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Debate | O governo Lula-Alckmin está em disputa?

A velha-nova tese petista para justificar a conciliação de classe, e ataques como o arcabouço fiscal e o marco temporal, é porque ainda com uma extrema direita forte, de uma forma ou de outra, para garantir a governabilidade, o partido acaba refém dos setores mais conservadores do Congresso Nacional. Nesse sentido, o papel dos movimentos sociais e sindical seria de estabelecer uma pressão política ao regime e as instituições para que o governo adote uma agenda mais de esquerda. Ou seja, por trás disso, cria-se uma falsa ideia de que o governo está em disputa, e não necessariamente seja um instrumento da hegemonia burguesa.

Felipe GuarnieriDiretor do Sindicato dos Metroviarios de SP

terça-feira 4 de julho de 2023 | Edição do dia

Quem já não ouviu que não apoiar o PT é fazer o jogo da direita? Esse é o método fundamental que determina as principais ações petistas.

Nesse último mês, o portal Esquerda Diário e o Semanário Ideias de Esquerda ao relembrar em uma serie de artigos os 10 anos das manifestações de junho de 2013, desconstruiram a teoria do Ovo da Serpente. Nela, intelectuais como Marilena Chaui, defendiam a tese de que as jornadas serviram ao golpe institucional de 2016 e o aparecimento do bolsonarismo. O objetivo era justificar o papel traidor que o partido teve nas principais lutas da juventude e da classe trabalhadora nos últimos anos, em prol de uma missão institucional e servil à classe dominante.

A resultante foi que mesmo com a unidade burguesa (hegemonia) em crise, construiu-se um terreno fértil para aprovação das reformas neoliberais, que permitiu o avanço da extrema direita e do bonapartismo judiciário do STF.

Para retornar ao poder diante desse cenário o PT construiu um governo de Frente Ampla, junto a representantes orgânicos do mercado financeiro como Alckmin, absorvendo o programa neoliberal da extrema direita, com uma política de conciliação de classe como fórmula de frear o avanço do bolsonarismo e sua possível reeleição.

Diante disso, não se trata dizer que não há disputas entre as frações da burguesia em torno do projeto hegemônico. A recente inegibilidade de Bolsonaro aprovada no STF, acompanhada da impunidade dos generais como Braga Netto, demonstram uma série de cálculos políticos e eleitorais tendo em vista 2026. O que predomina por ora é um fortalecimento do governo diante as forças de extrema direita, entretanto tendo como base o poder moderador do judiciário e a recomposição da direita tradicional.

No sentido gramsciano de hegemonia, portanto, é possível perceber embates em torno da grande política, principalmente no cenário internacional e nas relações geopolíticas. E na pequena política, baseado nas disputas de Lula com Lira no Congresso, que refletem mais de fundo maneiras distintas de como aplicar o plano neoliberal. Ou seja, se por um lado a polarização política que cruzará as eleições nos Estado Unidos, a competição com a China, e o conflito militar que envolve a Guerra entre Rússia e Ucrânia, naturalmente permite que os impactos desses processos incidam diretamente no regime de dominação capitalista nacional. Por outro lado, o noticiário cotidiano é recheado de fricções entre as forças políticas do regime e as instituições.

Fato é que a burguesia embarcou no projeto petista. Garantiu-se, dessa forma, o alinhamento com os interesses imperialistas e do capital financeiro. A fração dominante da burguesia não necessariamente precisa estabelecer um governo genuíno para exercer hegemonia e o controle do regime capitalista. Contudo, seria no mínimo ingênuo pensar, que ela permitiria que esse governo atuasse contrário aos seus interesses de classe, ou que impor uma representação orgânica de liderança não estivesse entre seus objetivos. E o mais importante, não admite nenhum nível de disputa de classe sobre seus rumos.

E é justamente, nesse aspecto, que tal análise irá se debruçar. Apesar dos conflitos que envolvem o cenário de crise orgânica, do ponto de vista da relação entre burguesia e proletariado, não cabe qualquer hipótese que tal governo possa servir aos interesses dos setores mais explorados e oprimidos.

Conciliação de classes: a herança maldita do stalinismo

O PT não possui um projeto próprio de hegemonia. Com todas as suas contradições que as distingui dos partidos tradicionais da burguesia, em particular pela sua composição, ao fim e ao cabo trabalha para a reconstrução da hegemonia burguesa. O seu papel é uma espécie de intermediação (necessária em algum momentos) para a manutenção da ordem capitalista.

Para esse objetivo, seu programa e estratégia passam pela conciliação de classe. Entretanto, devemos reconhecer que os méritos dessa fórmula não são do partido.
O stalinismo brasileiro já deixou historicamente um legado de ensinamentos.

Para citar um exemplo, recordemos o apoio do PCB ao governo de JK na segunda metade da década de 50. Todo o fundamento era disputar uma ala da burguesia nacionalista, supostamente democrática, que tinha como objetivo o desenvolvimento do capitalismo nacional e a independência do país. Contra uma ala entreguista da burguesia brasileira, também representada no governo, que possuíam seus interesses vinculados ao imperialismo.

Gorender, um dos dirigentes do PCB no período, simbolizava os representantes dessas duas frações no governo. Uma a do General Lott, como principal dirigente do nacionalismo burguês nas forças armadas. E a outra, de Roberto Campos, superintendente do Banco Central, apelidado de "Bob Fields", tamanha era sua servidão aos Estados Unidos.

A declaração de março de 1958 do partido, concluía portanto:

O capitalismo de Estado vem sendo um elemento progressista e anti-imperialista na política econômica do governo, mas este ainda permite que empresas de capitalismo de Estado realizem uma política favorável ao imperialismo, como no caso dos financiamentos do BNDE ou da distribuição, pelos trustes, da energia produzida nas centrais elétricas estatais. (PCB, 1958, s/p)

Tal tese foi determinante em promover uma aliança do proletariado com uma fração "progressista" da burguesia nacional, para disputar o governo JK, e posteriormente, apoiar João Goulart e Brizola, diante as ameaças e tentativas de golpe militar. Os anos de 1961-1964 demonstraram o total fracasso dessa estratégia. A ala nacionalista se subordinou a entreguista, e a classe operária traída, foi derrotada pelo golpe, sem nenhuma resistência organizada do PCB.

Um observador atento poderia questionar tal comparação ao falar que naquela época a situação política era distinta. O ascenso operário daria mais condições de uma política independente. Verdade. Entretanto, a ausência de balanço pela esquerda levou que na situação pré- revolucionária entre 78-80, e o surgimento do PT, emergisse a direção lulista fundamental para desviar a revolução socialista e garantir a transição segura da ditadura para a democracia burguesa.

A tese do refém

Atualmente, os dirigentes petistas nos querem convencer que o combate à extrema-direita passa pelo apoio em algum nível do governo do PT. O próprio Psol, que durante a sua trajetória buscou ser uma alternativa ao projeto petista, desistiu desse propósito. Mas desse falaremos mais adiante.

Primeiro, vamos retomar uma das primeiras falas de Lula com os representantes das centrais sindicais e dos movimentos sociais, no início do seu mandato:

É preciso muita discussão, e é preciso que vocês aprendam a fazer muita pressão, muita pressão, senão a gente não ganha isso. Vocês têm que fazer pressão em cima do governo, pois se vocês não fizerem pressão a gente pensa que vocês estão gostando.

O recado foi dado. A fantasia foi criada. Dá a entender que se pressionar é possível desviar os rumos do governo das mãos da burguesia para os interesses da classe trabalhadora. Mesmo que, convenhamos, pressão e mobilização é o que menos a burocracia sindical vem fazendo no último período.

Posteriormente, uma das medidas estratégicas na economia do governo foi substituir o teto de gastos de Temer, pelo arcabouço fiscal de Haddad. Medida aplaudida e comemorada pela República da Faria Lima, por conta do compromisso estabelecido pelo Governo com a dívida pública e a especulação financeira dos banqueiros e fundos de investimento. Agências como a Standard & Poor’s replicaram o relatório de Haddad, Lira elogiou a articulação, e até ⅓ do PL de Bolsonaro foi a favor.

As centrais sindicais se resumiram a uma tímida nota crítica. Não chamaram nenhuma mobilização. E concentram sua energia na reforma sindical, e a atenção no julgamento do STF para o retorno do financiamento sindical.

O mesmo STF que foi antessala do golpe e das reformas, agora defendido por Gleisi Hoffmann como guardião da democracia, e linha de frente no combate ao fascismo:

Tem decidido dentro da legalidade, defendido o estado democrático de direito, tem feito o embate necessário. Ele tem sido um dos grandes responsáveis em fazer esse combate ao fascismo que estava pretendendo crescer no Brasil, se instalar aqui.

Como diria, a ironia da gíria popular: - Confia…só que não! A dirigente partidária também justifica a política de conciliação do PT. Segundo Gleisi, alianças com partidos que antes eram mais bolsonaristas como o União Brasil, são importante pois resultam numa maioria parlamentar que permite Lula governar. Contudo, governar pra quem? Sob quais interesses?

A resposta já é mais que evidente.

Se Lula precisa da agenda da direita para governar. E essa agenda possui ataques profundos, que a única forma de reverte-los seria com pressão e disputa das centrais sindicais como a CUT e CTB, que por sua vez orientadas pelo PT não mobilizam para não gerar instabilidade no país, qual é o resultado?

Não se disputa nada, os interesses da classe dominante são mantidos, com a provocação típica do presidente dizendo que os trabalhadores em silêncio estão gostando.

A conclusão real é que, do ponto de vista da classe operária, nada está em disputa nesse governo. O programa neoliberal do PT o impõe ficar condicionado aos desmandos de Lira. Na sua essência ao invés de refém, o PT possui autoria do "crime burguês". As mãos sujas de sangue dos assassinatos e trabalho escravo do insustentável agronegócio, recebem quantias bilionárias do governo, enquanto os indígenas seguem massacrados nos seus territórios e a Amazônia é devastada com aval do partido.

O plano Safra 2023/2024, articulado pelo Ministério da Agricultura, destinará 364,22 bilhões de reais aos grandes produtores. 26,8% a mais do que o anterior, um recorde no agronegócio brasileiro. O mesmo que esteve presente com seus representantes nos 15 acordos comerciais feitos por Lula, durante sua visita à China, e o mesmo que articula a reacionária CPI contra o MST no parlamento. Mas segundo o próprio Lula não precisa ter luta pela reforma agrária, somente competência na conciliação:

Não precisa mais invadir terra. Se quem faz o levantamento da terra improdutiva é o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Incra que comunique o governo quais são as propriedades improdutivas que existe em cada estado brasileiro e a partir daí nós vamos discutir a ocupação dessa terra. É simples. Não precisa ter barulho, não precisa ter guerra. O que precisa ter é competência e capacidade de articulação.

O Psol não disputa. O PSol faz parte do governo

A Federação estabelecida com partidos burgueses, como a Rede de Marina Silva, já pressupõe os objetivos do PSol nesse governo. Dentro do paradoxo, de não tem o que disputar algo que não está em disputa, a presença supostamente crítica do partido no atual governo nada mais serve do que ajudar Lula neutralizar qualquer alternativa a esquerda que possa surgir ao projeto frente-amplista.

Se na tese petista o que está em disputa é o caráter neoliberal que os rumos do governo irá adotar. Dentro do psolismo, Valério Arcary, mesmo admitindo que isso não está colocado, preconiza que o fundamento da disputa concerne no combate ao fascismo e a extrema-direita:

O que está em disputa é saber se o governo Lula será ou não um ponto de apoio para mobilizações que derrotem neofascistas. Impulsionar a Frente Única de Esquerda contra os bolsonaristas continua central.

Vejamos. O que seria essa Frente Única de Esquerda? A materialização dessa política na estratégia de Arcary seria a chapa unificada com a CUT e a CTB nas eleições sindicais da Apeoesp, respaldando todos os métodos da burocracia sindical, como os das falcatruas eleitorais. Lado a lado de lideranças como a deputada Bebel, que enterrou e derrotou inúmeras greves de professores durante seu reinado sindical.

Logicamente, Valério não cita essa política, diz que a luta dos professores e metroviários são elementos transitórios da situação. Mas lamenta não ter um ascenso. Parece então, que essa política do Resistência na Apeoesp, e no próprio Sindicato dos Metroviarios de SP onde dirigem majoritariamente e foram contrários a greve junto com a burocracia sindical, não possui nenhuma relação com a contenção petista. Isso pra não falar o mínimo esforço e tamanha vacilação dos parlamentares do PSol para barrar o Arcabouço.

Tanto no parlamento, quanto no terreno na luta de classes, com ajuda do PSol, o governo não tem sido um ponto de apoio para derrotar os neofascistas. Pelo contrário. Como afirmamos até aqui nas principais medidas estratégicas do governo atuam para recuperar a hegemonia burguesa. Assumem a agenda de privatizações. Todas as medidas neoliberais. Atendem os interesses mais reacionários da bancada ruralista, e pactuam com as principais direções do movimento sindical uma agenda pacificadora, recuperando os privilégios da burocracia.

As críticas ao PT devem seguir o caminho da independência de classe

Outro fator que a política do Psol contribuiu para o projeto frente amplista reside no fato que todas as críticas que já começam a surgir nos movimentos de juventude e operário ao governo, não são canalizada para uma política de independência de classe.

Os elementos transitórios da situação política estão sendo contidos por essa estratégia. As greves que surgem são isoladas politicamente, ou reduzidas conscientemente pelas direções, à ações econômicas e não de enfrentamento com o regime e a política da extrema direita.

Do ponto de vista do programa, a agenda de reformas neoliberais, como a trabalhista e da previdência são preservadas, e consequentemente com isso prevalece a realidade do trabalho precário, informal e terceirizado. Ampliando o fenômeno da uberização, e a retirada acelerada dos direitos trabalhistas.

Ataques históricos como esses, ou atuais como o arcabouço e o marco temporal, precisam ser respondidos com uma esquerda que defenda uma política de independência de classe. Que se referencie não nos acordos competentes dentro de um congresso reacionário, mas sim que se inspire nos fenômenos internacionais da luta de classes. Como recentemente vimos na França, e agora em Jujuy na Argentina. O caminho não possui atalhos, é a mobilização. Não para disputar, ou libertar o governo da sua condição de refém, mas sim trilhar um novo futuro para humanidade.

Imagem da matéria: Evaristo Sá




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