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TEORIA | Repensar o duplo poder para reconquistar o poder

Este texto é a versão atualizada da intervenção no seminário "Estado, partido, transição", no colóquio "Pensar a emancipação" ocorrido na universidade Paris 8 - Saint Denis (França) do dia 13 ao 16 de setembro de 2017.

terça-feira 19 de dezembro de 2017 | Edição do dia

O pensamento estratégico, inclusive aquele que tem reivindicado o marxismo revolucionário e Lenin contra as diversas variantes neoutopistas ou neorreformistas típicas do momento posmoderno (momento político que ficou para trás do nosso), a muito tempo deixou encurralar-se. O fracasso brutal das hipóteses neopopulistas de esquerda, desde os governos "progressistas" latino-americanos ao cataclisma do Syriza, até o liquidacionismo de Podemos - sem falar da contrarrevolução que destruiu até agora a segunda primavera dos povos - fez envelhecer especialmente as opções altermundialistas social-libertarias que tentaram, por um tempo, seguindo Holloway, "fazer a revolução sem tomar poder". Combinado com os giros reacionarios e bonapartistas do momento, que nos lembram até que ponto os Estados burgueses inclusive "democráticos" manejam o porrete quando o pão não basta, este fracasso exige que não se volte a abordar com leviandade a questão do poder, quer dizer, dos fins e dos meios de enfrentamento vitorioso às formas políticas da dominação burguesa. Isto põe em lugar central a tese de Lenin "Sobre a dualidade o poder" de abril de 1917:

"O problema fundamental de toda revolução é o poder do Estado. Se este problema não é compreendido não pode haver participação consciente na revolução, para não falar de orientação da revolução"(1)

Dimensões do duplo poder e o regresso das tarefas preparatórias

O "duplo poder" designa um tipo de processo e de instrumentos políticos particulares pelos quais as massas em luta criam seus organismos de decisão independentes, alternativos e antagônicos as instituições existentes (soviets, comitês de greve, conselhos de fábrica, assembleias gerais) na perspectiva da greve geral e da insurreição. Historicamente este processo leva a maturação, em principio na revolução russa de 1905, a forma que os trabalhadores, desde século XIX, buscaram organizar-se, no curso ou através de greves especialmente, de maneira independente opondo-se aos Estados a serviço de seus exploradores. Lenin estabelece essa fórmula logo após a queda do czarismo para descrever a situação singular que opunha o governo provisório aos soviets:

"Este duplo poder se manifesta na existência de dois Governos: um é o Governos principal, o verdadeiro, o real Governo da burguesia, o "Governo provisório" que tem em suas mãos todos as posições do poder; o outro é um Governo suplementar e paralelo, um Governo "de controle", encarnado pelo Soviet de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, que não tem m suas mãos nenhuma posição do poder, mas que é sustentado diretamente no apoio da maioria indiscutível e absoluta do povo, nos operários e soldados armados"(2)

Semelhante coexistência de duas formas de poder de classe disputando o perímetro do Estado, rivalizando no terreno da soberania, pondo em jogo forças sociais antagônicas, era por essência instável.

"Não há duvida de que este "entrelaçamento" não pode durar muito. Em um mesmo Estado não podem existir dois poderes. Um deles está fadado a desaparecer"(3), completava Lenin, formulando de vez a virada decisiva com a qual ligava fevereiro "democrático" à perspectiva socialista, "Todo o poder aos soviets!", que iria criar o centro de gravidade do avanço até a insurreição. No que concerne a dialética complexa que teve nas relações entre soviets e partidos em 1917, não nos esqueçamos que os primeiros, onde o papel dos bolcheviques foi crescendo até virar maioria em outubro, desafiaram o Estado do governo provisório em três aspectos indissociáveis. Ao emergir, como uma fonte alternativa de legitimidade e mando, como germe ou esboço de uma nova forma de instituições fundadas sobre a democracia proletária, e finalmente, como meio pelo qual este poder de classe em germe, no movimento de sua elaborações, devia "destruir" o Estado burguês, o que Marx, depois de 1848, colocou no coração da transição revolucionaria na perspectiva do comunismo, quer dizer, a "ditadura do proletariado". Essa tese leninista, que o estalinismo considerou obsoleta, é uma perspectiva que consideramos que novamente deve ser parte do horizonte atual.(4)

"Limitar o marxismo a teoria da luta de classes, significa cercear o marxismo, tergiversa-lo, reduzir-lo a algo aceitável para a burguesia. Só é Marxista quem faz extensivo o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado."(5)

Em em uma crise revolucionaria, o "duplo poder" concentra imediatamente as tarefas em vistas do momento posrevolucionario e questiona frontalmente as mediações aptas para assegurar a coerência entra a nova base social e sua expressão política, em particular entre as instancias de frente única como os soviets e os partidos políticos. Mas em um período como o atual, quando a revolução tende a não ser revestida, a pesar da atualidade de sua perspectiva, da menor iminência, as tarefas atuais são bem mais tarefas de reconstrução, de reconquistas das tradições de auto-organização operária, de reaprender e de reacumulação de forças, mas também de relegitimação do papel dos partidos revolucionários ainda subjugados pela sensação dominante de sua inutilidade ou de seu perigo. Tarefas preparatórios, em suma, no seio ou à serviço destes "germes de democracia proletárias no marco da democracia burguesa" dizia Trotsky.

Quando a contrarrevolução e o refluxo alteram os objetivos

Esta necessidade de recomeçar, certamente pelo meio, porem quase ao começo deste meio, não cae do céu. Sem voltar ao tema do fracasso dos processos revolucionarios na Europa depois de 1917, na Alemanha em particular, e as lições que Gramsci tentou extrair dela nos anos 30 no plano de compreender as formas de Estado burguês no "ocidente" (6), recordemos que a contrarevolução estalinista e suas vicissitudes ajudaram consideravelmente a estabilizar o capitalismo posguerra, e inclusive a desacreditar tanto o projeto do comunismo como a ideia mesma de revolução. Ao fazer-lo, por sua negação burocrática do poder "sovietico" desde o fim dos anos 20, bloqueou toda emergência de processos de duplo poder que poderiam escapar de seu controle, como o da Hungria de 1956. Assim, nas antípodas, remodelou o mundo operário sobre linhas paralisantes e reformistas. Inclusive se, depois da caída da URSS e dos anos 90, do período altermundialista, depois das revoluções árabes, as ondas de indignação, etc., ressurgiram movimentos de massas aspirando a auto-organização democrática, não se pode mais que constatar a persistente debilidade das dinâmicas de duplo poder assentadas sobre uma perspectiva de classe, esforçando-se em ligar questões democráticas e questões sociais na perspectiva do socialismo, quer dizer, no sentido da lógica permanentista que condicionou a vitória de 1917.

No marco desta perda de tradições e referencias, onde a crise histórica do movimento operário internacional reforçada pela ofensiva neoliberal é a principal base material tanto como a expressão, depois de três decênios no plano teórico, a esquerda radical e/ou revolucionária não saiu imune. Também afetou os "pensamentos críticos" tanto mais se orientaram para um posmarxismo ou antimarxismo simplificados. Tudo isso foi marcado por um opacamento(7) ou uma liquidação generalizada da compreensão das vias de enfrentamento do Estado burguês. Este "grau zero do pensamento estratégico", lamentado a uma dezena de anos por Daniel Bensaid, não eludiu o campo marxista, em parte como herança desse "marxismo ocidental" nascido, como explicava Perry Anderson, das derrotas do período do entre guerras e o desconcerto frente ao estalinismo. Assim carregamos os estigmas de um rolo compressor onde os usos e abusos ja antigos de Gramsci, por exemplo, continuam fustigando, ao ponto de servir de base aos [Pablo] Iglesias, [JeanLuc] Mélenchon e consortes atuais. Um Gramsci levado a direita desde o eurocomunismo, mediante um uso a medida de sua distinção "oriente/ocidente" combinado com a hipertrofia taticista e eleitoralista da "guerra de posições" em detrimento da "guerra de movimento" tendo como objetivo o enfrentamento final contra o poder do capital, que ele mantinha, a pesar do que se diga, como um guia estratégico a serviço de uma "contrahegemonía" operaria e popular(8).

Livrar-se das ilusões a respeito do Estado burguês e a "democracia combinada"

Não se pode evitar de mencionar o enfoque sintomático de Poulantzas em "Estado, poder, socialismo" de 1978, que explicitamente recusou a lógica de duplo poder, estimando que o Estado, "condensação de uma relação de forças materiais", poderia ser ao menos parcialmente conquistado/reapropriado, o que implica recusar o modelo herdado de 1917, da "exterioridade" mutua total entre os organismos de autoorganização dos explorados e as instituições democráticas burguesas, e que sua combinação era insustentável. Consequentemente, imaginando uma vía "democrática" ao socialismo, sem ver-la entretanto ingenuamente pacífica ou gradual, falhou emblematicamente, ja que as formas de democracia burguesa e seu tipo de pluripartidarismo e os da democracia proletária são de natureza organicamente diferentes.
Em seu artigo de 1979 "Greve geral, frente única, dualidade de poder"(9) Bensaid escrevia

"Sob fórmulas que podem variar de um país a outro, os partidos comunistas e socialistas da Europa do Sul destacam a noção de "democracia mista", dito de outro modo, a combinação de formas de democracia direta surgidas das lutas de massas e de formas de democracia."

Essa "inovação" teórica apresenta uma vantagem tripla, para os PC, para os PS e para a classe dominante mesma:

  •  Aos PC oferece um meio cômodo de desembaraçar se do conceito de ditadura do proletariado (sob o pretexto de romper com o terror estalinista), e uma cartada para uma melhor aproximação às instituições do Estado burguês;
  •  Aos PS permite conciliar uma zelosa reabilitação da democracia parlamentaria e ma fraseologia e esquerda sobre a autogestão de base, que vai diretamente ao encontro de projetos tecnocráticos e modernistas de administração do Estado
  •  A burguesia lhe oferece a ocasião de relegitimar um sistema de dominação cuja tradição democrática parlamentaria está cada vez mais recoberta pelo estatismo autoritários, e de dar-lhe uma cara "liberal avançada" a suas reformas.

    A noção de democracia mista se opões a tradição revolucionária, da democracia direta, da Comuna de Paris e dos comitês de greve e as comissões de trabalhadores, passando pelos conselhos operários turineses e os soviets, em nome da luta contra o economismo e o corporativismo.

    No fundo este veredicto é de uma total atualidade. Surpreende que Mandel, ainda que muito crítico do eurocomunismo nessa época, caiu em parte neste tipo de ilusão. Em razão do domínio do parlamentarismo nos Estados capitalistas, as condições da dissipação das ilusões das massas nas soluções "democráticas", o sufrágio universal tal como existe, etc, se vem agravadas no "ocidente"; de onde surge a necessidade de encarar, antes que uma crise de legitimidade das instituições se abra profundamente, temporalidades maiores que aquelas pensadas por Lenin e Trotsky. Mandel considera a possibilidade de processos de coexistência mais ou menos duráveis entre "poderes" alternativos, logo, de modo não acessório, chega a pensar em formas de combinação, de "democracia mista", combinando elementos das instituições burguesas e elementos de instituições proletárias, como núcleo possível de uma transição revolucionária. Em 2006, sobre o fundo desta crise duradoura do horizonte revolucionário, Bensaid, em "Sobre o retorno da questão político-estratégica"(1), recordava assim que eles puderam "ver-se pasmados e desiludidos nesse momento pela aproximação de Ernest Mandel e a "democracia mista" a partir de um reexame das relações entre soviets e constituinte na Russia", mas sobre o andamento explicava que entretanto haviam "evoluído sobre este ponto, e que era

    "...muito evidente a fortiori em países de tradição parlamentarias mais que centenária, onde o princípio do sufrágio universal está solidamente estabelecido, que não se poderia imaginar um processo revolucionário de outro modo que de uma transferência de legitimidade dando preponderancia ao "socialismo por baixo", mas em interferência com as formas representativas[...]."

    A luta de classes real produz constantemente "interferências" deste tipo, imensamente variáveis segundo as conjunturas, colocando um numero de questões ´táticas cada vez mais delicadas, em particular nos períodos de crise ou de instabilidade nas quais as contradições são crescentes como na Catalunha. Ist porque frente a estas contradições as lutas criam em permanência, ao menos nas formas, algo novo, Trotsky o recordava no capítulo sobre comitês de fábrica do Programa de transição(11):

    "O movimento operário da época de transição não tem um caráter regular e igual, senão febril e explosivo. As consignas, igual as formas de organização, devem estar subordinadas a este caráter o movimento. Rechaçando a rotina como a peste, a direção deve estar de olhos abertos a iniciativa das próprias massas."

    Muitos processos de tipo "soviético", inclusive muito no inicio podem nascer híbridos por definição, não decantados, atravessados de "interferências". Mas a atenção a estes últimos não poderia jamais justificar o passar da linha vermelha consistente em manter a menor dúvida estratégica sobre o fato de que estas formas "combinadas" ou "mistas" estão condenadas de antemão a transformar-se em benefício do mais forte, porque os regimes sociais sobre os quais se baseiam respectivamente, a propriedade privada por um lado e sua destruição pelo outro, são estruturalmente incompatíveis-incombináveis.

    É nesse sentido que é tão necessário desconstruir sem dissimular todas as problemáticas da "democracia radical", "real" ou "até o limite" amplamente dominadas pelo reformismo e pelo eleitoralismo em Laclau, Mouffe, Errejón, Iglesias (que retoma Mélenchon), ou inclusive os chamados pouco delimitados a tal ou qual processo "constituinte". Isto obrigará também a clarificar os enfoques que, sem rechaçar-los forçosamente, flutuam, ou estimam inadequado ou inclusive abstrato no período, a distinção entre reforma e revolução, por isso os "duplo poder". Mais amplamente, nenhum aparato de Estado, nenhuma instituição burguesa qualquer que seja, inclusive caso pareçam mais "ideológicas que repressivas ou, como os "serviços públicos", e mais ainda as estruturas locais, em aparência mais apropriadas - aparência errônea que brinda o aspecto da dupla ilusão gradualista e "municipalista"(12)- não escapa ao seu papel estrutural de reprodução do regime da propriedade privada e do poder do capital. As variações nas formas de Estados nacionais, ou inclusive nas formas do papel de polícia política jogado pelas burocracias sindicais e políticas, por definição todas híbridas de traços "orientais" e "ocidentais" para retomar as categorias de Gramsci, produtos do desenvolvimento desigual e combinado que caracteriza mais que nunca o capitalismo contemporâneo, não mudam nada.

    * * *

    "Re-pensar" o duplo poder para "retomar o poder" não significaria hoje mais que ontem aplicar formulas magicas que transponham mecanicamente o (pretendido) "modelo" de 1917. Mas a questão estratégica das condições de destruição do Estado burguês, qualquer que seja sua fisionomia singular, permanece intacta. Em um momento em que uma maioria da humanidade para alem de algumas diferenças técnicas, não vivem hoje muito melhor que os camponeses russos sob a dinastia dos Romanov, as formas contemporâneas do Estado (e da democracia) sofrem, sob a pressão da evolução das relações de classe a escala internacional, toda classe de viragem brutais. Um "bolchevismo 2.0" a serviço desta reconstrução estratégica, na teoria e prática concreta, das vias de duplo poder, é inevitável

    .1 V. I. Lenin, “Sur la dualité du pouvoir”, Pravda 28, www.marxist.org).

    2 V. I. Lenin, Les tâches du prolétariat dans notre révolution, “L’originale dualité du pouvoir et sa signification de classe”, www.marxists.org.

    3 Ídem.

    4 E. Barot, Marx En El País De Los Soviets, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017.

    5 V.I. Lenin, El Estado y la revolución, Ed. CEIP, P. 147).

    6 J. Dal Maso, El Marxismo De Gramsci, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017.

    7 Ver E. Barot, “Etat, crise organique et tournants bonapartistes à l’ère Trump (I)”, www.revolutionpermanente.fr, 22/11/2016.

    8 Ver F. Rosso y J. Dal Maso, “Revolución pasiva, revolución permanente y hegemonía”, IdZ 13, septiembre 2014.

    9 D. Bensaïd, “Grève générale, front unique, dualité du pouvoir”, www.contretemps.eu, 3/6/2016.

    10 D. Bensaïd, “Sur le retour de la question politico-stratégique”, www.danielbensaid.org, 9/8/2016.

    11 L. Trotsky, Programme de Transition, “Les comités d’usine”, www.marxists.org.

    12 Ver J. Martínez y D. Lotito, “La ilusión gradualista”, IdZ 12, agosto 2014.




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