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CONTO | Um Bairro de Famintos

domingo 14 de março de 2021 | Edição do dia

Um conjunto de panelas vazias e uma multidão de bocas desdentadas. A carne de boi foi substituída pela carne de frango que foi substituída pelo ovo, do qual nasceu um grito coletivo que ecoou pelas fileiras de casas do bairro sem asfalto:

  •  FOME!

    Um homem de barba branca, coluna retorcida e pele machucada , falou da altura dos seus 21 anos para os seus vizinhos:

  •  Nois temo que aceita o castigo. O homem pecou muito, mas quem tem fé vai prosperar, vai ganhar muito dinheiro. Política nunca resolveu nada. Deus é o único governante!

    Na beira da rodovia os caminhões chorões abafavam com sua velocidade o choro das crianças do bairro. Uma mãe se desesperou com o peito que secou: não saia mais leite, nem uma gota. A criança em pele e osso soltou um choro abafado no quartinho aonde dormia com mais três irmãos pequenos. A mãe que além de estar desempregada acabou de perder o leite, correu para a vizinha:

  •  Meu leite acabou! O menino tá com fome!
  •  Calma, vamo pegá água da torneira e ver se alguém tem leite em pó.

    Quinze casas do bairro juntaram esforços e conseguiram uma quantidade considerável de leite em pó. A mãe aliviada pensou que por duas semanas o garoto estava a salvo. Não era a primeira vez que aquele bairro assolado pela fome era palco de imprevisíveis movimentações coletivas. Correntes de solidariedade eram frequentes. Ás vezes, quando a noite caia e os ombros ficavam mais leves, homens e mulheres daquele bairro suspeitavam que o fim do seu sofrimento não seria uma concessão divina. Se todos tiveram que correr para dar um jeito e arranjar leite para aquele garoto, então todos deveriam sempre correr juntos numa mesma direção. Mas para onde? Em que direção? Um jovem de dezenove anos, que acabou de perder os pais e a irmã devido ao coronavírus, estacionou a bicicleta ao encontrar o tio que voltava do trabalho. O rapaz disse ao tio:

  •  Tio... Não é possível que as coisas continuem assim. Não tenho vontade de rezar na igreja e não quero encontrar os parça no boteco. Eu sinto que alguma coisa precisa acontecer pra gente sair dessa merda. Não sou só eu, não é apenas o senhor meu tio: todos que moram aqui precisam acabar com esse sufoco.

    Um caminhão frigorifico vinha vindo embalado em grande velocidade pela pista. A senhora do possante automóvel que estava na frente do caminhão freou, do nada, na rodovia. O motorista do caminhão jogou o gigantesco veículo para o acostamento; a carreta tombou e fez um barulho estrondoso que ecoou como um animal ferido. Todos no bairro ouviram o barulhão. O motorista conseguiu sair com dificuldade. Ele estava com uma forte vertigem: bateu a cabeça no volante. O impacto na carroceria foi tão grande que porta se abriu, deixando espalhada pela rodovia uma trilha de peças de carnes. O motorista virou a cabeça e olhou para a beira da pista, aonde localizava-se o bairro de famintos. Uma multidão se formou: homens e mulheres de todas as idades iam em direção ás peças de carne. Grupos de três a cinco pessoas levavam embaixo dos braços uma grande quantidade de carne. O motorista protestava:

  •  Isso é saque! É roubo! Tem que pagar pelas carnes! Aonde já se viu?! Desse jeito a empresa quebra!

    Uma senhora que segurava com dificuldade pedaços de carne disse ao motorista:

  •  Num leva a mal... O senhor pode chamar a polícia, pode chamar o teu patrão, quem o senhor quiser. Se o senhor tem carne na mesa, muito bem. Mas aqui carne de boi é coisa sonhada.
  •  Mas é contra a lei!
  •  Nosso barriga vazia num fala a língua dessa sua “ lei “.

    Obs: esta é uma pequena obra de ficção. Personagens e cenários inspirados na realidade brasileira, foram inventados pelo autor.


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