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SEMANÁRIO

O desejo sob suspeita

Andrea D’Atri

O desejo sob suspeita

Andrea D’Atri

Tudo que você sempre quis revolucionar no sexo e o neoliberalismo nunca se atreveu a reformar

A sexualidade está coagida ou libertada? É pacata ou libertina? Nas sociedades capitalistas atuais as restrições morais e religiosas convivem com a transnacionalização da indústria do sexo; o discurso reacionário dos “bons costumes”, fundados na família patriarcal, com a mercantilização dos corpos, dos prazeres e do desejo. Com novos direitos e a persistência de velhas hostilidades e injúrias, seguimos lutando pela libertação sexual que, nas margens estreitas das democracias capitalistas, não foi realizada.

I. Pecados pós-modernos

Direita clerical, conservadora e liberal?

Novembro de 2019. Uma legisladora de Madrid expressa o seu rechaço à lei educativa que introduz algumas questões inerentes ao tema da equidade de gênero. Propõe, em troca, incorporar a “costura” como disciplina obrigatória, ressaltando que “empodera muito costurar um botão”. Finaliza dizendo que “o feminismo é um câncer”. Não se trata de uma paródia, tampouco uma ironia. Essas (e outras) foram as palavras de Alicia Verónica Rubio Callle, professora de Educação Física que é legisladora pelo partido ultradireitista Vox e autora, em 2016, da publicação Cuando nos prohibieron ser mujeres… y os persiguieron por ser hombres: Para entender cómo nos afecta la ideología de género [Quando nos proibiram de ser mulheres… e os perseguiram por serem homens: Para entender como a ideologia de gênero nos afeta]. Alguns dias antes, uma bíblia tamanho extra-grande era venerada junto à bandeira boliviana, dentro do Palácio Quemado em La Paz, pelos artífices do golpe. Justo dois anos antes, a filósofa norteamericana Juduth Butler era agredida no aeroporto de São Paulo por aqueles que consideram que sua teoria queer atenta contra os valores da família e perverte as crianças.

Apesar da dessacralização da sexualidade nos últimos quarenta anos, mais recentemente algumas manifestações de uma guerra contra a “ideologia de gênero” vem atravessando o mundo. Em meados de 2016, o Papa Francisco afirmou que, em todos os continentes, “existem verdadeiras colonizações ideológicas. E uma destas – digo claramente com nome e sobrenome – é a ideologia de gênero!. Reafirmou: “Hoje para as crianças – as crianças! –, na escola se ensina isto: que cada um pode escolher seu sexo. E porque ensinam isto? Porque os livros são das pessoas e instituições que lhe dão dinheiro. São as colonizações ideológicas, sustentadas por países muito influentes. Isso é terrível” [1].
Todo questionamento ao binarismo da diferença sexual será rotulado como “ideologia de gênero”. E se existem dois sexos é porque o propósito (celestial ou natural, de acordo com quem o explique) é o da reprodução, o que indicaria que a maternidade é o destino obrigatório das mulheres. Os arautos incluem desde o Vaticano até o lobby evangélico. Porém não são somente as igrejas: desde Bolsonaro até Steve Bannon, passando por jovens influencers que se gabam de ser modernos liberais-libertários, tem se convertido em soldados desta guerra “contra a perversa doutrinação feminista e da diversidade sexual”.

Fundamentalismos, instituições religiosas, corporações laicas, direita política e outros setores reacionários desenvolvem uma gama de argumentos que tem apelo em vastos setores da sociedade. Embandeirando uma agenda conservadora, os arautos tentam restringir direitos já conquistados ou evitar que se estabeleçam novas liberdades. Suas campanhas semeiam o pânico sobre os ataques que as feministas, lésbicas, homossexuais e pessoas trans – inclusive em uma suposta cumplicidade com o Estado – estariam perpetrando contra a família, pervertendo a educação, a instituição matrimonial e a reprodução sexual. Algo ridículo quando, na América Latina, em pleno século XXI, praticamente não exista separação entre a Igreja e o Estado e que segue aumentando a penetração do fundamentalismo evangélico nos regimes políticos, como demonstra, no Brasil, o lobby parlamentar evangélico que propiciou o golpe institucional contra Dilma Roussef ou os recentes golpistas na Bolívia.

Quando as reacionárias são as manas

Notavelmente, dentro do feminismo também há quem se refira a uma “falsidade” de gêneros. E desde muito antes que os novos arautos [N.T.: da direita clerical]! “Todos os transexuais violam o corpo da mulher ao reduzir a verdadeira forma feminina a um mero artefato”, escreveu a ex-monja que se tornou feminista lésbica radical, Janice G. Raymond, em 1979, em sua lendária obra O Império transexual: a construção da bicha com peitos. As feministas radicais denominadas TERF (da sigla em inglês para Feminista Radical Trans-Excludente) defendem argumentos que pouco se diferenciam daqueles proferidos pelos fundamentalistas religiosos, os ativistas antiaborto ou a ultra-direita política contemporânea.

Ainda que sejam uma minoria, com o surgimento desta nova onda feminista influenciada pelos debates sobre as leis de identidade de gênero, cota laboral trans e uma maior visibilidade da comunidade transgênero em diferentes espaços – incluindo o movimento feminista –, as TERF reapareceram com discursos reacionários, discriminatórios e conspirativos. Por exemplo, que as mulheres trans não são mulheres, mas homens disfarçados; que é temeroso que possam entrar nos banheiros femininos para violentar as mulheres; que os espaços onde estejam mulheres e homens trans não são safe (seguros); que as mulheres trans são homens que pretendem “colonizar” o feminismo e os homens trans são “traidoras de seu sexo”. Para este setor do feminismo, estas relações de poder baseadas na supremacia masculina estruturam a família e a sexualidade, permitindo que os homens se beneficiem economicamente, sexualmente e psicologicamente da opressão patriarcal sobre as mulheres. Inexplicavelmente, suas posições transfóbicas são antagonizadas pela maioria do movimento feminista e, neste ponto, seu discurso termina confluindo com o discurso da nova direita que ainda defende velhos prejuízos patriarcais.

Uma questão de redistribuição e reconhecimento

Esta ideologia reacionária dos novos arautos ataca o discurso multicultural do neoliberalismo “progressista”. “Se aproveitam da indignação gerada pelas políticas neoliberais para jogar no mesmo saco todos aqueles valores progressistas instrumentalizados pela globalização capitalista. Assim vemos como o neoliberalismo progressista e o feminismo liberal abriram terreno para o surgimento da extrema-direita misógina e homofóbica” [2]. Isto quer dizer que esta cruzada pós-moderna não tem apenas o objetivo de enfrentar a aparente “libertinagem” na qual mergulharam os costumes ancestrais, mas também acabar com um suposto favoritismo econômico e jurídico com o qual os governos neoliberais estariam privilegiando as mulheres e a diversidade sexual. Este discurso de quem vê ameaçada sua antiga posição patriarcal hegemônica alenta a ideia de que os homens brancos, heterossexuais e nativos seriam as vítimas da conquista dos direitos e liberdades democráticas das cotas de mulheres, dos programas assistenciais para as famílias que são chefiadas por mulheres unicamente, dos direitos reprodutivos e o aborto legal, da cota laboral trans, da educação sexual integral, do matrimônio igualitário, da lei de identidade de gênero, etc.

Esta ideologia reacionária se sustenta no fato notório de que, enquanto o Estado de Bem-Estar surgido do pós-guerra combinou o aumento da mercantilização e do consumo com a proteção social (para evitar que se desenvolvesse a radicalização das massas, ou seja, para evitar que estas seguissem um rumo emancipatório), “o capitalismo financeirizado gerou uma aliança da mercantilização com a emancipação, contra a proteção [social]” [3]. Significa que o neoliberalismo contribuiu para uma divisão estanque entre movimentos sociais, que lutam pela emancipação, e a classe trabalhadora, que deve enfrentar as consequências dos planos capitalistas (precarização, flexibilização, transferências, desemprego, etc), ambos com suas respectivas burocracias, o que – segundo Nancy Fraser – termina criando as condições para que setores das classes assalariadas gravitem em torno do “populismo de direitas” [4]. Esta política profundamente regressiva do neoliberalismo, que promove um crescimento exponencial da desigualdade econômica, tem sido acompanhada de “uma política de reconhecimento aparentemente inclusiva” [5]. Ou dito de outro modo, enquanto o mundo assistia a desindustrialização, o aumento da miséria e a incorporação massiva de mulheres e de força de trabalho migrante em condições altamente precarizadas, o multiculturalismo, o respeito à diversidade e aos direitos das mulheres e comunidade LGBT se transformavam no discurso oficial do “politicamente correto”. Sem este “pacto” (de governabilidade) – nem sempre explícito para a maioria do ativismo com boas intenções, mas que inclui a cooptação e burocratização das direções dos movimentos mediante múltiplas operações de “ONGuização”, financiamento de projetos, subsídios, institucionalização, etc. –, a implementação das políticas econômicas teria ficado insustentável [6].

No entanto, desde o surgimento da crise capitalista de 2008, se desenvolve um extenso e profundo debate sobre como fazer frente às consequências do neoliberalismo. Enquanto a direita estimula o ressentimento contra os setores que conquistaram direitos (relativos), ou seja, contra as mulheres e a diversidade sexual, como também contra negros, indígenas, migrantes, etc., há outros que, ocupando o lugar do “mal menor” diante da direita, propõe ilusoriamente voltar ao Estado de Bem-Estar sem explicitar como seria possível fazê-lo praticamente sem afetar os lucros capitalistas. Novos invólucros, com vernizes progressistas e de esquerda, para seguir sustentando e remediando os regimes neoliberais em crise.

Mas o surgimento de uma nova geração feminista, em uma escala internacional sem precedentes, obriga a enxergar com olhos críticos tudo que antes era naturalizado: desde a violência machista, até a linguagem que estabelece que o universal e neutro tem gênero masculino; desde a gratuidade do trabalho doméstico, até a fluidez dos sexos, gêneros e do desejo.

II. Direitos e mercadorias
O contraproducente recurso do vitimismo

Injúrias e insatisfações, demandas de redistribuição, direitos de reconhecimento. Mas “sob quais formas se politiza o sentido de queixa em nossas sociedades? Quais possíveis retrocessos ou reviravoltas políticas se produzem sob o agasalho de uma identidade defensiva, basicamente forjada a partir da passividade da dor e da ofensa? [7]. Questões necessárias para compreender de que maneira os movimentos emancipatórios como o feminismo ou pela libertação sexual se toparam com o paradoxo do vitimismo e a institucionalização das liberdades, buscando que os direitos fossem dentro dos limites regulatórios impostos pelo Estado capitalista.

Nos marcos estreitos das democracias capitalistas, durante estes anos de reação (e “progressismo”) neoliberal, a feminilidade ficou essencialmente definida em função da vulnerabilidade sexual: o assédio, os estupros, os efeitos nocivos da pornografia... Sob este paradigma, parece que as mulheres deveriam ser “protegidas”, por seu caráter de vítimas a priori impotentes e passivas, diante de uma sexualidade masculina ativamente predatória, mas igualmente essencializada e naturalizada. As mulheres que tiveram que conquistar com um esforço árduo seu reconhecimento político, ao longo da história, agora estão restritas a se apresentar como objetos de queixa, da ofensa e da dor infringidos por outros. Como se o Estado capitalista não tivesse responsabilidade na perpetuação e legitimação da violência machista, das mortes por abortos clandestinos ou, inclusive, da reprodução opressiva de papéis de gênero estereotipados por meio de múltiplas instituições, se apresenta tutelando as mulheres, supostamente velando por sua integridade física e moral através do sistema punitivo, ocultando que foi a luta das mulheres organizadas a que desvendou a naturalização da violência patriarcal e exigiu reparação para as vítimas [8].
Ainda que a tipificação das violências sexuais como delitos, permita – em alguma medida – visibilizar aquilo que foi invisibilizado historicamente, privilegiar uma perspectiva jurídico-penal para nos referirmos a questões sociais estruturais (como a violência patriarcal) produz um efeito contrário. Ignorando o caráter estrutural desta violência contra as mulheres e a diversidade sexual, não apenas não leva a uma explicação confiável do fenômeno social – pelo fato de particularizar e isolar a vítima -, mas também leva a individualizar e particularizar o responsável, cuja conduta é apresentada como uma patologia, uma anomalia ou um “desajuste das normas” em vez de ser enfrentado como o efeito mais nocivo e extremo das mesmas.
No entanto, se a relativização dos delitos sexuais – que as novas direitas tentam embandeirar – atribui esses comportamentos aberrantes à dessacralização contemporânea da sexualidade; por outro lado, o excessivo zelo protecionista, no extremo oposto, é questionado por se converter em uma ameaça à espontaneidade e às liberdades individuais nas relações sexuais consentidas. Porque quanto mais ênfase se coloca no perigo que a sexualidade traz para as mulheres, mais se colabora para que esta se reduza ao mistério, o silêncio e ao tabu. Mas, como disse Carol Vance, “o feminismo deve aumentar o prazer e a alegria das mulheres, não apenas diminuir nossa desgraça” [9]. Por isso, para além de um feminismo punitivista [10], tem surgido também fortes críticas que advertem sobre o risco de legitimar uma maior capacidade disciplinar e punitiva do Estado, reivindicando o gozo feminino contra a associação entre sexualidade e risco que, perigosamente, poderia se aproximar do puritanismo. O acirrado debate entre as partidárias norte-americanas do #MeToo e o controverso manifesto de atrizes e intelectuais francesas dispostas a defender o direito dos homens de importunar” é uma mostra dessas tendências contrapostas [11].

É que, apesar de tudo, e talvez porque saibamos da proibição, a repressão e o castigo que pesaram por milênios sobre nossos corpos e nossos gozos, seguimos desejando seguir desejando.

Liberdades condicionais

O mesmo acontece com outras questões nas quais o Estado é quem estabelece as condições sob as quais se concede o exercício de direitos, como por exemplo, o matrimônio igualitário. Não são poucos os questionamentos teóricos, políticos e militantes de que seja o Estado quem regule as formas, os limites, as práticas e os sujeitos dos vínculos sexoafetivos. Mais ainda, que estes sejam concedidos somente sob o parâmetro conjugal e assimilados ao modelo heteronormativo do amor romântico e do casal com fins reprodutivos, o que conduz a uma forte homonormativização das relações sexoafetivas diversas, condenando moralmente os comportamentos que não se adequem a estes parâmetros e limitando seu potencial crítico e transformador. Sem mencionar quando a demanda por igualdade se traduz em direitos iguais para integrar as forças repressivas do Estado cujos membros, em numerosos países, são majoritariamente responsáveis pelos crimes de ódio contra gays e pessoas trans.

Diante desta estratégia, que em alguns países permitiu a milhões de pessoas obter os mesmos direitos dos quais até há pouco tempo apenas se beneficiavam os heterossexuais, se relegitima a construção de uma nova minoria marginalizada, invisibilizada ou criminalizada por não se encaixar nas normas. A conquista de um direito legítimo – que significa não apenas a equidade simbólica do reconhecimento, mas condições igualitárias bem concretas em relação ao cuidado do cônjuge doente, da moradia compartilhada, da responsabilidade sobre filhos e filhas, etc. –, ao mesmo tempo, obscurece as experiências de discriminação e perseguição que assolam uma imensa maioria. O efeito perigoso do qual falava Germán Cano quando disse que “as inquietações contemporâneas pela liberdade ficam submetidas pelas forças reguladoras do Estado, em forma de códigos penais e de proteção cada vez mais especificados”, e que isso conduz não apenas a aumentar “de maneira involuntária o poder do Estado às custas da liberdade política, sem a qual pode-se criar uma espécie de ‘jaula de plástico’ que reproduz e regula ainda mais os sujeitos prejudicados que deveria proteger” [12].

Por isso, apesar dos novos direitos conquistados, do crescimento do poder punitivo do Estado contra os crimes de ódio e discriminação, da “integração” que o Estado produz normativizando, nas ruas persiste o medo das mulheres, das lésbicas, os gays e as pessoas trans. É a marca de que “ali estaria a desigualdade insuperável entre quem sofre ou sabe que pode sofrer a violência por um lado e, por outro, quem a institui e a perpetua ou, inclusive, quem simplesmente não a percebe, não a imagina ou minimizam seu alcance por estarem do “lado bom” e, portanto, não arriscam nada” [13].

E no entanto, a luta dos movimentos sociais e as novas rebeliões que atravessam os continentes, engendram também novos vínculos por cima das diferenças, recriam relações comunitárias ao calor das mobilizações e barricadas, se propõe utopias poliamorosas e cuidados coletivos.

Prazeres à venda e orgasmos precarizados

Mas, mesmo com as contradições que restringem a conquista de direitos relativos aos gêneros e às sexualidades, se existe algo que possa definir a contraofensiva restauradora do capitalismo que vem se impondo desde os anos 1980 é a sua capacidade de rentabilizar cada necessidade ou desejo humano. Não só pelo desenvolvimento descomunal do que ficou conhecido como a indústria do sexo e pela liberalização das fronteiras que permite, junto com o fluxo de capitais, o tráfico ilegal de personas para a exploração laboral e sexual, mas também pela imensa transformação das relações sexoafetivas submetidas à logica do lucro, da rentabilidade e da eficiência. Como já apontamos em outro artigo, “tudo se vende, tudo se compra. Desde uma mulher, até produtos eróticos que as boas esposas adquirem em uma reunião de amigas; desde as fantasias relatadas em imagens cinematográficas, até os fármacos para tratar a disfunção erétil vendidos sob prescrição médica. O que havia moldado esse complexo fenômeno denominado “vida privada” se expõe na vitrine” [14]. E, contraditoriamente, quanto mais aumenta a socialização pelas novas e múltiplas redes sociais, a solidão parece a única propriedade privada disponível para a grande maioria. Likes, visualizações e DMs. Vivemos na época em que provavelmente os seres humanos contamos com a maior conectividade de toda a história e, no entanto, reina o individualismo e a solidão, as relações efêmeras, superficiais, utilitárias que nos deixam um forte gosto de vazio. Mas não só: essas condições também se convertem no ambiente propício para a re-idealização do par romântico tradicional, esse reduto supostamente desinteressado da vida privada ainda não conquistado pela voracidade mercantil, “como uma utópica salvaguarda contra a solidão a qual nos confina a trajetória de uma vida precária e completamente flexibilizada” [15].

E enquanto nossas almas naufragam no vertiginoso deserto da hiperconectividade, nossos corpos se enfrentam com a fadiga crônica. O controle de nossos corpos e efeitos da força de trabalho é vital para as classes dominantes; porém, nunca como na atualidade se viveu um profundo paradoxo de maiores liberdades sexuais, culto ao hedonismo e deserotização e medicalização da sexualidade. Paradoxalmente, enquanto a sexualidade se mede em rendimento (quantidade de orgasmos, de ereções, de pares sexuais, de encontros eróticos, etc.), a falta de desejo ameaça se tornar um hit dos consultórios. As revistas estão cheias de conselhos sobre como manter viva a chama da paixão no casamento ou porque ter três orgasmos por semana estimula uma pele saudável; mas a vida de milhões de seres humanos submetida a turnos rotativos, às jornadas extenuantes e aos acelerados ritmos de produção desnudam uma sexualidade precarizada.

A aceleração do ritmo dos processos econômicos acelerou também os ritmos da vida social. As técnicas de produção e processos de trabalho são tão voláteis, transitórios e acelerados como nosso escasso tempo livre, (não) destinado ao ócio, ao cultivo das relações sexuais e ao gozo sexual. Dores de cabeça, tensão muscular, cansaço generalizado, problemas de ereção, ejaculação precoce, dificuldades para lubrificação, diminuição ou ausência de libido se vão se tornando silenciosamente crônicos, impondo o constrangimento e a vergonha, a mentira sendo estimulada pela competição, e o ocultamento para evitar o estigma social. Sexo resignado, sexo tolerado, sexo frustrante ou frustrado e desencontros. Sobretudo, muitos desencontros.
A questão sexual é uma questão apenas do desejo heterodoxo que escapa aos ditames da heterossexualidade obrigatória? Não. Também é um assunto para milhões de seres humanos explorados incansavelmente pelo chicote do capital, cuja sexualidade está condenada a ser um terreno baldio carente de fantasias e prazeres. Por isso os movimentos anticapitalistas surgidos ao calor das barricadas de Stonewall gritavam pela libertação sexual (da humanidade) e não de direitos de inclusão (das identidades), antes de serem disciplinados pela coerção ameaçadora, mortífera, reacionária e neoliberal da “peste rosa” [16].

III. Para acabar (provisoriamente)

Uma vez que a sexualidade já foi dessacralizada pela ciência, os movimentos de liberação sexual e laicização crescente das sociedades, existe também a ultradireita política que faz alianças com obscurantistas eclesiásticos e hipsters libertários-liberais para recompor os reacionários discursos misóginos e homofóbicos que sustentam o binarismo de gênero, a heterossexualidade obrigatória e a predestinação reprodutiva da sexualidade. Quando os movimentos sociais conquistaram direitos inéditos que desmontaram preconceitos sexistas milenares e patriarcais, o enquadramento feito pelo Estado capitalista dessas cotas mínimas de reconhecimento as tem transformado em regulamentos e punições que voltam a instaurar a divisão entre o normal e o anormal, o legal e o proibido, estimulando a integração de uns e a marginalização de outros no mesmo gesto. Quando as liberdades democráticas se estendem a vastos setores como senso comum e se transformam em expectativas para milhões, o sistema capitalista as converte em mercadorias, transformando os desejantes em consumidores e os objetos de desejo em objetos de consumo, monetizando até o último recanto de nossa libido.

O capitalismo é incapaz de desenvolver qualquer de suas tendências até o fim, mas nas dobras de suas contradições se gesta, latente, a possibilidade de sua destruição. Como aponta Josefina Martínez, “na luta contra o capitalismo patriarcal e suas violências, a luta por disfrutar o tempo livre e a sexualidade é parte do combate por uma sociedade emancipada” [17]. Assim tem sido, historicamente, cada vez que as classes exploradas se levantaram contra a exploração imaginando uma sociedade radicalmente diferente. Por isso a revolução operária na Rússia, em 1917, gerou políticas audazes e os debates mais imaginativos sobre as relações sexoafetivas, os direitos das mulheres e a educação livre da infância. Por isso o processo de radicalização desencadeado pelos franceses em maio de 1968 propôs a imaginação ao poder e questionou profundamente as restrições que a sociedade capitalista impõe ao desejo e à sexualidade.

Como Drucker também aponta, atualmente, as sexualidades diversas colocam o desafio de desaprender as identidades sexuais, “compreender suas raízes e limitações históricas e materiais, e avançar para além delas rumo a formas mais amplas de viver e amar”. A crise capitalista que não encontra solução definitiva e, especialmente, o surgimento de um novo movimento internacional de mulheres com que novas gerações saem às ruas, as lutas da juventude em defesa do planeta contra a voracidade destrutiva da sede de lucro capitalista, as manifestações, rebeliões, greves e revoltas que hoje transcendem fronteiras, são o novo cenário onde o espírito combativo de Stonewall pode reviver. Sabemos que a libertação sexual não se alcança, automaticamente, tomando as ruas ou o poder; mas sem um horizonte revolucionário que se proponha transformar radicalmente este sistema de exploração e opressão em que vivemos, a sexualidade humana está destinada a ser uma mercadoria, uma proibição, um tabu, uma prerrogativa, uma norma, uma carência, uma dor. Mas, tudo isso fundamenta a inclusão em todas as nossas lutas emancipatórias atuais, do anseio de uma vida erótica “polimorfamente sensual, em vez de genitalmente obcecada” [18]; o questionamento e a crítica a todas as limitações que normatizam nossos vínculos sexoafetivos e nossos desejos.

Por isso subscrevemos as palavras inspiradas nos combates dos anos 1970: “Nossa luta particular é pela autodeterminação sexual, pela abolição dos papéis e estereótipos sexuais e pelo direito humano a usar o próprio corpo sem a interferência das instituições sociais e legais do Estado. Muitos de nós temos entendido que nossa luta não pode ter êxito sem uma mudança fundamental na sociedade que coloque a fonte do poder (os meios de produção) nas mãos das pessoas que, no presente, não tem nada. Aqueles que estão agora no poder se oporão a esta transformação com uma repressão violenta que, de fato, está em marcha. Nem todos nossos irmãos e irmãs na liberação gay compartilham esse ponto de vista, ou sentem que as soluções pessoais podem funcionar. Mas conforme cresça a nossa luta, se tornará evidente, diante da transformação das condições objetivas, que nossa libertação está inextricavelmente ligada à libertação de todos os oprimidos” [19]
Tradução: Thais Oyola


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FOOTNOTES

[1“6 advertências do Papa Francisco sobre a ideologia de gênero”, Agência Católica de Informações, 1º de dezembro de 2016.

[2Josefina L. Martínez y Cynthia Luz Burgueño, Patriarcado y Capitalismo. Feminismo, clase y diversidad, Madrid, Ed. Akal, 2019, p. 60.

[3Nancy Fraser y Rahel Jaeggi, Capitalismo. Una conversación desde la Teoría Crítica, Madrid, Ediciones Morata, 2018, p. 217.

[4Idem.

[5Ibidem, p. 220

[6Para uma análise mais detalhada, ver uma primeira leitura em Andrea D’Atri e Laura Lif, La emancipación delas mujeres em tiempos de crisis mundial, em: Ideas de Izquierda nº 1 e 2, 2013. - http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/la-emancipacion-de-las-mujeres-en-tiempos-de-crisis-mundial/

[7Germán Cano, La jaula de plástico. Wendy Brown y la cartografia política de la era Trumpstein”, prólogo a Wendy Brown, Estados del agravio. Poder y libertad en la modernidad tardía, Madrid, Lengua de Trapo, 2019.

[8Ver Andrea D’Atri, “Patriarcado, crimen y castigo”, Ideas de Izquierda, nº 31, julho de 2016 — http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/patriarcado-crimen-y-castigo/

[9Vance, Carole S.,“El placer y el peligro: hacia una política de la sexualidad”, en Carole S. Vance (organizadora), Placer y peligro. Explorando la sexualidad femenina, Madrid, Talasa Ediciones, 1989, p. 9.

[10Ver Andrea D’Atri “Ni feminismo “carcelario” ni escraches como estrategia: cómo combatir la violencia patriarcal”, La Izquierda Diario, 21 de dezembro de 2018. - http://www.laizquierdadiario.com/Ni-feminismo-carcelario-ni-escraches-como-estrategia-como-combatir-la-violencia-patriarcal

[11Ver Celeste Murillo, “Hollywood y Cannes: lejos del 99 % de las mujeres”, La Izquierda Diario, 11 janeiro 2018.

[12Germán Cano, op. cit.

[13Didier Eribon, La sociedad como veredicto. Clases, identidades, trayectorias, Buenos Aires, El cuenco de Plata, p. 51.

[14Andrea D’Atri, “Pecados & Capitales”, Ideas de Izquierda Nº 7, março 2014. http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/pecadoscapitales/

[15Idem

[16Ver Andrea D’Atri y Celeste Murillo, “¿Adiós a la revolución sexual?”, en Ideas de Izquierda Nº 11, julho 2014. -http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/adios-a-la-revolucion-sexual/]. Como assinala Peter Drucker, “a verdadeira liberdade para as pessoas LGBT implicaria necessariamente transformações radicais que afetariam muito mais gente para além da população LGTB. Especificamente, requereria uma reconfiguração da vida sexual que abandonasse o suposto fundamento do sexo na orientação sexual ou ‘sexualidade’ de cada indivíduo; uma transformação das estruturas básicas do lar baseado na abolição do gênero tal como conhecemos; uma superação da hierarquia global de nações e “raças”; e uma reabertura dos horizontes da esquerda para tornar possível uma vez mais o enfrentamento dos limites do capitalismo” [[Peter Drucker, “Gay Normality and Queer Transformation” en Transformations without Revolutions?: How Feminist and LGBTQI Movements Have Changed the World, Zapruder World, An International Journal for the History of Social Conflict, Vol. 2, 2015.

[17Josefina Martínez, “Hablemos de follar: entre el placer y el peligro, feminismo y liberación sexual”, Contrapunto, 28 julho 2019. - http://www.izquierdadiario.es/Hablemos-de-follar-entre-el-placer-y-el-peligro-feminismo-y-liberacion-sexual

[18Peter Drucker, op. cit.

[19Grupo de Liberación Gay de Chicago, “Documento de Trabajo para la Convención Constitucional Revolucionaria” (1970), en Rafael Mérida Jiménez (ed.), Manifiestos gays, lesbianos y queer. Testimonios de una lucha (1969-1994), Barcelona, Icaria, 2009.
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