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Os militares no banco dos réus

Thiago Flamé

Os militares no banco dos réus

Thiago Flamé

Como já discutimos em diversos textos analisando o significado e as consequências do 8 de janeiro, que fortalecem o processo de estabilização do novo governo, essas ações nas quais a cúpula das forças armadas foi levada pelo bolsonarismo mais longe do que pretendia, dificultou enormemente a integração dos militares ao novo governo. A delação de Cid pode colocar generais pela primeira vez no banco dos réus.

Analisando os governos e a formação estatal dos países de desenvolvimento capitalista atrasado na América Latina nos anos trinta, Trotski forjou o conceito de bonapartismo sui generis, que segue sendo extremamente útil para entender a realidade atual e o que ocorre no Brasil. A diferença dos países imperialistas, nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, a burguesia local é relativamente mais débil em comparação com a força do proletariado local, em função da sua dependência do capital estrangeiro. Isso, dizia Trótski, cria condições especiais, características distintas, para as formações estatais e os governos.

Ter isso em conta neste momento é muito importante para entender o que está em curso, nos processos que podem levar pela primeira vez um general para a cadeia. O bloco de forças que se forjou em torno da aliança Lula/Alckmin, deu características de um ultrapresidencialismo para este governo. A unidade entre o Executivo, o STF, a grande mídia, a administração Biden e o processo de pactuação com o exército, levaram a uma grande concentração de poderes no Executivo e no STF. O que torna mais complexo esse governo do que outros em nossa história que poderiam ser comparados é a capacidade que Lula teve até agora de anular a capacidade de reação da classe trabalhadora, de explorar ao maximo a covardia e o oportunismo das direções sindicais, desta casta de burocratas da qual ele próprio é fruto. Lula mantém mantém e aprofunda a obra do golpe, a explosão da violência policial inclusive nos estados governados por petistas, o novo teto de gastos chamado cinicamente de “arcabouço fiscal”, a carta branca para as privatizações nos estados e a aproximação com Tarcisio em São Paulo, só que em precisar reprimir e atacar os sindicatos, ao contrário, elevando esses a um dos pilares dessa estabilização reacionária.

O governo Bolsonaro teve características e tendências a um bonapartismo militar, que nunca chegou a se consumar por que estava em permanente disputa com o bonapartismo judiciário que limitava e condicionava suas ações, se apoiando nos interesses da grande burguesia e do imperialismo depois da derrota eleitoral de Trump. Na fórmula do bonapartismo sui generis, os casos extremos em que oscilam os governos burgueses, seriam se apoiar nas massas proletárias para impor limites à dependência ao imperialismo, ou o contrário, se apoiar no imperialismo e submeter o proletariado a uma ditadura. A realidade não repete fórmulas químicas puras, mas sem dúvidas o governo Bolsonaro estava integrado neste segundo caso, e, se apoiando no golpe institucional de 2016, prosseguiu uma enorme ofensiva neoliberal contra o nível de vida da classe trabalhadora e aprofundou o alinhamento total aos EUA. Ainda que não tenha se constituído como uma ditadura, foi um governo loteado pelos generais.

Grande parte da esquerda que apoiou a Frente Ampla abandonou qualquer sombra de uma política independente e queria um governo burguês do primeiro tipo. Um governo em que Lula arrastasse um setor da burguesia local para uma política de concessões à classe trabalhadora. Como dissemos, o hiperpresidencialismo lulista não se configurou dessa forma. Se apoiou no imperialismo e na burguesia local para constituir um governo de prosseguimento e estabilização da obra econômica do golpe, as reformas,e não de concessões ao movimento de massas. O caracterista surreal desse governo é que também se apoia na classe trabalhadora e suas organizações, e no baixíssimo nível de aspirações das massas, na capitulação extrema das organizações sindicais e do PSOL as condições impostas pelo golpe, para voltar as organizações da classe trabalhadora contra a própria classe trabalhadora..

Se apoiando nessa base social ampla e contraditória, Lula desde o início buscou fazer todas as concessões aos militares e ao bolsonarismo institucional para estabilizar uma ampla base burguesa de apoio. Avançar sobre Bolsonaro para satisfazer as suas bases e a administração Biden que quer conter a influência de Trump a nível internacional. Ao mesmo tempo, buscou ampliar as margens de uma autonomia relativa em relação aos EUA e iniciou uma aproximação geopolítica com a China, que tem incomodado muito o imperialismo estadunidense.

Os generais serão presos?

A aproximação com a China tem acirrado as disputas geopolíticas no bloco hiperpresidencialista. Ao mesmo tempo, temos assistido uma enorme concentração de poderes no STF, que se consolidou neste início de governo Lula como um poder moderador de fato.

Já havíamos analisado a matéria do Financial Times, que interpretamos como um tiro de advertência para a cúpula militar. Ela foi publicada paralelamente a maior visita militar chinesa da história no Brasil e depois da visita de Lula à China, onde foram assinadas uma série de parcerias, entre elas algumas de interesse prioritário para os militares. Lula pactuou com os generais, se mostrou disposto a esquecer e perdoar, e em troca os generais estavam assimilando as coordenadas geopolíticas do novo governo e buscando os maiores benefícios para si, na nova parceria com a China. O anúncio de Lula, dos cerca de 50 bilhões do PAC da Defesa, parecia selar esse pacto com uma montanha de dinheiro. Mas faltou combinar com os americanos.

Evidentemente uma movimentação dessa natureza não iria ficar sem resposta. Já durante a visita de delegação militar chinesa a administração Biden mandou imediatamente sua própria delegação ao país, numa política de contenção. É impossível desligar o curso das investigações e a delação do Coronel Cid, dessas disputas. O depoimento de Delgatti já havia colocado os generais no centro das acusações de tentativa de manipulação eleitoral, acusando-os inclusive de vazar o código fonte das urnas. A delação de Cid, por sua vez, segue exatamente o roteiro traçado pelo artigo do Financial Times.

A situação das forças dentro da Frente Ampla e do bloco hiperpresidencialista se torna mais complexa em função do acirramento das disputas geopolíticas. O STF atua no sentido de colocar obstáculos ao pacto de Lula com os militares para dificultar uma aproximação geopolítica com a China. A cúpula judicial desde a Lava Jato passando pela eleição de 2018, pelo governo Bolsonaro, pela reabilitação de Lula e agora com a ofensiva pós 8 de janeiro, tem sido a mais fiel aliada do Partido Democrata no Brasil. Imediatamente a resposta da ativa foi se desvincular completamente dessas ações, colocando a responsabilidade inteiramente nos oficiais da reserva, rifando os seus colegas. Na verdade a conexão é mais profunda. Durante todo o processo do golpe institucional os altos oficiais da ativa e da reserva mantiveram uma intesa colaboração e boa parte do flerte golpista foi feita quando os oficiais agora na reserva eram ainda da ativa e comandantes das forças. O próprio Paiva que ridiculariza o golpismo do Almirante Almir Guarnier como uma bravata fora de época e um comandante sem tropas, foi justamente parte da aplicação de golpes de outro tipo, como o golpe institucional de 2016. A senha para a intervenção dos obtusos como Guarnier, foi dada pelo tuite que ele próprio redigiu com o Comandante Villas Boas. Enquanto foi funcional para os seus interesses a cúpula miltar deixou a vontade seus Guarnier. Agora pode abadonalos se necessario for. A ruptura dessa solidariedade de casta entre os altos oficiais é o preço que a cúpula da ativa se mostrou disposta a pagar para garantir a sua pactuação com Lula.

A situação pós 8 de janeiro colocou o bolsonarismo e os militares na defensiva. A greve do metrô de São Paulo, que pegou Tarcisio de surpresa, mostrava que era possível colocar a classe trabalhadora em cena e reverter a favor da classe trabalhadora a defensiva do bolsonarismo. Nesse momento, as direções do movimento de massas apoiaram o pacto de Lula e a classe trabalhadora perdeu uma grande oportunidade de entrar em cena.

Mais uma vez as disputas que começam a aparecer dentro da Frente Ampla, no marco de um governo que vai se estabilizando e se assentando, abrem interrogações sobre como vão se posicionar as diferentes forças do esquema hiperpresidencialista, desequilibrado também pela acumulação de poderes no STF. O momento atual pode abrir uma situação favorável a entrada em cena do movimento de massas, o que alteraria o conjunto do posicionamento das forças políticas em disputa e seria a única maneira de reverter a consolidação de um regime cada mais antidemocrático, tutelado pelo STF e pelo imperialismo. Com um governo que vai se estabilizando com a ampliação da sua base de sustentação à direita, incorporando setores bolsonaristas para tentar uma maior margem de autonomia em relação a um STF fortalecido, ao mesmo tempo em que atua fortemente via centrais sindicais para legitimar o STF e impedir que a classe trabalhadora entre em cena.

Ainda é cedo para dizer se a ofensiva contra a cúpula militar vai até as últimas consequências. Ou se ainda resta espaço para um pacto de impunidade, dessa vez sob a tutela do STF e do governo Biden. E mesmo se os militares da ativa teriam interesse em abrir mão dos negócios da China para salvar a pele dos militares da reserva. Também não pode ser visto como um passeio no parque para a administração Biden cortar na carne da cúpula das Forças Armadas brasileiras, que são o grande um grande fator reacionário e de defesa da ordem a escala continental.

A mesma correlação de forças aberta pós oito de janeiro que enfraqueceu o bolsonarismo radical e a cúpula militar e colocou como possibilidade a entrada em cena da classe trabalhadora, abriu também a possibilidade da continuação de ataques privatistas como o do governo Tarcisio. Será decisivo para a situação nacional não só a continuidade ou não da ofensiva contra Bolsonaro, que agora inclui a cúpula militar que passou para a reserva recentemente, mas também o resultado dos próximos embates entre a classe trabalhadora , que anunciou greve do Metrô, CPTM e Sabesp, em meio ao estopim de uma greve estudantil na número 1 nos rankings, a USP,para o próximo dia 3 e uma extrema direito institucional que busca uma pactuação com o próprio governo Lula.


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Thiago Flamé

São Paulo
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