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“O homem coletivo sente a necessidade de lutar”: Chico Science & Nação Zumbi contra a polícia militar e o bolsonarismo.

Renato Shakur

“O homem coletivo sente a necessidade de lutar”: Chico Science & Nação Zumbi contra a polícia militar e o bolsonarismo.

Renato Shakur

Arte: Juan Chirioca

O carnaval de Recife já não é mais o mesmo desde 1997, quando num acidente de carro Francisco de Assis França, conhecido como Chico Science, deixou uma Manguetown tomada de sonhos, muitos deles revolucionários, com uma juventude farta do neoliberalismo, do racismo, da violência policial, da miséria e da fome. Era em síntese esses elementos sociais que a banda Chico Science & Nação Zumbi traduzia num tom crítico a partir de uma entonação vocal do próprio Chico Science que confundia a embolada, o hip hop, o rap, com os graves das alfaias do maracatu, atravessados pelo atabaque do Toca Ogan e a psicodelia inconfundível da guitarra de Lúcio Maia . E como ele mesmo dizia em seu Monólogo ao Pé do Ouvido , “basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”, a partir daí era uma experiência única de se afundar na lama do mangue, de perceber num tom de consciência crítica de que a banda não só anunciava os defeitos de uma sociedade burguesa degenerada, anunciava seus aliados que assim como eles também “cantaram um dia” em tom de protesto essa mesma denúncia, como Zumbi e os Panteras Negras, e sobretudo, seus principais inimigos, a polícia e o estado burguês.

A imagem sugerida no manifesto manguebeat de 1992, Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro já dizia muito do que esperar musical e politicamente dos magueboys e manguegirls: “uma antena parabólica enfiada na lama”. Era uma tentativa de juntar a partir dos avanços tecnológicos da indústria fonográfica os elementos da cultura negra em Recife, que remontava o passado de luta e resistência de negros escravizados, exaltando sua cultura e lembrando desde o nome da banda, Nação Zumbi, que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e em particular na cidade do Recife havia criado possibilidades de se construir uma cultura e uma classe social consciente de suas tarefas [1]. Esses aspectos eram parte constitutiva das letras da banda, não à toa quando elas foram novamente tocadas no carnaval da cidade neste ano, a polícia militar prontamente proibiu os músicos que as continuassem tocando sob ameaças de prisão. No entanto, esse fato não apenas revela que quando Chico Science é tocado nas periferias e nas ruas de Recife acende um ânimo anti racista e anti capitalista na juventude e nos trabalhadores, mas que por hora, esse conteúdo não agrada aos planos bonapartista [2] de Bolsonaro e do general Heleno.

Bolsonarismo contra Chico Science & Nação Zumbi

Infelizmente, o carnaval de Recife esse ano também foi bem diferentes dos demais, não porque Chico Science já não pode tocar nos trios elétricos, mas porque suas músicas foram proibidas de serem tocadas por qualquer banda no carnaval. A banda Janete saiu para beber foi proibida de tocar a música Banditismo por uma questão de classe em um show no Recife Antigo dia 24, sob ameaça da polícia militar e com a justificativa de que “Chico Science não pode tocar”. O mesmo aconteceu com a banda Devotos quando tocava a mesma música e com o artista China. Fato é que essa repressão às bandas de Recife que tocam músicas da banda Chico Science & Nação Zumbi é algo inteiramente novo e denota uma inflexão bonapartista do regime que está diretamente ligada a iniciativa de Bolsonaro e o general Augusto Heleno em se apoiar em elementos fascistizantes no Nordeste, como os motins policiais e as milícias para responder a partir de uma nova correlação de forças a investida do Congresso com o orçamento impositivo.

A tensão que escalou durante o carnaval quando Bolsonaro publicou um vídeo convocando um ato de ultradireita contra o Congresso no dia 15/03, está ainda em curso, e se combina com a entrada no governo de um general da ativa e segundo no comando do Estado Maior, Braga Netto. Ainda está em aberto como irá se desenvolver essa disputa tática entre o bonapartismo institucional pela via do semi-parlamentarismo e Bolsonaro apoiado cada vez mais em elementos reacionários e milicianos da sociedade. Nesse sentido, a medida que Bolsonaro começa a dar engrenagem ao bolsonarismo, o regime político passa, ele próprio, a eleger os inimigos que possam colocar em questionamento seu projeto. O que tem de novo na repressão policial às bandas que tocam Chico Science no carnaval de Recife - algo que sempre existiu - é que o conteúdo das letras daquela banda do movimento manguebeat questionam a polícia militar e a repressão estatal a tal ponto que hoje se chocam diretamente com o bonapartismo miliciano de Bolsonaro. Para ele, esses grupos tal como os policiais amotinados no Ceará que Bolsonaro apoia por baixo, assim como outros políticos de seu partido, são peça chave para impor ou um recuo ou uma melhor condição para negociação com o Congresso, na medida em que eles agudizem o conflito social causado pela sedição salarial da polícia militar e questionam governos estaduais como no caso do Ceará onde o bolsonarismo perdeu eleitoralmente.

Mangue, raça e classe

Quando a banda Devotos e Janete saiu para beber tocavam a música Banditismo por uma questão de classe e foram reprimidos pela polícia militar ficou explícito que letras com aquele tipo de conteúdo seriam proibidas. Mas ficou ainda mais claro como que àquela sociedade pelo desde a década 90, e eu diria até muito antes disso, continua encarando o papel da polícia. A letra dessa música narra uma crítica a polícia de maneira jocosa e incisiva, denunciando seu racismo e seus papel de classe, Chico Science descreve algumas lendas urbanas como Galeguinho do Coque, Biu Olho Verde e o Perna Cabeluda que eram tidos à época como bandidos famosos e perigosos, tornam central o eixo de ser uma difícil e exaustiva tarefa para polícia prendê-los [3]. A narrativa segue expressando essa tensão entre bandidos ardilosos e uma polícia com uma característica bastante particular, que segundo ele esses mesmos bandidos sempre estariam um passo à frente das ações repressoras: “a polícia atrás deles e eles no rabo dela”: a de ser estúpido e patética sua tentativa de prender essas lendas urbanas de Recife. O que pode parecer uma reivindicação a uma melhor eficiência policial, Chico Science apresenta a real face das instituições repressoras do estado burguês que muito longe de ser essa falsa pretensão de “prender bandidos”, sua intenção fica expressa no verso: “em cada morro uma história diferente e a polícia mata gente inocente”. Para os mangueboys e manguegirls daquela época, bem como para juventude e pros trabalhadores de vários estados do país que a polícia militar é uma instituição que serve única e exclusiva ao assassinato do povo negro e pobre nas favelas e nas periferias.

As críticas a polícia e ao estado burguês não param por aí, a música Um passeio no mundo livre que relata um “dura policial” sofrida pelos percussionistas negros da banda Gilmar Bola 8 e Gira subindo o bairro de Santa Teresa, onde os policiais desacreditaram que eles eram músicos ainda que tivessem mostrado a carteira de trabalho por eles serem negros . A letra é um grito entalado de cada trabalhador e trabalhadora, de cada jovem que vê cotidianamente sua vida sendo interrompida pela brutalidade da polícia, Chico Science diz que só quer andar nas ruas de Peixinhos sem ser incomodado, “andar com o mundo livre sem ter sociedade”. Para ele uma sociedade justa seria aquela onde poderia andar com seus amigos ou que Gilmar Bola 8 e Gira não fossem parados pela polícia por serem negros, onde não houvesse a instituição policial.

O mais interessante disso tudo é que Chico Science não apenas critica a polícia e o estado burguês, mas confia na força que a juventude e os trabalhadores têm em reverter esse cenário de opressão e miséria. Na música Da lama ao Caos ele expressa isso de maneira bem forte e nítida quando afirma que por mais que o capitalismo produza misérias profundas como a fome, há a possibilidade de se organizar contra esse inimigo em comum, nas palavras dele, à medida que estamos com “ o bucho mais cheio”, isso nos liberta à reflexão de que “eu me organizando eu posso desorganizar”. Na música Cidadão do mundo, Chico Science é ainda mais enfático na necessidade e nas possibilidades reais das tomadas das decisões do povo que sofre com a miséria do capitalismo ao retratar o caso de um homem que foi matar a fome num canavial. Nesse momento ele foi surpreendido com golpes de foice por uma pessoa que protegia a propriedade, para ele um “capitão do mato”. Bravo com a situação o homem jurou o capitão do mato de morte e reuniu todos aquele que podiam para matá-lo: “Jurei, jurei, vou pegar aquele capitão! Vou juntar a minha Nação na terra do Maracatu, Dona Nzinga, Zumbi, Veludinho, e segura o baque do Mestre Salu.” O próximo passo dele foi trazer Nzinga rainha africana que foi trazida escravizada durante o tráfico de escravos, o líder palmarino Zumbi, Exú Veludo, um exú das conquistas na umbanda e o baque virado de Mestre Salustiano quem ensinou o maracatu rural a Chico Science.

“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar!”

É muito mais do que apenas “deixar tudo soando bem aos ouvidos”, Chico Science & Nação Zumbi é um chamado consciente para compreender o papel que cada jovem e trabalhador pode cumprir. Trata-se, como nessas letras apresentadas acima, não só de uma crítica ativa e potente ao racismo e ao capitalismo, mas a necessidade de colocá-las em um outro sentido, o do enfrentamento, o da luta de classes. Por isso, Chico Science é tão nocivo a um projeto bonapartista impulsionados desde elementos fascistizantes da sociedade, como é para a própria polícia militar, por um lado porque estabelece uma crítica intransigente a seu papel de classe e de assassina do povo negro e pobre e por outro é um chamado aberto a todos aqueles que sentem a necessidade de lutar pela transformação. Em realidade, a proibição das músicas de Chico Science no carnaval de Recife não estão desvinculadas a esse avanço bonapartista do regime que precisa reprimir qualquer dimensão social, inclusive na cultura, de elementos que possam questionar a polícia militar ou as milícias, ponto de apoio importante para o avanço bonapartista de Bolsonaro e Heleno.


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FOOTNOTES

[1África, cibernética e psicodelia: crítica social e questão racial na composição musical da banda Chico Science & Nação Zumbi, 2018

[2Quando dizemos planos ou ataques bonapartistas nos referimos ao conceito de bonapartismo de Leon Trotski, nesse sentido queremos nos referir aos regimes políticos que tem características autoritárias que são tomadas contra a democracia burguesa e suas instituições

[3Ibidem, p.120
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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