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SÉRIE | Pequeno manual subversivo para um exército de criadas

A propósito da série Handmaid’s tale, de Bruce Miller (Hulu, 2016)
Publicado na revista Ideas de Izquierda 39 de julho de 2017.

Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

sexta-feira 29 de setembro de 2017 | Edição do dia

A série de TV The Handmaid’s Tale (O conto da Aia, em português), baseada no livro homônimo da escritora canadense Margaret Atwood, narra a história de uma sociedade em que um governo totalitário tomou das mulheres todos os seus direitos. Uma ditadura militar governa parte dos Estados Unidos sob os preceitos de uma seita religiosa chamada “Os filhos de Jacó”.

A história de Offred (Elisabet Moss) e a família da qual é propriedade transcorre na Nova Inglaterra, a região onde se estabeleceram os primeiros colonos britânicos que fundaram a nova Nação do Norte. A geografia não é o único gesto desta busca incessante por recriar o “destino manifesto”, mito original de uma sociedade chamada a salvar a humanidade. A retórica e os valores dos governantes copiam algumas atitutes dos puritanos que povoaram a costa leste dos Estados Unidos há alguns séculos.

Em um mundo arrasado por problemas ambientais, e devorado pela decadência social, duas marcas da barbárie capitalista de nossa época, a humanidade se enfrenta com o abismo da taxa de natalidade negativa. A maioria da população é estéril, e o Estado assume a tarefa de garantir o futuro da raça humana.

Em Gilead (nossa república fictícia) o governo impõe sua dominação mediante a repressão e um sistema de espionagem gigantesco em que milhares de olhos observam a população. Uma das saudações frequentes entre as pessoas é “Under his eyes” (Sob seus olhos), algo que responde tanto ao conteúdo fortemente religioso das políticas estatais como à vigilância constante.

Não há questionamento dessa ordem reinante, ou melhor dizendo, não há rastros de quem questiona o regime. A combinação de repressão, opressão e vigilância tem como fundamento visível o bem estar e a segurança comum. A classe dominante assegura que deve proteger a população para garantir o futuro, e para isso aplica com dureza leis e castigos. Assim como castiga as mulheres rebeldes cortando-lhes uma mão ou tirando-lhes um olho, segundo a regra moral que tenham violado, castigam com pena de morte os homens que as violam. Mas esse castigo nada tem a ver com proteger a vida das mulheres, é só uma proteção de algo que os Comandantes sentes como seus, sua propriedade privada. Lembremos que mulheres férteis são os recursos mais precioso de Gilead.

A sociedade é dividida em classes e um sistema de castas classifica as mulheres. As únicas, contudo, quem tem algum vestígio de direito são as esposas dos Comandantes, a elite da classe dominante. O resto se divide em “Marthas”, encarregadas das tarefas domésticas, “Aias” que tem a capacidade de reproduzir a vida e as “Tias”, que são as encarregadas de educar as criadas, mediante o disciplinamento físico e o doutrinamento ideológico.

As mulheres e as outras

Com exceção das esposas, as mulheres não têm nome próprio, uma marca do “grau zero” de identidade: as chamam pelo nome do homem que encabeça a família a que são destinadas. O único “valor” das criadas é pertencer a essa minoria capaz de reproduzir a vida. Isso lhes outorga um status duplo: adoradas e humilhadas, garante-se a elas melhor alimentação e não realizam quase nenhum trabalho, mas são forçadas a carregar em seu ventre os filhos dos Comandantes, considerados o “futuro” da humanidade.

As cenas mais violentas são as denominadas “cerimônias”, onde as aias são violadas pelo Comandante enquanto a esposa deste a segura pelos pulsos e a mantém presa entre as pernas. Essa é a forma escabrosa em que as mulheres da classe dominante participam da concepção de seus filhos e a concepção implícita de que existem elas e nós. Talvez o mais violento seja que quase não se emprega força física na violação/cerimônia; uma vez derrotada e apagada a subjetividade, as criadas são simplesmente incubadoras humanas. A missão de salvar a humanidade se transforma na justificativa da subjugação e humilhação. Não há saída.

A única coisa que as aias possuem são suas histórias, que conhecemos desde o começo com flashbacks constantes. Assim nos enterramos que de Offred na verdade se chama June e trabalhava em uma editora, que participou junto ao marido e amigas das mobilizações contra o governo totalitário e até o último instante tratou de tentar salvar a vida da sua filha. Através da sua história e a da sua amiga Moira (Samira Wiley) conhecemos alguns detalhes dos anos que precederam a tomada do poder pelos “filhos de Jacó”.

A “pré-história” de Gilead é, talvez, uma das coisas mais interessantes e que mais repercussão tem tido (ainda não tão explorada pela própria série), especialmente nos Estados Unidos onde os direitos das mulheres estão na mira. A ditadura teocrática se consolida depois de um desgaste gradual dos direitos das mulheres e restrições democráticas à população: primeiro se fecham as contas bancárias das mulheres, depois as proíbem de trabalhar e, finalmente, as que podem engravidar são literalmente cassadas.

As traidoras do gênero e o início da rebelião

Uma das primeiras aias com que Offred inicia uma relação fora do seu circulo controlado é Ofglen (Alexis Bledel), uma ex-bióloga reduzida a reprodutora como ela. Ofglen é uma “traidora do gênero”, a escória mais odiada em Gilead: é lésbica. O destino das “traidoras” são as colônias de trabalho forçado, onde vão parar todas as que resistem de algum modo, depois de haverem suportado mutilações e torturas.

Embora com modos mais brutais, como no capitalismo, se castiga a sexualidade não reprodutiva e as mulheres homossexuais ficam com a pior parte por traírem seu destino biológico de reprodutoras. Ofglen, salva por ser fértil, forma parte de uma organização clandestina e é a que convida a protagonista a somar-se a causa. Offred não aceita automaticamente, deverá atravessar sua própria revolta pessoal para chegar à conclusão de que é necessário destruir essa sociedade.

Os últimos capítulos da primeira temporada nos mostram os primeiros passos da rebelião que nasce desss pequenas revoltas pessoais e luta para converter-se em força coletiva. A repressão e vigilância conseguem afogar literalmente em sangue os primeiros intentos, mas como no capitalismo, a classe dominante é a que cria seu próprio coveiro.

Embora vejamos poucos avanços, sabemos que algo impossível de parar está em marcha: “A culpa é deles. Não deveriam nos dar uniformes se não queriam que formássemos um Exército”, disse Offres, quase falando a quem está do outro lado da tela. A faísca incendiou o pavio e não parece haver água suficiente para apaga-lo.

A ansiedade joga contra, há que se esperar até 2018 para saber o que se passará com nossas heroínas que se vestem como no século XVIII mas que compartilham do mesmo desejo de liberdade das mulheres do século XXI.

Um pesadelo atual escrito no passado

The Handmaid’s Tale foi escrito por Margaret Atwood em 1985. Inspirada em livros como 1984 de George Orwell e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, pensou em escrever sobre o que aconteceria às mulheres se um governo totalitário chegasse ao poder. Naquela época, a reação conservadora ganhou impulso e Ronald Reagan ameaçava o direito ao aborto legal. Os problemas abordados pelo romance se mantiveram atuais, tanto que teve múltiplas adaptações ao cinema, teatro e ópera e hoje chega às tela pela produtora de conteúdo on demand Hulu.

Mais de 30 anos depois, este romance distópico está entre os livros de ficção mais lidos nos Estados Unidos. O contexto no qual o governo republicano de Donald Trump, muito longe do receio puritano dos “Filhos de Jacó”, ataca retórica e politicamente os direitos das mulheres, se transformou em caldo de cultivo do êxito da série. Entre as milhões de pessoas que participaram das massivas Marchas das Mulheres no primeiro dia da administração de Trump e que protagonizaram a renovada agitação do movimento de mulheres e LGBTs encontramos a geração que dá um novo significado à criação de Atwood.

O impacto chegou junto aos protestos. Em 27 de junho, enquanto era tratada a reforma republicana para os planos de saúde, se realizou em frente ao Congresso um ato de mulheres vestidas como as aias de Gilead, em uma clara alusão ao retrocesso que representava o desfinanciamento de centros médicos que realizavam, entre outras coisas, abortos legais. A reforma republicana, que pode deixar sem cobertura 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos, golpeia especialmente as mulheres que veem comprometidos seus direitos reprodutivos.

A pergunta que passa quase todas as entrevistas a Atwood se centram em seu livro “prever” a presidência de Trump ou, mais em geral, estes anos onde o direito das mulheresestão ameaçados, e compartilha a leitura de que o romance pode funcionar como uma aviso sobre o possível desenvolvimento de uma democracia cada vez mais restrita e que ataca os direitos dos oprimidos. Por sua vez, convida a um debate que também está presente no feminismo e no movimento de mulheres quando se pergunta: “The Handmaid’s Tale é um romance feminista? Se isso quer dizer um texto ideológico onde todas as mulheres são anjos e/ou estão tão vitimizadas que são incapazes de escolher, não. Se querem dizer que é um romance em que as mulheres são seres humanos – com toda a diversidade de caráter e comportamento que isso implica – e também são interessantes e importantes, e que o que acontece com elas é crucial para o tema, a estrutura e a trama do livro, então sim”.




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