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Os cem anos da III Internacional e o legado de Rosa Luxemburgo

Fernando Pardal

Os cem anos da III Internacional e o legado de Rosa Luxemburgo

Fernando Pardal

Entre as dezenas de mesas do Simpósio da USP que relembrou os cem anos da Internacional Comunista, um importante debate sobre Rosa Luxemburgo e seu legado trouxe distintas visões sobre uma das maiores revolucionárias do mundo, que completa também o centenário de seu assassinato.

À primeira vista poderia parecer estranho debater a relação de Rosa Luxemburgo e a Terceira Internacional – ou Internacional Comunista. Afinal, a revolucionária polonesa foi assassinada em janeiro de 1919, e a Comintern – como ficou também conhecida a III – foi fundada apenas em março do mesmo ano. Como poderia, então, Rosa ter sua atividade política ligada à dessa organização?

A mesa do Simpósio ocorrido no Departamento de História da USP trouxe distintas visões sobre como essa relação se daria. A pesquisadora Rosa Rosa Gomes, que realizou seu mestrado pesquisando a obra de Rosa Luxemburgo demonstrando como suas profundas elaborações econômicas se vinculam estreitamente aos embates políticos que esta travou no interior da Socialdemocracia alemã e por uma visão revolucionária, antiimperialista e em oposição à Primeira Guerra Mundial. Procurando desenvolver o sentido da já célebre fórmula de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, Gomes elucidou como em “A acumulação do Capital”, obra de investigação econômica de maior destaque da revolucionária, Luxemburgo aponta para o fato de que as guerras e o imperialismo são inevitáveis no processo de acumulação capitalista, que apresenta uma dinâmica perpétua. Assim, as consequências do pensamento político de Rosa e sua luta sem trégua contra o reformismo de Eduard Bernstein estariam ancoradas nessa concepção política.

Já Diana Assunção, dirigente do MRT e que assina o prefácio da biografia de Rosa Luxemburgo escrita por Pau Frölich e recém-lançada no Brasil, destacou a profundidade do pensamento estratégico de Rosa, em particular a partir dos embates que deu contra o Socialdemocrata Karl Kautsky, que na época de auge da Segunda Internacional era conhecido como o “papa do marxismo”. Assunção apontou para o fato de que Kautsky introduz o debate de estratégias no Partido Social Democrata Alemão (SPD) a partir da discussão entre a estratégia de aniquilamento e a estratégia de desgaste. Para Kautsky, o momento de ascenso que vivia o SPD, com a conquista de cada vez mais sindicatos e cadeiras nos parlamentos, justificava que o partido adotasse a “estratégia de desgaste”, ocupando cada vez mais espaços no regime político da burguesia e enfraquecendo seus inimigos de classe aos poucos, deixando para um futuro longínquo e incerto o momento de passar para a fase de “aniquilação”, onde se abateria a burguesia definitivamente. Luxemburgo, por outro lado, defendia que era necessário utilizar a tática da disputa eleitoral, mas tendo como fator principal de luta as greves de massas, as lutas de rua, em uma palavra, os métodos da luta de classes protagonizados pelos trabalhadores. Criticando seu partido, Rosa Luxemburgo dizia que este havia chegado a um ponto de fazer “nada mais que parlamentarismo”, impedindo o desenvolvimento da luta de classes para que esta não “atrapalhasse” seus acordos com a burguesia.

Assim, como apontou Diana Assunção, muito antes que Lênin visse a degeneração irremediável de Kautsky como um inimigo da revolução proletária, Rosa, que lado a lado com Kautsky havia combatido a teoria reformista de Bernstein no início do século, já apontava que o caminho que seu companheiro de partido seguia era o de uma adaptação cada vez maior ao regime político burguês. Desde a revolução de 1905, Rosa Luxemburgo, que fora a Rússia para participar ativamente dos eventos, havia visto a partir da mobilização da classe operária russa e da criação dos sovietes o caminho que deveria ser seguido também pela classe operária alemã, e nesse sentido já demonstrava seu internacionalismo. Combatendo a adaptação ao parlamentarismo do SPD, e defendendo o centro na luta de classes e no protagonismo da classe trabalhadora, Rosa foi protagonista de um dos primeiros e mais decisivos embates estratégicos que levou à ruptura com a II Internacional e a criação das bases fundamentais para a fundação da III, anos depois.

Com essa síntese acerca de uma das principais lutas políticas travadas pela revolucionária no interior da socialdemocracia alemã, centrando-se em combater a visão pacifista, evolutiva e parlamentarista de Kautsky, que cada vez mais se colocou em antagonismo contra a ação dos trabalhadores na luta de classes e com a perspectiva de derrubar o Estado burguês e estabelecer sua ditadura revolucionária - em outras palavras, se afastando dos fundamentos do marxismo - Diana Assunção fez um preâmbulo necessário para a fala de Gilson Dantas, também militante do MRT. Em sua fala, Dantas demonstrou como na evolução política posterior de Rosa Luxemburgo, ela nada mais fez do que aprofundar e extrair as conclusões políticas, organizativas e estratégicas desse embate contra o centrismo e o reformismo que marcara sua trajetória anterior. A luta que se inicia contra o revisionismo de Bernstein evolui para o combate ao centrismo de Kautsky e, em 1918, culminará com a ruptura definitiva com a socialdemocracia e a fundação do Partido Comunista Alemão - um partido de vanguarda armada com uma estratégia revolucionária que, ao ganhar maioria na classe, poderia levar a revolução socialista até a vitória na Alemanha.

Assim, o centro da polêmica em torno do legado de Rosa e de sua relação com a III Internacional se expressou na polarização que se verificou na mesa entre a visão do legado de Rosa Luxemburgo sustentada pelo MRT - Diana Assunção e Gilson Dantas, - e aquela que se expressou fundamentalmente na fala da debatedora restante. Isabel Loureiro, a mais importante estudiosa da obra de Rosa Luxemburgo no Brasil, apresentou sua visão acerca da relação da revolucionária polonesa com os bolcheviques – que foram os grandes impulsionadores da criação da III Internacional – em uma chave centrada em divergências e dissensões. Loureiro afirma que desde a falência da II Internacional, marcada pela adesão dos partidos socialdemocratas de diversos países – com destaque para a socialdemocracia alemã, que era o maior e mais importante partido operário – à guerra imperialista. A votação dos créditos de guerra no Reichstag, o parlamento alemão, em agosto de 1914, seria o decreto da morte política dessa organização internacional, e a conferência de Zimmerwald, no ano seguinte, assinalaria os primeiros passos rumo à criação da III Internacional. Como apontou Loureiro, Rosa sempre foi uma ardorosa defensora da necessidade de se criar tal organização, pois, como marxista, via a necessidade incontornável da revolução mundial para que a humanidade pudesse chegar ao comunismo. No entanto, o destaque da fala de Loureiro foi para o fato de que em fins de 1918, em um momento já muito próximo à morte de Rosa por mando da socialdemocracia alemã, esta dizia em seus escritos considerar prematura a fundação da nova internacional naquele momento, enquanto não houvessem partidos comunistas mais maduros em diversos países.

Para corroborar sua visão de que o fundamental da relação entre Rosa e os bolcheviques era a discordância em pontos decisivos, Loureiro recorreu ao seu escrito publicado postumamente por iniciativa de seu camarada Paul Levi no ano de 1922 – momento em que Levi já havia rompido com o Partido Comunista alemão e se valeu do escrito de Rosa de 1918 para fortalecer suas críticas a seu ex-partido. No texto de Luxemburgo, escrito em sua prisão, ela polemizava com diversos pontos dos bolcheviques, que abarcavam questões importantes como a dissolução da Assembleia Constituinte ou a questão agrária. O fato é que Rosa, após debater com outros camaradas da Liga Espartaquista (organização que foi o embrião do Partido Comunista Alemão), foi dissuadida de publicar seu livro. Loureiro, no entanto, insiste no ponto de que as críticas elaboradas ali por Rosa mostram sua oposição, em particular, na sua visão, à forma centralizada de partido e ao terror implementado por governo soviético – cujo responsável direto era Félix Dzerjinski, antigo camarada de Luxemburgo no Partido Socialdemocrata da Polônia. Assim, ainda que tenha enfatizado a longa defesa da revolucionária polonesa acerca da necessidade de uma nova internacional, Loureiro apresentou ao público do debate uma visão fundamentada em divergências entre Rosa e os bolcheviques que justificariam a sua posição contrária à fundação da III Internacional em 1919.

Já Gilson Dantas, sociológo, médico e militante do MRT, apresentou uma visão diametralmente oposta à de Loureiro: para ele, Rosa Luxemburgo apresenta uma trajetória política que a levava a convergir progressivamente com os bolcheviques. Dantas localizou um dos principais debates presentes entre Rosa, Lênin e Trotski na questão da relação entre partido e classe, entre vanguarda e massas. Rosa Luxemburgo em diversas ocasiões criticou Lênin por sua concepção de um partido de vanguarda, que reunisse os elementos mais conscientes da classe operária que atuassem como revolucionários profissionais. Com uma concepção de partido que deveria abarcar a maior proporção possível da classe, a ideia de Rosa Luxemburgo convergia muito mais com a concepção de Trotski, que durante muitos anos se opôs à concepção leninista de partido, defendendo a reunificação entre mencheviques e bolcheviques. Contudo, conforme destacou Dantas, nesse momento os três grandes revolucionários tinham concepções equivocadas: Lênin, num primeiro momento, via apenas o papel preponderante dos elementos conscientes (partido), enquanto Trotski e, particularmente, Rosa, davam muita ênfase ao elemento espontâneo (massas). Foi a experiência soviética que permitiu que Lênin e Trotski avançassem para convergir, vendo como a atuação do partido em um organismo de frente única das massas trabalhadoras (sovietes) era a combinação que poderia levar à revolução proletária vitoriosa.

De acordo com Dantas, Rosa Luxemburgo, tal como Lênin e Trotski, irá amadurecer sua concepção, mas não terá tempo de tirar todas as conclusões. Aponta, no entanto, para sua convergência com os elementos fundamentais do leninismo nos momentos derradeiros de sua vida. Como fundamento para sua opinião, Dantas aponta a ruptura de Rosa junto aos espartaquistas do partido que então compunha junto com alas de centro desgarradas do SPD e que conformavam o Partido Socialdemocrata Independente (USPD). A ruptura dos setores comunistas de vanguarda e a fundação do Partido Comunista Alemão (KPD), um partido que estava longe de ser massivo no momento de sua fundação, indicava que Rosa Luxemburgo estava aderindo à concepção de um partido de vanguarda, que, por meio de uma estratégia, um programa e uma teoria corretas deveria lutar para conquistar a maioria da classe. Gilson Dantas leu em sua intervenção partes do documento de fundação do KPD, “O que quer a Liga Spartakus?” redigidos por Rosa Luxemburgo, para apontar textualmente como essa concepção leninista se expressa. Essa concepção entre a relação de um partido de vanguarda e as massas proletárias se expressa com total clareza no seguinte trecho do documento:

“A Liga Spartakus não é nenhum Partido que quer alcançar a dominação por cima ou através das massas de trabalhadores. A Liga Spartakus é apenas a parte do proletariado consciente de seu objetivo que indica, a passo e passo, a todas amplas as massas trabalhadoras suas tarefas históricas, defendendo, em cada um dos estágios específicos da revolução, o objetivo final socialista e, em todas as questões nacionais, os interesses da Revolução Proletária Mundial.”

Além disso, demonstra como estes mesmos documentos apontam para a necessidade de uma derrubada violenta do Estado burguês, com a dissolução da polícia, o desarmamento da burguesia e o armamento do proletariado como condições indispensáveis para implementar sua ditadura. Tudo isso também aponta para uma evolução do pensamento de Rosa Luxemburgo, abandonando concepções mais pacifistas que poderiam ser extraídas de suas críticas anteriores ao terror vermelho. Uma demonstração cabal disso é que no calor do ascenso revolucionário os espartaquistas tomam a redação do Vorwärts, do SPD, transformando-o na redação de seu próprio jornal.

Assim, Gilson Dantas demonstra, a partir do documento fundacional do KPD, como Rosa Luxemburgo, em meio ao calor da luta revolucionária alemã, passa a confluir cada vez mais com as posições de Lênin em relação ao partido e seu papel – tal qual ocorrera com Trotski. Contudo, a tragédia, demonstrada pela experiência da revolução alemã afogada em sangue em 1919, e o próprio assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os maiores dirigentes comunistas alemães. A compreensão da necessidade de ruptura com a socialdemocracia para a constituição de um partido revolucionário de vanguarda, com um programa soviético e que se preparasse para assaltar o poder baseado nesses organismos, viera tarde demais para a revolução de 1919. A organização chegara no momento decisivo ainda muito pequena e débil, insuficientemente forjada para poder lutar pela maioria da classe e fazer frente ao poderosíssimo aparato da socialdemocracia constituído ao longo de décadas.

Infelizmente, com o tempo da mesa esgotado, não houve tempo para o debate entre as posições. Mas, conforme apontou Gilson Dantas, as posições de Rosa Luxemburgo, como sempre ocorreu com os grandes revolucionários, foram modificadas e forjadas no calor dos grandes acontecimentos da luta de classes. A imperiosa necessidade da construção de um sólido partido com uma estratégia e um programa para vencer, preparados para disputar a hegemonia a partir dos organismos de frente única e de auto-organização – os conselhos, ou sovietes – tal como fizeram os bolcheviques, foi inegavelmente postulada por Rosa Luxemburgo como condições para a vitória. Não à toa, como lembrou Gilson, o documento foi apresentado por Lênin como base para as discussões programáticas da III Internacional. Assim, a Internacional Comunista nasce sob o auspício direto de Rosa Luxemburgo, fazendo com que a essência de seu último combate estivesse inscrito na nascente bandeira da revolução comunista internacional.


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