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Verônica Bolina, travesti, negra, teve fotos suas expostas nas redes sociais com cabelos raspados, seios à mostra, rosto desfigurado, hematomas por todo o corpo, deitada de bruços com a calça rasgada na região das nádegas.

Arte de: Amora Ribeiro

O contexto onde foram tiradas essas fotos é o da delegacia onde estava presa após, num surto, agredir violentamente uma senhora de 73 anos, delegacia onde, também num surto, arrancou com os dentes a orelha de um carcereiro, só a soltando da boca uma hora e meia depois, com a ajuda de medicação. A polícia a fotografou e expôs orgulhosa essas fotos desumanas, tratando uma pessoa detida como se fosse um mero animal, seu animal, enfiando-a, ela, travesti, negra, numa cela masculina hiperlotada, sem direito a peruca ou roupas femininas, tratando-a no masculino e pelo nome do registro civil para deslegitimar seu gênero travesti, julgando-se no direito de violentá-la e humilhá-la por crimes que a justiça sequer levou a juízo (ações essas, as cometidas pela polícia, que não só não estão previstas no Código Penal, como ainda são expressamente criminalizadas pelo mesmo — quem é o criminoso, nessas circunstâncias?).

O fato de uma pessoa ter sido detida não é justificativa para que seja privada de seus direitos, mas quando se trata de travestis, ainda mais negras, isso pouco importa. Verônica teve sorte de suas fotos caírem na rede, fotos tiradas enquanto ela se encontrava sob custódia da polícia, sorte porque essa exibição violenta acabou por lançar luzes sobre sua situação, a polícia agora precisando pensar muito bem o que faz, a sociedade inteira acompanhando o caso. Inclusive o fato tem sido usado espertamente para fomentar guerrinha particular entre PT (na figura de Alessandro Melchior, Coordenador de Políticas Públicas LGBT do município de São Paulo) e PSDB (na de Heloisa Alves, Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de SP), o primeiro insistindo no absurdo inaceitável da ação policial, ao passo que a segunda, baseando-se em áudios colhidos da própria Verônica, insiste em afirmar que a polícia agiu conforme a necessidade de conter os tais crimes da Verônica. Não há bonzinhos aí, todo cuidado é pouco.

Mas está se perdendo de vista algo fundamental nessa discussão. Quem nunca teve um momento de fúria em que seria capaz de destruir absolutamente tudo ao redor? Quão mais fácil não deve ser perder a cabeça quando se leva uma vida de merda no mundinho heterocisnormativo, travesti, negra, marginalizada, obrigada a se prostituir pra sobreviver, excluída da sociedade por se prostituir, preterida nos relacionamentos, apontada nas ruas, expulsa das escolas, expulsa de casa, do mercado de trabalho formal, vista como o aedes aegypti humano... seu crime é um crime cometido em meio à fúria de quem não consegue mais aguentar violência. É comparável ao do casal Nardoni, que arremessou do sexto andar a filha de cinco anos (e que, na prisão, precisou contar com apoio policial para não ser trucidado pelo presídio), ou ao de Suzane von Richthofen? Essa comparação serve bem para demonstrar que o principal crime de Verônica, o crime que fez com que fosse tratada feito animal pelos cães de guarda do Estado, não foi agredir a velhinha, mas ser travesti e negra e ter sido presa, não importa o motivo.




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