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TEATRO OFICINA | Teatro e o corpo como campo de batalha

O grande desafio que se coloca para os artistas é conseguir levar esse outro estado de corpo para a plateia de seus espetáculos, conseguir compartilhar essa potência com quem só tem acesso ao produto final de toda a investigação cênica - e garantir o acesso a esse produto ao maior número de pessoas possível.

Flávia ToledoSão Paulo

quinta-feira 30 de abril de 2015 | 00:00

O ano de 2014 foi marcado por um grande embate dos grupos de Teatro de São Paulo com a especulação imobiliária. Mais de vinte companhias, algumas figurando entre as principais companhias brasileiras, ainda enfrentam a possibilidade de serem despejadas a qualquer momento. Diversas iniciativas independentes discutiram a falta de espaços para a produção teatral, numa crise que se agudiza com o corte de verbas e o fechamento de oficinas culturais no estado.

Se a ocupação dos espaços foi a principal questão no ano passado, hoje a discussão avança para como ocupá-los. Como fazer o Teatro que precisa ser feito hoje? Como responder às efervescências das ruas nos palcos? São algumas das questões que se colocam, tanto para os novos artistas que já não confiam nas políticas culturais e se veem desamparados, quanto para as companhias consolidadas, como é o caso do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, capitaneado por Zé Celso Martinez Corrêa.

Passando por uma complicada crise econômica, o Oficina fará de 2015 um ano “DNA”: montará peças que já figuraram em seu repertório e usará a bilheteria como financiamento da companhia - nas palavras deles, investirão os próprios corpos na arte teat(r)al. E é exatamente pelo corpo que todas essas questões começam a ser respondidas.

A companhia abriu a temporada 2015 com a montagem de “Pra dar um fim no juízo de deus”, peça radiofônica de Antonin Artaud (que reestreia em 30 de abril e fica em cartaz às quintas-feiras até 28 de maio) em que a sua proposta de um Teatro da Crueldade e a necessidade de um corpo sem órgãos se estrutura. É uma peça que atravessa rudemente a relação estéril e higienista que a moral burguesa estabelece com o corpo: ao invés de belos gestos automáticos, os atores levam para o palco sangue, sêmen e fezes.

A ideia do corpo sem órgãos de Artaud, que o Oficina investiga há tempos, reinvindica um corpo reorganizado e refeito, que nega os seus automatismos e se permite “dançar ao inverso”, ou seja, que se manifesta efetivamente como algo que “é”, sem ser meramente instrumento de algo. Essa reorganização passa pela aproximação do sujeito daquilo que lhe é próprio sem que essa relação seja intermediada pela sua função, por exemplo, pela compreensão das fezes não como uma sujeira a ser rechaçada, mas como algo que faz parte do ser humano que vive. O mesmo vai se dar com a palavra: ela deixa de ser premeditada para ser uma força em si e uma concretude.

“O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico.” Artaud nos traz essa reflexão que cabe muito bem nos enfrentamentos de hoje. A automatização do corpo e a sua transformação em mero instrumento de expressão são uma forte repressão sobre o homem, que tem as suas principais forças vitais podadas. Em última instância, o corpo reprimido é a negação mesma da existência do homem como tal. E o Teatro, pra Artaud e pro Oficina, é um espaço privilegiado pra dirigir esses campos de força, ou melhor, para transformar o corpo em um campo de batalha e refazer a vida.

O debate sobre a potencialidade do corpo é comumente associado a uma postura metafísica e individualista, e não por acaso. Muito dessa investigação ocorre de maneira ensimesmada por atores e demais artistas do corpo, levando a uma sensação de emancipação individual alcançada apenas por aqueles que têm condições de dedicar grande quantidade de tempo e energia nesse treinamento. No entanto, essa busca pela quebra dos automatismos do corpo, se bem articulada com o que ocorre fora da sala de ensaio, pode ser muito positiva num processo de construção de sujeitos políticos.

Pra além do enfrentamento com a moral burguesa, que de fato não se vê representada nas peças do Oficina, por exemplo, que questiona fortemente o pudor e os tabus do corpo burguês, a proposta de um novo corpo questionador de si mesmo e que se reivindica como a própria vida é muito potente em meio a esse acirramento de tensões sociais. Em um momento em que certas palavras de ordem retornam ao cotidiano das pessoas e que métodos de ação política direta voltam a ter força, com a ideia de representatividade em xeque, a reivindicação do corpo como a expressão mais forte de vida por meio de um Teatro que nega a representação e ataca o gesto automatizado pode ser um grande instrumento de fortalecimento daqueles que hoje precisam se levantar muito firmes contra os ataques à sua dignidade e à sua própria existência.

O grande desafio que se coloca para os artistas é conseguir levar esse outro estado de corpo para a plateia de seus espetáculos, conseguir compartilhar essa potência com quem só tem acesso ao produto final de toda a investigação cênica - e garantir o acesso a esse produto ao maior número de pessoas possível. E no Oficina essa é uma preocupação: ser permeável com o que acontece ao redor para poder trocar e construir o espetáculo junto do público, e não apenas para ele, como fizeram brilhantemente durante junho de 2013 e durante o período de atos contra a Copa no ano passado, em que a ação dos atores e mesmo a dramaturgia dos espetáculos foram alteradas pra dar conta da efervescência das ruas.

Pensar o corpo como um campo de batalha não é suficiente para alcançar esse Teatro que se faz necessário hoje pra acompanhar as contradições da realidade. Mas, com certeza, é fundamental, seja pra quem faz Teatro, seja pra quem deseja usufruir dele. É preciso estabelecer um diálogo em que os gritos das ruas invadam os palcos, e os corpos potentes dos palcos invadam as ruas.




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