo africano, para o povo e a nação que se almeja matriarcal como em suas origens. Essa relação indivíduo comunidade denota-se, por exemplo, no verso:“Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante”.

Independentemente dos desenvolvimentos contraditórios advindos do movimento de Negritude, este teve uma grande relevância histórica que transcendeu a produção literária para a luta ideológica pela emancipação do pensamento negro, bem como para a luta política pela liberdade e independência de diversos povos africanos. Os intelectuais fundadores do movimento, após partirem de sua nação africana para estudar no estrangeiro dado o aumento crescente do esmagamento das elites locais em detrimento das elites trazidas das metrópoles para dirigir a colônia, foram parte dos principais dirigentes ideológicos da luta armada do exército de libertação nacional contra o exército português. Do estrangeiro, faziam agitação e propaganda nas colônias das ideias revolucionárias e organizavam o partido e os planos insurrecionais. Apesar da desvantagem material no campo militar frente a metrópole e seus aliados, as forças morais do povo negro moçambicano em luta pela sua liberdade foram capazes de vencer a guerra em 1974, ainda que a independência tenha, no fim das contas, culminado de forma pactuada.

A análise apresentada, a partir de alguns elementos parciais do poema "Manifesto" de Craveirinha, vai ao encontro das reflexões do Professor Alfredo Bosi em seu ensaio "Poesia-resistência" onde afirma que “Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela”. O que faz nosso grande poeta senão aproximar o sujeito de si, suprimindo o intervalo entre os seres, e trazendo “sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar”?

Craveirinha morreu em África aos 81 anos, foi o primeiro autor africano a receber, em 1991, o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, entre muitos outros. Deixou o legado de quase uma dezena de livros escritos, e uma trajetória exemplar de resistência negra e combate contra toda forma de opressão e exploração.

Referências Bibliográficas:
BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. In: O ser e o tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

CRAVEIRINHA, José. “Xigubo”. Lisboa: INDL/Edições 70, 1980.

CHAVES, Rita. “Entrevista: José Craveirinha”. In: Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.


“Dados biográficos e matéria poética na escrita de José Craveirinha”. In: Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

MUNANGA, Kabengele – Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1986.

Revista Via Atlântica nº 05 – Dossiê José Craveirinha, 2002 .

 
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