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Silvia Federici na USP: Alguns comentários, indagações e questionamentos

Mariana Duarte

Silvia Federici na USP: Alguns comentários, indagações e questionamentos

Mariana Duarte

Na última quarta-feira (25), como parte de sua estada no Brasil a convite da editora Boitempo, entre outras, a professora e escritora Silvia Federici esteve na Universidade de São Paulo (USP) para lançar seu último livro Mulheres e a caça às bruxas. Estive presente na conferência de lançamento e gostaria de tecer alguns breves comentários sobre o conteúdo colocado pela feminista italiana.

Com o auditório cheio, pessoas de pé e sentadas no chão, foi possível ver boa parte de minhas colegas de curso, professoras, mulheres de diversas idades, aguardando ansiosamente a chegada de Silvia, que ao chegar, iniciou sua fala retomando os motivos de sua pesquisa e escrita de seu último livro.

A escritora começou ressaltando como, diante da intensificação da opressão à mulher, crescente nas últimas décadas, era possível ver uma nova caça às bruxas. Em todos os cantos do mundo, mulheres são perseguidas e mortas, e segundo colocou mais de uma vez em sua exposição, como é necessário revisitar esse processo histórico para aprender com ele. Durante séculos, com base no domínio religioso da Igreja Católica, as chamadas “bruxas” foram perseguidas, transformadas em demônios e na causa de todos os problemas, animalizadas e torturadas. Um processo que minou a relação das mulheres entre si e com o coletivo. Relembrar esse processo como parte de toda a imundice da pré-história humana deve servir de combustível na luta por uma sociedade sem qualquer forma de opressão.

Silvia segue dando destaque a todo o processo de depreciação da mulher, mas, principalmente, de seu trabalho. Em relação a esse tema específico, do trabalho feminino na sociedade capitalista, já são conhecidas as posições polêmicas da escritora, de crítica feroz à teoria marxista do valor. Não entraremos tão detidamente nessa questão em específico, ainda que enquanto grupo internacional de mulheres pão e rosas já tenhamos desenvolvido textos que dialogam com este aspecto. No entanto, durante toda a exposição de Silvia, foi possível perceber, assim como pontos de diálogo interessantes sobre a luta das mulheres, temas que despertaram meu questionamento enquanto jovem estudante marxista.

Em meio ao despertar de interesse que a fala da veterana italiana foi causando, e a curiosidade de me aprofundar mais no estudo desenvolvido por ela em relação ao terrível processo de perseguição e assassinato sistemático de mulheres na Idade Média, começou a me chamar atenção, em primeiro lugar, a maneira como Silvia desenvolveu sua fala colocando como o processo de caça às bruxas foi essencial no enfraquecimento da possibilidade de resistência ao capitalismo por parte das comunidades existentes no período e fundamental para o processo de formação do capitalismo, exaltando as relações comunais da terra. Como adepta da análise materialista da história, e entendendo que o capitalismo se apropriou do machismo já existente na sociedade feudal para explorar mais a mulheres e o conjunto da classe trabalhadora e, através da opressão, aumentar seus lucros, ficou aquela pulga atrás da orelha: diante do obscurantismo e atraso medieval, não se tratava de um processo revolucionário a luta pela sociedade burguesa em oposição ao feudalismo?

A autora seguiu sua exposição tecendo comentários muito interessantes, que se aprofundam na pesquisa realizada no livro. Em relação, por exemplo, ao surgimento da palavra gossip, em português, “fofoca”, que naquele momento possuía um significado positivo, pois se tratava de algo com sentido próximo à “amizade”, mas que, como explicou, graças à degradação das relações sociais entre mulheres acabou se transformando em algo negativo e típico da atividade feminina. Graças a isso, as relações entre mulheres passaram a ser totalmente desvalorizadas, ressaltando ainda mais e, em detrimento dessas, a relação e o núcleo familiar. Sem dúvidas se trata de um levantamento interessante, ainda que a questão da importância da família e seu núcleo estivesse pautada, centralmente, por questões econômicas do desenvolvimento das forças produtivas e do surgimento da propriedade privada dos meios de produção, que exigia um núcleo familiar rígido do ponto de vista da mulher, devido ao surgimento da herança, que deveria ser passada de pai para filho.

Terminada o que vou considerar como a primeira parte de sua fala, em que retoma pontos centrais de seu livro em relação ao processo de caça às bruxas medievais, Federici colocou uma reflexão relacionada a caça às bruxas atual. Segundo a autora, os porquês de tal processo nos dias de hoje estariam relacionados a dois motivos centrais: a existência de um novo tipo de capitalismo – que não fui capaz de entender ao certo o que significa do ponto de vista da autora – e do crescimento de uma dominação religiosa que subjuga as mulheres. A diferença, no entanto, disse ela, seria o papel do Estado naquele e neste momento, já que a caça às bruxas medieval era financiada, dirigida e comandada pelo Estado enquanto instituição, e a atual não. A atual, é realizada por “setores que estão nas sombras”, é financiada pelo Banco Mundial e motivada, principalmente, em áreas que despertam interesses de setores importantes na economia, como o agronegócio e o turismo.

Tentando trazer de maneira mais concreta para o cenário que vivemos no Brasil, é possível, de certa forma, estabelecer paralelos com o que estamos vivendo. Existe uma renovação do obscurantismo medieval na figura de Bolsonaro – cuja principal base econômica está, justamente, em setores do agronegócio. Apoiado no poder e no conservadorismo das igrejas evangélicas, o presidente profere um discurso abertamente misógino e racista, que defende um lugar de submissão e mais exploração às mulheres. Através do discurso religioso, ministras como Damares Alves se apoiam para realizar todo tipo de manifestação reacionária contra as mulheres, com o famoso “menina veste rosa, menino veste azul”, ou suas investidas contra o direito ao aborto legal, seguro e gratuito através de tentativas de restringir ainda mais a pouca legislação que permite o aborto nos casos de estupro e risco para a mãe. Tal renovação encontra sua fortaleza em nível internacional em figuras como Donald Trump, que, como parte desse mesmo movimento do qual Bolsonaro faz parte, também é adepto desse obscurantismo ideológico. Diante de tais fenômenos, surge o questionamento de se, de fato, o Estado burguês como funciona hoje não possui relação direta com a violência e a perseguição às mulheres. No contexto da crise econômica internacional, a burguesia já se mostrou capaz de colocar na direção de seu Estado tais figuras, que através de todo o tipo de degeneração, inclusive de sua democracia, leva adiante políticas de incentivo a esse tipo de violência. Hoje, no Brasil, uma operação consciente do Estado é responsável pelo assassinato sistemático de jovens negros no Rio de Janeiro, uma situação de calamidade social desesperadora.

A fala que seguiu a exposição de Federici, realizada por Maitê Freitas, que ressaltou o aumento da influência das igrejas evangélicas e da perseguição da ancestralidade do povo negro, assim como do assassinato das mulheres negras no país, que além de sofrerem com a opressão de gênero e raça, têm de ver seus filhos sendo assassinados.

A colocação seguinte veio por parte de Natália Neris, que realizou uma série de perguntas à Federici a partir da leitura de seu livro, colocando, entre outras coisas, qual o papel das mulheres nas instituições do regime, como o Banco Mundial a as Nações Unidas, já que no livro Silvia faz uma crítica feroz a tais instituições.

A autora italiana dialogou com essa questão em relação ao cenário específico brasileiro, colocando como ocorreram variações de caça às bruxas na América Latina e na África. Em relação à questão das Nações Unidas (ONU), ressaltou como existem interesses econômicos por trás de suas ações.
Ao se abrirem as perguntas ao público, surgiram uma série de dúvidas que se relacionavam com o contexto brasileiro atual. Dentre estas, as mulheres ali presentes questionaram a posição de Silvia em relação a esse crescimento já anteriormente citado, o das igrejas evangélicas. Federici colocou como em um momento tão militarizado e violento, ainda mais em comunidades economicamente destruídas, as pessoas buscam lugares em que possam se sentir seguras, estabelecer relações de segurança, uma segurança que, no entanto, no caso das igrejas, é condicionada pela separação e pelo isolamento: “A esquerda falhou em construir esse tipo de comunidade, as mulheres fortes não somente devem dizer ‘não para isso, não para aquilo’, mas construir algo, é papel das mulheres construir uma comunidade.” Confesso que para mim acabou soando de maneira estranha a saída que a feminista italiana deu para as mulheres. Construir que tipo de comunidade, e como? Me fez lembrar de um texto publicado no portal internacional Esquerda Diário Bolívia, que discute a concepção de Silvia:

Neste cenário, aborda a defesa dos bens comuns como uma forma de resistência que esboça a possibilidade de uma sociedade alternativa ao capitalismo. O fundamento para isso são as relações de solidariedade e de cooperação que permitem redefinir de outra maneira – não capitalista – a noção de espaço e tempo. Para isso, coloca no centro da discussão a questão da reprodução social entendendo que esta precede a produção social e que as mulheres historicamente foram vinculadas ao trabalho reprodutivo. Nesse sentido, a resistência das mulheres e das comunidades à privatização também se configura como uma resistência ao despojamento dos conhecimentos, dos saberes e toda uma cultura que foi se construindo em torno a esse trabalho reprodutivo durante séculos. Dessa maneira, afirma que o capitalismo está em bancarrota e tem de ser substituído.”

Partindo do acordo de que é necessário que a luta das mulheres esteja a serviço de acabar com esse sistema, colocar as comunidades e as relações de cooperação e solidariedade como saída a essa luta, na verdade, acaba por nos deixar sem uma saída real para isso. Abrir mão da luta pelo poder político, colocando abaixo o Estado burguês e suas instituições e lutando por um Estado dos trabalhadores, ou seja, abrir mão da luta pela revolução social (mundial), é um dos principais questionamentos que ocorreram ao ver a conferência realizada por Silvia. É necessário que o movimento feminista tome consciência de que a única saída possível para as mulheres é a destruição do sistema capitalista, mas essa destruição não cai do céu, não pode ser apenas um “guia moral da resistência”, mas uma luta material contra a burguesia, que, por sua vez, não pode se dar por fora da luta pelo poder político.

Seguindo suas respostas, a autora afirmou: “as mulheres não deveriam ser encaradas apenas como vítimas”. Ressaltar essa questão é de extrema importância, já que – apesar de não ter entrado centralmente na fala de Federici – hoje as mulheres protagonizam um fenômeno cujo nível de mobilização é internacional, expressando-se em diferentes intensidades em cada país, mas ocorrendo em diferentes partes do globo. Dar a devida importância a esse processo é fundamental para nós, feministas socialistas, que partimos do ponto de vista de que as mulheres podem ser sujeitos históricos de transformar sua condição de opressão, assim como o conjunto da humanidade. Isso porque estamos nos postos de trabalho mais precários, mas também nos mais estratégicos de produção, e, como parte fundamental da classe trabalhadora, temos o poder de mudar as coisas pela raiz. Retomar e reivindicar a imagem da bruxa deve se dar retomando também as escravas insurretas, que lutaram contra a escravidão, assim como todas aquelas que se levantaram contra a opressão e a exploração da sociedade capitalista.

Seria muito difícil – e tão pouco é meu objetivo – esgotar todo o conteúdo expresso ao longo dos minutos que passamos com Silvia Federici na USP. Uma série de temas foram debatidos, entre eles, a questão da crise da imigração, da luta pelo meio ambiente, da linguagem feminista, dentre outros. No entanto, sinto que o diálogo com uma das principais feministas da atualidade, com certeza, não se esgotará por aqui.

A escritora terminou sua fala com uma mensagem de esperança às novas gerações: “não podemos nos dar o luxo de sermos pessimistas, precisamos batalhar para que tenham um futuro melhor do que nós”, acrescentaria à mensagem final da autora, que é preciso lutar por um futuro melhor, um futuro sem exploração nem opressão, um futuro comunista.


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Mariana Duarte

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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