Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Pandemia, Bolsonaro e o regime do golpe: a urgência do feminismo socialista neste 8 de Março

Simone Ishibashi

Ilustração: Juan Chirioca

Pandemia, Bolsonaro e o regime do golpe: a urgência do feminismo socialista neste 8 de Março

Simone Ishibashi

O 8 de março de 2021, data que lembra a luta das mulheres desde a Conferência Internacional das Mulheres da II Internacional, não será como os outros. Dá-se em um contexto marcado pelo momento mais agudo da crise pandêmica. Durante os primeiros dias deste mês o Brasil atingiu a marca de quase 2 mil mortes por dia, agravando ainda mais a situação de vida das mulheres, em especial da classe trabalhadora. Sem vacinas, ou até mesmo salários em dia, as trabalhadoras da Saúde seguem perdendo suas vidas enquanto relatos desesperados tomam as páginas de jornal todos os dias. As trabalhadoras da Educação, como as professoras, são obrigadas em vários estados a voltarem às aulas presenciais de forma absolutamente insegura. Torna-se cada vez mais explícita a irracionalidade capitalista.

Ao mesmo tempo em que o ultradireitista Bolsonaro assegura através de seus desmandos e negacionismo reacionário que essa marcha fúnebre siga, os demais atores do regime político forjado pelo golpe, como os políticos dos capitalistas que atuam no Congresso, o STF e os governadores dos estados fazem demagogia, mas na prática seguem condenando as famílias trabalhadoras a enterrarem seus entes queridos. Nem o avanço da crise sanitária, combinado ao enorme índice de desemprego que chega à casa dos 14 milhões de pessoas e à explosão da inflação, em especial dos alimentos, fazem com que os atores do regime do golpe abram mão de seguir impondo ataques aos trabalhadores. O próprio auxílio emergencial foi atrelado à PEC emergencial, em valor ínfimo, que permite 14 governadores congelarem salários e cortarem investimentos públicos.

Ademais, outras bandeiras históricas para as mulheres seguem sendo negadas. O direito ao aborto legal, seguro e gratuito, conquistado pela Revolução Russa há mais de um século segue negado às mulheres em pleno século XXI. Nesse terreno das conquistas democráticas mais elementares para as mulheres, como o direito de disporem de seus próprios corpos, as ameaças de ataques e retrocessos são recorrentes. A ingerência do conservadorismo religioso e agressivamente patriarcal na política atinge diretamente as mulheres, e ecoa no Judiciário machista que condena as mulheres recorrentemente.

Em um ápice de perversão vimos recentemente grupos de fanáticos condenando uma criança de 10 anos, violada por um familiar, por ter que recorrer ao aborto. Declarando-se em “defesa da vida” essa turba delirante também materializa a hipocrisia capitalista: muito amor pelos fetos, muito ódio das pessoas, sobretudo das mulheres. O ataque aos fundamentos laicos do Estado, uma conquista legada pela longínqua Revolução Francesa, assumiu em nosso país a forma da bancada da bíblia, cujo papel no regime se fortaleceu pelos acordos com o PT e se aprofundou ainda mais com a ascensão de Bolsonaro.

Esse conjunto de fatores escancarou ainda mais os efeitos dos elos das cadeias que ligam a opressão à exploração das mulheres sob um capitalismo cada vez mais decadente. Sobretudo para as mulheres da classe trabalhadora, pobres e negras, que são os principais alvos da elevação da violência, tanto doméstica agravada pela pandemia, quanto estatal, que não cessou de ceifar vidas de crianças com operações policiais, como as que seguem se dando no Rio de Janeiro.

No entanto, essa gama de elementos demonstra como ao contrário da prostração e da desmoralização, o que esse 8 de Março deve nos levar a concluir é a urgência em transformar a raiva em organização. Partir de que não estamos sozinhas nessa batalha, e que nossos laços de solidariedade, não apenas com as mulheres que estão próximas a nós, mas com as que abriram caminhos para nossas lutas ao longo da história, deve ser o combustível que nos impulsione adiante. Retomar como fundamento as lutas das mulheres revolucionárias que vieram antes de nós e enfrentaram desafios não menos agudos, e as que em nossos dias, mundo afora, desafiam corajosamente os que as atacam, é um ponto de partida fundamental. A atualidade do feminismo socialista nunca foi tão urgente.

Importância do feminismo socialista

A organização das mulheres pelos seus direitos legou alguns dos mais importantes capítulos da luta de classes internacional. Mas em meio a todo esse caminho, a Revolução Russa feita pelas bolcheviques e pelos bolcheviques foi a que deixou a herança mais rica, da qual podemos partir e reatualizar suas lições. Há mais de 100 anos as revolucionárias e revolucionários que protagonizaram a maior revolução da história da nossa classe encararam as demandas das mulheres com uma profundidade absolutamente superior às democracias capitalistas daquela época, e da atualidade.

Partindo de uma compreensão radical da relação entre opressão e exploração, a jovem república soviética, mesmo dilacerada por uma sangrenta guerra civil em 1918, adotou um código civil que visava tirar as mulheres do embrutecimento doméstico a que até então suas vidas eram resumidas. Sob o objetivo de lograr a mais ampla emancipação como sujeitos plenos, os revolucionários avançam em medidas de socialização do trabalho doméstico imposto pelo patriarcado. Este trabalho não remunerado, responsável pela dupla ou até mesmo tripla jornada de trabalho a que as mulheres estão submetidas pelo capitalismo, deixava de ser encarado como algo privado, e passava a ser um problema do âmbito público. Criar as condições materiais para que as mulheres participassem igualmente da política, se educassem, produzissem cultura e ampliassem seus horizontes era uma batalha tão importante como garantir que tivessem como sustentar-se.

O objetivo dos bolcheviques era arrancar de toda a vida social os fundamentos opressivos patriarcais, defendendo o direito das mulheres ao divórcio, implementando medidas como a pensão obrigatória, e legalizando o aborto e com isso garantindo o direito elementar das mulheres de decidirem sobre seus próprios corpos. Algo que nos foi, e segue sendo negado, tanto no Brasil de Bolsonaro, como nos anos de governo do PT.

O enfrentamento sem tréguas ao conservadorismo, que impunha às mulheres serem propriedade de seus maridos, ou de seus pais, abria caminho para que a humanidade almejasse novas formas de relação. O amor livre, em que as pessoas escolhem estar juntas movidas unicamente pela manifestação igualmente livre de suas vontades, deveria ocupar o lugar do opressivo contrato matrimonial. Tal como o fim da propriedade privada dos meios de produção deveria libertar a humanidade da humilhante preocupação cotidiana sobre sua subsistência, que atualmente frente os avanços tecnológicos só explicita ainda mais a irracionalidade capitalista, a nova localização da mulher na sociedade revolucionária a emanciparia das amarras do papel de ente doméstico. O socialismo só poderia ser construído e avançar com a força criadora, sempre rebelde, criativa e combativa, das mulheres vivendo em sua plenitude.

Ainda que o stalinismo tenha imposto um retrocesso a esses avanços, impondo a revogação de tais conquistas e reabilitando a noção de “mãe soviética” contra o da revolucionária, essas lições são ainda mais fundamentais na atualidade. Não se trata de retomá-las com saudosismo do passado. Ou mesmo com o olhar de um historiador nostálgico. Mas como um exemplo pungente, de como em pleno século XXI nossas aspirações não podem ser menores que as das mulheres de nossa classe na Rússia revolucionária de 1917.

A burguesia imperialista também tirou suas lições das lutas revolucionárias do século passado e teme a potencialidade revolucionária dos trabalhadores. Desde então tenta capitalizar e esvaziar a luta das mulheres com ilusões de feminismos liberais e de mercado traduzidos em um “empoderamento” no e para o consumo. Um aprisionamento das aspirações das mulheres pensado na medida para promover grandes monopólios.

Já a fantasmagoria de que as mulheres no poder, sem em nada alterar estrutura do capitalismo, já deu inúmeras demonstrações de que está a serviço de aprofundar, e jamais questionar, a relação entre opressão e exploração. Como exemplo recente temos Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos, mulher e negra, que foi coadjuvante dos ataques à Síria. Ou mesmo Condoleeza Rice, igualmente mulher e negra, que na qualidade de secretária de Estado daquele mesmo país foi uma das protagonistas mais centrais das guerras do Iraque e do Afeganistão. Ou mesmo Dilma, que governou o Brasil por anos e não reverteu a negação de direitos elementares das mulheres. Pelo contrário, aliou-se aos bispos-capitalistas que naquele momento lhe prestavam apoio, como o bilionário Edir Macedo. E a lista ainda poderia seguir.

Mas também, e muito felizmente, exemplos que vão à contramão disso também vêm sendo numerosos. Na Argentina no ano passado a potente luta das mulheres com a sua maré verde arrancou nas ruas o direito ao aborto. Nos Estados Unidos o potente combate contra o racismo e o assassinato sistemático de negros e negras pela polícia, mostrou que a luta de classes segue vigente no coração do capitalismo internacional. Em Myanmar as greves gerais contra a tentativa de golpe no país têm à sua frente rostos de mulheres, muitas trabalhadoras da Saúde, e também do movimento LGBT. E até mesmo na Polônia, governada pelo reacionário partido de ultradireita Lei e Justiça, a ofensiva regressiva teve que recuar pela força das manifestações das mulheres contra o absurdo projeto de lei que proibiria completamente o aborto, mesmo em casos de estupro ou risco à saúde das mães.

Se por um lado é claro que essas demonstrações não se comparam à magnitude da Revolução Russa de 1917, por outro são alentos, que mostram que as mulheres seguem combatendo pelas suas demandas mundo afora. O que recoloca com ainda mais urgência avançar na organização das mulheres, e na adoção de uma estratégia que ligue a luta pelas nossas exigências àquela que visa derrotar o capitalismo tomado em todos os seus aspectos.

Pão e Rosas no Brasil: uma força renovada para encarar essas tarefas

Foi partindo da compreensão da magnitude das nossas tarefas, mas também dos enormes pontos de apoio da luta de classes internacional, que no dia 06 de março uma potente e apaixonante força se demonstrou na plenária do Pão e Rosas. Com mais de 1000 mulheres de 25 estados do Brasil a plenária do Pão e Rosas foi marcada pela disposição de transformar a raiva em organização. Mulheres de várias categorias de trabalhadoras, dentre as quais algumas das mais estratégicas do país como saúde, educação e transportes, terceirizadas, uniram-se à juventude para realizar um verdadeiro encontro de gerações sob um único e mesmo propósito: derrotar Bolsonaro, Mourão, todos os golpistas como o Judiciário machista e racista e os governadores, que igualmente são parte da obra do golpe.

As denúncias e relatos dos absurdos que vivenciamos a cada dia, não tinham apenas cargas de tristeza. Tinham raiva. Tinham potência. Vontade de transformar a realidade. De mulheres que não aceitam serem caladas, seja pelos ataques e repressão dos de cima, seja pelas direções burocráticas ligadas ao PT, PCdoB. Estas direções que sob a anuência do PSOL negaram o direito do Pão e Rosas a se expressar na atividade nacional do 8 de março em nome da articulação de sua “frente ampla” com os que nos atacam e protagonizaram o golpe.

Na contramão dessa adaptação das direções burocráticas aos que nos atacam, vimos uma esperança que perpassou cada uma das intervenções, que revelavam o espírito rebelde, a força questionadora, e a criatividade das mulheres que se negam a serem atacadas sem oferecer resistência. Que reconhecem sua própria força nas outras e mune-se delas. Novas gerações que se apropriam das redes sociais criadas pelos magnatas Vale do Silício para propagar não o consumismo ou a alienação, mas a mensagem de que a revolução e a luta das mulheres estão ligadas. Meninas de 12 anos que declararam orgulhosas estarem participando da primeira atividade política de suas promissoras vidas. Rompendo barreiras geracionais e geográficas, a plenária do Pão e Rosas demarcou a necessidade de avançarmos na construção de um feminismo abertamente socialista, que faça jus à máxima deixada por Rosa Luxemburgo quando afirmava “a revolução é fantástica, todo o resto é besteira”.

Saiba mais: Mais de 1000 pessoas participam da Plenária do Pão e Rosas em 25 estados

Que essa força se organize e cresça cada vez mais. E que essa ligação entre a luta contra a opressão às mulheres à luta contra o capitalismo materializado em organização, nos transforme já hoje no embrião das mulheres do futuro. Mulheres que lutam irrefreavelmente pelo direito não apenas a sobreviver, mas a viver plenamente. Sabemos que isso não será pacífico, e não depositamos nossas energias em ilusões falaciosas. Nas mentiras já provadas de que as alianças com a oposição capitalista, composta pelos mesmos golpistas, seria capaz de derrotar Bolsonaro. Ou solucionar a crise pandêmica. Ao contrário disso, acreditamos em nossas próprias forças, umas nas outras, na nossa classe, e na nossa estratégia. Somos um perigo para o capitalismo e seus agentes. E te chamamos a estar conosco.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[8M 2021]   /   [Pão e Rosas]   /   [Rosa Luxemburgo]   /   [Teoria]   /   [Gênero e sexualidade]

Simone Ishibashi

Rio de Janeiro
Editora da revista Ideias de Esquerda e Doutora em Economia Política Internacional pela UFRJ.
Comentários