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Aquele dia "especial" que nos faz reforçar a ideia de como o capitalismo consegue transformar sentimentos em mercadoria e impor seus esteriótipos para controlar a vida das mulheres na sociedade.

Marília Rochadiretora de base do Sindicato dos Metroviários de SP e parte do grupo de mulheres Pão e Rosas

domingo 13 de maio de 2018 | Edição do dia

Dia das mães chegou. Mais uma data no calendário capitalista para nos lembrar da lógica de consumo e mercadoria, nos colocar na engrenagem do consumo material como forma de tradução de desejos e sentimentos. Promoções, propagandas, slogans e trilhas sonoras emocionantes vomitam o estereotipo do que é maternidade, do que simboliza a mãe na sociedade capitalista.

Assim como colocado por uma nova peça publicitária que afirma que ser mãe é “deixar de ser você mesma por um tempo, para ser muito mais feliz para sempre", fica cada vez mais clara a função social que cumprimos nessa lógica: a mãe que tudo suporta, tudo supera, heroína e capaz de mover mundos e fundos por suas crias, que são sua responsabilidade, que são motivo para viver, que são a representação do amor em sua forma mais sublime, afinal de contas, mãe é mãe, não é mesmo? Óbvio que se trata de mais um desdobramento machista e patriarcal para que a ordem das coisas permaneça como está.

Outro dia, mais um da rotina de dupla, tripla jornada, “a mãe proativa” sai do trabalho com 15 minutos para chegar na porta da escola para buscar a filha
caçula. Enquanto caminhava, respondia as mensagens no celular. Deu tempo. Passam no supermercado, então já carregava a mochila dela, da criança e as sacolas de mercado. A super mãe devia estar com uma cara péssima, pois ao chegar na farmácia para comprar remédios para pequena, que estava com tosse e garganta começando a inflamar, o atendente, com um olhar doce e misericordioso, suspirou: "Mãe é mãe". Por um minuto, o tempo ficou suspenso e a super mãe sentiu um calor, uma raiva tão profunda..E ficou triste também. Sentiu a face aquecer, estava vermelha com certeza, mas não de timidez. Pensou em responder pra ele que não era justo, que não estava certo, que essa situação de pai quinzenal é absurda, que estava cansada, que como ela tem tantas... Só conseguiu dizer: "Pois é.... mas não devia". Agradeceu, fez alguma piadinha qualquer para manter a relação de simpatia com o rapaz que sempre lhe atende tão bem na farmácia, pegou mais uma sacola com os remédios e foram para casa: a super mãe, filha, sacolas e mochilas.

Num outro canto da cidade ou do mundo, outra mãe, foi pedir a pensão de seus filhos ao pai deles, argumentando que o fato de que ser pai não é só colocar filhos no mundo e desfilar com eles para os amigos verem quinzenalmente, e sim, assumir a educação e também a responsabilidade material dos seus gastos. O pai fez uma pergunta a ela retrucando: "mas e você? faz o quê por eles então?" Pois é. Aos olhos dessa sociedade patriarcal, tudo aquilo que ela nos faz sacrificar, não é nada. Porque ter que deixar de ser você mesma, faz parte; anular seus sonhos, faz parte; vislumbrar a sua maternidade como seu único sonho possível, faz parte; viver somente para os filhos, faz parte; não poder ter a vida social que precisaria para te ajudar a aguentar as pressões e opressões da vida, faz parte; passar noites em claro de preocupação cuidando de um filho, faz parte; chorar escondida dos filhos quando não está conseguindo aguentar mais as pressões da rotina, faz parte....porque tudo “é lindo” quando se é mãe.

Num lugar não tão distante, uma outra mãe ganha um presente nada agradável de dia das mães, uma intimação da escola pra uma reunião urgente, seu filho adolescente estourou em faltas e está com algumas notas vermelhas. No texto do bilhete diz "é obrigação da família o acompanhamento da vida escolar dos filhos e no caso de não comparecimento poderá ser acionado o Conselho Tutelar", não precisa nem dizer o tamanho do embrulho no estômago ao ler aquelas palavras, afinal a "família" era quem? Ela, só ela, a mãe, que assumiu todos os cuidados sem contribuição alguma do pai desde o início. Assumiu esses cuidados tentando suprir a falta desse pai, mas também a falta do Estado, que agora se manifestava ali na forma daquele bilhete burocrático e em tom de ameaça como se pudesse julgar uma mãe, como se aquela mãe carregasse em suas limitações também a responsabilidade por todas as dificuldades de um sistema de educação precarizado, com anos e anos sem investimentos, sem merendas, sem salários e condições de trabalho para os professores, com escolas que muitas vezes ainda tem a forma física e pedagógica de funcionar de uma cadeia, com portões e muitas grades trancafiadas, sem abrir espaços de participação democráticos para ouvir os próprios alunos e famílias, e poder quem sabe criar possibilidades de uma educação viva e interessante para os jovens, pra que comecem a pensar e decidir os rumos das suas próprias vidas e sua formação. Pra que enfim, a vida possa ser diferente da miséria do possível que existe nesse sistema de exploração e alienação que é o capitalismo. O relógio avançou na madrugada, já era quase 1h e o despertador iria tocar às 5h pra irem juntos pra escola, a mãe e o filho, iam passar por mais essa, naquela noite não deu pra segurar e o choro antes de dormir foi de cansaço.

Esse estereótipo da maternidade já é tratado com tamanha naturalidade e nos atravessa a subjetividade também há décadas, fazendo com que nos questionemos sobre nossos corpos, nossos valores e condutas sociais. O que precisa cada vez mais fazer parte de nossos questionamentos é a causa real de tais imposições sociais. Por que a cada ano, sobretudo nesta época, a mídia vomita essa imagem da perfeição da maternidade?

Partindo da definição de que a cultura é o modo como os indivíduos expressam suas crenças, valores, sentimentos e saberes e simultaneamente, como se comportam e agem, em um determinado período histórico, podemos refletir sobre a relação dialética que se estabelece entre o que de fato esta cultura reflete de nós e o quanto o que é dela enraizado em nós sem que seja de fato a representação do que somos em nossa essência.

Além dessa expressão e representação das pessoas, a cultura se refere aos modos de vida de uma sociedade, sendo os costumes e comportamentos perpetuados através do tempo, passando de geração para geração de várias formas: intelectuais, artísticas e através dos laços familiares e das relações que estabelecemos uns com os outros. Nesse marco, o machismo, parte da concepção patriarcal que relega às mulheres normas de conduta e padrões estéticos pré estabelecidos, perpetua suas mazelas e oprime a mulher de várias formas, cotidianamente. Desta forma, é mais um dos artifícios que busca cumprir o papel de afirmação do capitalismo e a manutenção da ordem das coisas como são.

É necessário considerar que definir uma cultura como o modo de vida de qualquer sociedade não basta. Sobretudo porque não podemos de forma alguma ignorar o fator determinante de que vivemos sob a opressão e brutalidade do sistema capitalista, que tem como pressuposto a mercantilização e o lucro acima de qualquer coisa. Ou seja, nossas relações e impressões, bem como o modo como as compartilhamos e transmitimos, estão inevitavelmente mediados por
valores burgueses e capitalistas, o tempo todo. E nós, mulheres, nós que somos mães, estamos diariamente expostas a um bombardeio de informações e influências que certamente nos atingem, direta ou indiretamente.

E esta é só uma das esferas.

As injustiças contra as mulheres e todas as mazelas que o capitalismo nos relega tem total relação com a construção da imagem e padrões estéticos e morais, que perpetuam o patriarcado ainda hoje. Os estereótipos impregnados socialmente, embora hoje mais velados, ainda permanecem no imaginário e nas relações sociais.

Partindo dos desejos e sonhos das massas, a publicidade usa a subjetividade do público de forma cruel e agressiva. Através de diversos artifícios, provoca identificação com os mais variados produtos vendendo concretização, sucesso, autoestima, aceitação, inclusão. Através do consumo, conquistamos e nos realizamos. Acreditamos fazer parte, estabelecemos novas formas de comportamento de ser e estar. Sendo assim, nossa subjetividade é também manipulada e construída a partir do que nos é imposto como verdade nos meios de comunicação. E no caso de nós, mulheres, nos deparamos com todos os padrões e estereótipos que nos fazem questionar quem somos e o quanto estamos ou não inseridas em padrões que em nada refletem nossa realidade e nossa subjetividade. E com a maternidade é ainda pior, já que faz recair totalmente em nossas costas as responsabilidades morais e sociais de criar, educar e cuidar de nossos filhos, tendo como amarra para tudo isso o mais cruel dos sentimentos que já nos foi construído, a culpa materna.

Aprofundando ainda mais a questão: se a mediação para a concretização do sentimento de “inclusão” é o consumo, daí já se identifica um filtro excludente além da questão do gênero. Para as mulheres pobres, que estão cotidianamente lutando por sobrevivência, fazer parte desse mundo que a mídia prega como necessário, é impossível. Para quem precisa escolher entre pagar o aluguel ou comer, para quem precisa se submeter às condições mais precárias de trabalho para conseguir sustentar filhos, para quem se divide entre a jornada de trabalho exaustivo e mal remunerado e às “tarefas” domésticas, é inatingível esse padrão de “mulher bem sucedida”, bonita e aceita socialmente.

Estabelece-se assim mais uma relação de opressão, que tem duas camadas, a saber: gênero e classe. Apagar ou negar a questão classista é ignorar a realidade que o capitalismo nos impõe de que grande parte das mulheres, em empregos precários, não têm sequer o direito de viver a maternidade e ter condições materiais para cuidar e sustentar seus filhos minimamente. E ainda, nos impõe a regra do consumo para que possamos ser lindas e perfeitas. Nos impõe padrões morais que se reafirmam no consumo, nos produtos que nos serão dados com tanto amor pelos filhos e que normalmente, refletem o que “devemos ser”. E nos condiciona. Somos tratadas como mercadoria, somos vistas como mercadoria, temos mais ou menos valor quanto mais ou menos refletimos os padrões estéticos que nos oferecem a mídia, a religião, o machismo, enfim, o capitalismo como um todo. E a indústria cultural cumpre papel fundamental de propagar as ideias capitalistas para que se consolidem todos os mecanismos possíveis de opressão e controle. Para que sejamos sempre parte dessa engrenagem.

O direito à maternidade deveria começar desde o início da vida de cada mulher, partindo de um cuidado de sua saúde que contemple uma verdadeira educação sexual, com acesso gratuito à diferentes formas de contraceptivos e a discussão sobre tudo o que envolve a sexualidade e a maternidade, para poder decidir quando e se quer ser mãe. O aborto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública e ser legalizado, gratuito, seguro e oferecido pelo sistema de saúde pública, sendo isso fundamental para combater o alto índice de morte de mulheres pobres, que não tem esse direito assegurado e acabam recorrendo a clínicas clandestinas, verdadeiras carnificinas. No decorrer da gravidez o acompanhamento pré-natal também é imprescindível, mas é apenas o começo, a vida de uma mulher mãe se transforma completamente e para que a maternidade não represente essa carga de trabalho pesado e de culpa é dever mínimo dos pais/dos homens dividir todos os cuidados e responsabilidades emocionais e financeiras da criança. Creches, escolas de qualidade, saúde para as mães e crianças, restaurantes e lavanderias públicas e coletivas também deveriam ser o dever do Estado para que as mulheres não assumam sozinhas todo esse trabalho que é enorme, toma parte considerável do tempo diário e não é remunerado. Nos locais de trabalho deveria ser obrigatória a liberação sem desconto de salário para que mães e pais possam acompanhar a vida escolar e os cuidados com a saúde de seus filhos.

E para que todas as mulheres e meninas que se deparam com a brutalidade e as mazelas do machismo possam se libertar, todas as mulheres e homens devem se levantar contra o capitalismo. Livres finalmente de todo tipo de opressão veremos florescer sob novas bases o horizonte de igualdade para todos e todas, que hoje sofrem os incessantes ataques e desumanidades que esse sistema nos impõe, sejam de fato livres. Só poderemos ter o direito pleno à maternidade quando cada menina e cada mulher puder decidir quando, como e se quer ser mãe, sem essa culpa que nos jogam sobre os ombros. Tomada essa decisão, que não seja a mulher a assumir sozinha uma responsabilidade que também é do homem e sobretudo, do Estado.

Porque nós mulheres fazemos sim muitas coisas incríveis pra dar conta de ser mãe, enxergando e lidando cotidianamente com todos os problemas que existem, mas viver dessa forma não é justo nem com a gente e nem com nossos filhos! Uma maternidade ainda mais bonita poderia existir se tivéssemos garantidas verdadeiras condições pra uma boa relação entre mães, pais, filhos e a sociedade. Para isso, é fundamental a nossa participação como sujeito em diversos espaços de trabalho, de estudo e de tomada de decisões políticas, que precisam desse nosso olhar de mãe e mulher pra construir uma forma de viver melhor nesses nossos dias e sobretudo, para que nos fortaleçamos para luta por uma sociedade que supere o capitalismo e todo tipo de opressão.

Para que os filhos e filhas vislumbrem este horizonte e possam usufruir plenamente do mundo e realizar seus mais lindos sonhos, lutamos.

*Renata, Débora, Marília e Yuna são mães e militantes do grupo de mulheres Pão e Rosas

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