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Poesia e rebeldia negra no Brasil

Afonso Machado

Texto originalmente publicado em 3 de agosto de 2017

Poesia e rebeldia negra no Brasil

Afonso Machado

Herdeira do patriarcalismo e do escravismo, a civilização burguesa é antipoética na medida em que apoia seus pilares na exploração do proletariado moderno. O rosto representativo desta civilização é o do homem branco, autor de mil e uma artimanhas ideológicas por onde o racismo jorra feito veneno cultural. Para reunirmos as forças revolucionárias da poesia, ou seja, a artilharia simbólica necessária para realizarmos a oposição frente aos padrões culturais da classe dominante, precisamos mergulhar nas formas de rebeldia dos negros brasileiros. Esta afirmação, que remete à questão de gênero, não está apoiada num mero fragmento cultural: a perspectiva cultural do socialismo exige uma grande atenção para estas questões que são a um só tempo políticas e estéticas.

A presença africana na cultura brasileira vai muito além de meras contribuições: ela é um dos traços definidores da nossa própria cultura. Obviamente não é a falsa inserção do negro em produtos artísticos comerciais. A verdade é que no subterrâneo cultural dos séculos de escravidão, ergueu-se um conjunto de experiências cênicas, religiosas, musicais e políticas que salvaram a cultura brasileira de ser um xérox dos padrões europeus. Uma energia poética vital brota diretamente destes elementos que não apenas contrastam mas ferem a composição ideológica, as referências culturais eurocêntricas. Portanto não se trata de coexistência com padrões dominantes: a arte revolucionária, em sua pluralidade, abrange(dentre vários outros componentes) as formas da cultura negra.

Pensar a história dos vencidos( isto é classes, grupos e segmentos sociais marginalizados/explorados/massacrados) no contexto brasileiro, exige a definição das imagens das lutas dos oprimidos. A imagem do negro rebelde, que apoia-se nas tradições de origem africana mescladas ao contexto histórico brasileiro, precisa ser reconhecida como fonte libertária não apenas para os afro descendentes: em suas múltiplas linhas , o rosto da classe trabalhadora brasileira encontra nos símbolos da cultura negra, referências indispensáveis para sua própria representação artística e política. No entanto, as atividades culturais de resistência negra, aparentemente esbarram numa contradição: a crítica/protesto contra o racismo só poderia ser realizada por um artista/militante negro?

Devemos ressaltar aqui que enquanto sujeito histórico, o negro não precisa que ninguém fale por ele: além da cultura negra possuir um arsenal estético que lhe confere força expressiva, as lutas políticas contra o racismo encontram-se historicamente nas ações dos militantes negros: estes são os autores que combatem com sua voz, com sua escrita e com seu corpo a sociedade racista. Porém, a luta contra todas as formas de dominação, a luta pela emancipação humana em todos os sentidos, se faz também a partir do trabalho de escritores e artistas que mesmo não sendo negros, assumem o ponto de vista dos afro descendentes. Obviamente um poeta, seja ele negro ou não, não traz nenhuma contribuição se realizar um retrato que desperte sentimentos piedosos diante de uma situação de opressão. Um poeta revolucionário, portanto necessariamente corajoso, empenha-se na elaboração de imagens em que o oprimido em geral não surge como mero objeto, mas sim como sujeito, como figura revolucionária que ameaça a classe dominante.

É impossível falarmos em arte social no Brasil e não abordarmos as formas artísticas de origem africana e a própria trajetória da população negra: desde os séculos XIX e XX, muitos artistas combativos mergulharam na história do Brasil para obter nas lutas dos negros material estético. Indispensável dizer que hoje este mergulho ainda se faz necessário. Olhando para a história da literatura brasileira, esbarramos no problema mencionado anteriormente: a representação artística, sobretudo no século XIX, da condição dos negros. O poeta Castro Alves, nome que foi cultuado pelo stalinismo, seria um autor que divide opiniões: o chamado poeta dos escravos, representante da chamada geração romântica condoreira, exprimiu uma consciência avançada sobre o problema da escravidão: trata-se de um poeta engajado. Edison Carneiro, importante estudioso da cultura negra no Brasil, indagou-se com a possibilidade de Castro Alves ter lido Karl Marx. Silvio Romero teria classificado a poesia de Castro Alves de “ socialista “(resta questionar o que o autor quis dizer com “ poesia socialista “). Entretanto, alguns estudiosos dos nossos dias, falam que apesar de combater a escravidão, Castro Alves perpetua estereótipos, produzindo a imagem do escravo sofrido. Seria uma espécie de visão humanista ainda contaminada pelos parâmetros literários da elite branca. Em contrapartida, Luiz Gama, poeta e intelectual autodidata, traz o ponto de vista do negro combativo no interior da luta abolicionista. Luiz Gama é um nome que ainda permanece injustiçado na literatura brasileira: ainda que a poesia de Castro Alves seja de grande importância, Luiz Gama é dotado de uma radicalidade poética que deve ser difundida para a atual geração de militantes socialistas.

No Brasil do século XX, alguns artistas de esquerda, tentaram esculpir a partir da orientação estética do jdanovismo, uma imagem em que “ o herói do trabalho “ seria negro. Os romances de Jorge Amado influenciados pela estética do Realismo Socialista, são objetos literários em que a imagem o negro brasileiro articula-se com o nacionalismo e a idealização do proletariado segundo o stalinismo cultural. Apesar dos prejuízos/problemas presentes nesta concepção artística, deve-se levar em conta que ela trouxe, até certo ponto, uma contribuição original nas atividades literárias de esquerda: como já tive a oportunidade de afirmar em outras ocasiões, Jorge Amado mostrou com sua prosa poética, folhetinesca e dotada de brilho e energia, que quem quiser realizar “ literatura proletária “ no Brasil(nunca é demais falar que este conceito é um equívoco histórico), deve entender que o nosso proletariado passou pela miscigenação, sendo que os componentes da cultura negra não se separam da realidade da classe trabalhadora brasileira(romances como Jubiabá, de 1935 e Mar Morto, de 1936, são exemplos primorosos disso). Mas se este tipo de produção cultural procurou no século XX associar a questão negra com o nacionalismo de esquerda (como demonstram por exemplo as pesquisas de Edison Carneiro e a mencionada literatura de Jorge Amado) existe uma perspectiva internacionalista que liga as lutas do negro no Brasil com as lutas de todos os oprimidos em todos os lugares, em todos os tempos. Curiosamente, foi Benjamin Péret, um poeta surrealista e trotskista francês, que sugeriu esta abertura com um belíssimo estudo sobre o quilombo de Palmares. Antes de voltarmos ao estudo de Péret, vejamos o caráter poético da resistência negra.

Devemos pesquisar e sentir a poesia na luta dos negros brasileiros, a partir da cultura que esta própria luta produziu: ela se fez historicamente com o sincretismo religioso, com a dança sensual que recusa a moral e os padrões da elite branca, com o golpe certeiro de capoeira, aplicado contra um feitor numa fazenda de engenho dos tempos da América portuguesa ou do Império brasileiro etc. É preciso pensar que se o corpo fala, a capoeira, as danças e a pulsão rítmica da música de origem africana, foram fundamentais para subverter o próprio corpo durante os tempos da escravidão: no lugar do corpo reprimido do escravo, curvado e temeroso, surge o corpo altivo, pronto para expressar-se artisticamente, defender-se de uma agressão física e organizar-se politicamente contra os senhores de escravos. Não é preciso ser um historiador meticuloso para observar que as formas de resistência negra durante a época da escravidão, envolviam tanto na senzala quanto no quilombo uma dimensão estética. Tratando-se especificamente da experiência política dos quilombos, deve-se meditar sobre a ousadia de fazer regra a cultura de escravos fugitivos.

Um estudo inovador sobre o quilombo de Palmares, fenômeno político rebelde erguido no século XVII(corresponde atualmente ao território alagoano), foi realizado por Edison Carneiro: O Quilombo de Palmares(1947) é uma parada obrigatória para qualquer interessado no assunto. Um estudo menos conhecido, publicado em 1956 na revista Anhembi, é Que foi O Quilombo de Palmares?, de Benjamin Péret. Enquanto surrealista, Péret era um devoto da liberdade: ele ficou profundamente tocado pela luta dos negros de Palmares contra a sociedade escravista da América Portuguesa. Apoiando-se nos estudos históricos realizados sobre Palmares, o poeta francês foi além ao perceber que a destruição do quilombo pelas autoridades, envolve o equívoco político do isolamento: Péret nos mostra que a aspiração de liberdade dos negros de Palmares, só seria historicamente possível se ela se estendesse para todos os negros da colônia, se ela atingisse todos os escravos da época. É portanto o desenvolvimento histórico da consciência da liberdade que faz com Péret valorize e ao mesmo tempo aponte os limites políticos da experiência do quilombo de Palmares.

Evidentemente que a história do quilombo de Palmares envolve uma trajetória complexa, imersa em muitas contradições. Se os quilombos de um modo geral e todo legado rebelde da cultura negra possibilitam focos de resistência contra a ordem política e a cultura dominante, discutir sua expansão, sua validade para além do regional, significa reivindicar hoje que a luta da classe trabalhadora (que é internacional) também contempla as lutas do conjunto de povos oprimidos. Sabemos hoje que a força poética contida na cultura negra é certamente internacional. Não é possível pensar a poesia da Revolução sem a cultura negra.


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