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O Confronto

Fréderic Lordon

Imagem: Pavel Filonov. — « Formule de la révolution », 1920.

O Confronto

Fréderic Lordon

Publicamos a seguir a tradução do artigo escrito por Fréderic Lordon, filósofo, autor de Figures du communisme, publicado originalmente no jornal Le Monde.
Estaria a França numa situação pré-revolucionária? Para o autor deste artigo, a agitação popular que sacode as ruas após a aprovação forçada da reforma da Previdência demonstra isso. O poder de Emmanuel Macron depende apenas da frágil arma da repressão. Resta saber se esse movimento conseguirá superar isso.

Segunda-feira, 20 de março, as capas dos sites da imprensa francesas estão inteiramente dedicadas a promover uma moção de censura [1], a contar os deputados que vão votar, a estimar as possibilidades de cada cenário, a pensar em combinações futuras, a brincar de informar, uma beleza! Jornalismo político: um passaporte para a imobilidade política.

Enquanto isso, a política, com seu poder colossal, tomava conta do país. Um enxame de iniciativas espontâneas explodiu por todos lugares: greves sem aviso prévio, bloqueios de eixos rodoviários, motins que transbordaram ou simplesmente manifestações selvagens, assembleias gerais estudantis por toda parte, a energia da juventude na Place de la Concorde [2], nas ruas. Todos sentem que estão andando sobre brasas ardentes e suas pernas tremulam impacientes – mas não para as frivolidades que fascinam um pequeno grupo parisiense. Um pequeno grupo à imagem de seus líderes, jornalistas ligados a [Emmanuel] Macron e [Élisabeth] Borne, tão ignorantes entre si sobre o que realmente está acontecendo: a explosão.

É lindo o que acontece quando a ordem começa a descarrilhar. Coisas mínimas mas inéditas que quebram o cotidiano resignado e a atomização com que os poderes constituem o seu próprio poder. Aqui, os agricultores trazem cestas de vegetais para os ferroviários em greve; ali, o dono de um restaurante libanês distribui falafels para manifestantes piqueteiros; há estudantes que se juntam aos piquetes; em breve veremos indivíduos abrindo suas portas para esconder os manifestantes da polícia. O verdadeiro movimento começa. Já podemos dizer que a situação é pré-revolucionária. Que perspectivas o movimento terá? Pode transcender o "pré-" para se tornar totalmente revolucionário?

Governar por operações

Esse poder, cuja legitimidade desmoronou, não é nada além de um bloco de coerção. Como ele mesmo acabou com toda a mediação, o autocrata já está separado do povo por apenas uma linha de policiais. Qualquer coisa pode ser esperada desse indivíduo cuja razão já o abandonou há muito tempo.

Macron nunca registrou alteridade. Sua psique ignora o que é o outro, um outro sujeito. Ele só fala consigo mesmo e não existe nada fora. É por isso, sobretudo, que a sua palavra, ou seja, o próprio sentido das suas palavras, não se sente submetida a nenhuma das validações coletivas de interlocução. Em 3 de junho de 2022, pode sustentar sem pestanejar que vai "mudar de método" e que "os franceses estão cansados ​​das reformas que vêm de cima", em 29 de setembro que "o cidadão não é quem cujas decisões serão impostas”. Não é chocante que, diante de uma pessoa desse tipo, toda possibilidade de diálogo seja de fato abolida? Que nada do que ele diz pode mais ser levado a sério? É fácil entender que tal indivíduo, que nada sabe além de si mesmo, é perfeitamente incapaz de aceitar um erro, pois é preciso ouvir o outro, o não-eu, para perceber um erro. Por isso, todas as suas promessas de “reinvenção” (que tanto fascinaram os jornalistas) só podem ser pantomimas desenvolvidas no seu círculo fechado.

Diante de sua majestade, inteiramente entregue aos seus movimentos por instituições políticas autocráticas, e já realmente, despóticas, todos os níveis de violência são possíveis, tudo pode acontecer. Na verdade, tudo está acontecendo. As sequências dos bloqueios da rua Montorgueil no domingo, 19 de março, são perfeitamente esclarecedoras a esse respeito. A política macroniana está em vias de se dissolver inteiramente na intimidação pela polícia. Este poder já governa através de operações. Prisão policial. A qualquer um, de qualquer forma, pedestres alheios à manifestação, homens e mulheres assustados, atônitos com o que lhes está acontecendo. A mensagem é clara: não saia às ruas; fiquem em suas casas; ver televisão; obedecer.

Aqui, a transação inconsciente que os policiais fazem com seus recrutas atinge todo o seu potencial: o entendimento entre uma instituição dedicada à violência e indivíduos em busca de soluções legais para satisfazer seus próprios impulsos violentos é imediato. Essa compreensão encontra uma oportunidade única em uma situação pré-revolucionária, quando o poder, justamente, só se sustenta pela força e quando atribui importância excessiva –ao mesmo tempo que um cheque em branco– às operações da força, o último recurso. Como já observado no caso dos “coletes amarelos”, é o momento dos sádicos e brutos fardados.

A tese de que a "polícia está do nosso lado" está completamente ultrapassada, já não tem possibilidade de existir: a influência arrebatadora da autorização à violência ultrapassa em absoluto a proximidade social objetiva sobre a qual se assenta a ilusão de "união" - materialismo vulgar que só leva em conta os dados sociais da existência material e ignora todo o resto (que não pode ser inteiramente reduzido a eles). Essas são as maneiras pelas quais as estruturas produzem seus efeitos, pelas quais uma ordem atende às suas necessidades: se revelando através da psique dos funcionários adequados que foram escolhidos, desde Macron no topo até o último policial bruto na rua.

Contraforte

No entanto, algumas forças contrárias nos protegem de cair na tirania ou, mais simplesmente, de sermos esmagados pela polícia. Mencionemos a primeira, por obrigação, ou seja, sem acreditar muito nela. Talvez seja possível que alguns resquícios de moralidade, alguma ideia de limites e pontos de inflexão ainda estejam presentes no aparato do Estado – certamente não no Ministério do Interior, onde a infecção se espalhou completamente; onde, a semelhança de suas tropas, reina um ministro quase fascista -, mas em alguns gabinetes, nos "ambientes" em que, em determinado momento, se poderia formar a consciência de uma grande transgressão política, a preocupação de cometer o irreparável. Como se sabe, é melhor não apostar em hipóteses de surtos virtuosos, forma secular de milagre, ainda mais no estado de corrupção, tanto moral quanto financeira, da "República exemplar" - e no caso crítico da ordem burguesa que procura preservar.

Uma contra-força mais material reside em um possível motim policial. Não no calor de algumas ações localizadas – nesse tipo de circunstância, e a menos que táticas especiais sejam desenvolvidas, provavelmente não há esperança – mas em escala nacional. Porque se houver um grande quadro do Dr. Strangelove (Doutor Fantástico) em qualquer lugar do Ministério do Interior, ele deve estar brilhando como uma árvore de Natal - mas tão somente na cor vermelha. A polícia resistiu durante os “coletes amarelos”, e por pouco: não sem beirar a exaustão, porque acontecia em um número limitado de grandes cidades e apenas uma vez por semana. Mas agora o surto está em toda parte e todos os dias. O maravilhoso poder dos números – o fantasma de todos os poderes, o norte de todas as revoluções. Muitos já devem estar com a língua de fora dentro do capacete. No entanto, eles não terminaram de correr e percorrer quilômetros em vans. Deve-se lançar fogos de artifício neles, pois a árvore de Natal nada mais é do que uma enorme guirlanda e que o grande quadro exploda a moldura. O esgotamento da polícia: esse é um lugar nevrálgico para o movimento.

Por fim, há um recurso de outra ordem: o ódio à polícia –enquanto for uma força motriz–. Quando um poder solta suas feras, pode gerar dois efeitos radicalmente opostos: intimidação ou multiplicação da raiva. Todas as derrubadas ocorrem quando o primeiro estado se transforma no segundo. Há muitas razões para acreditar que já estamos lá. Porque falhamos se afirmamos que existe uma atmosfera de raiva. O ódio à polícia promete atingir uma profundidade e amplitude sem precedentes. Agora, com Macron ligado à sua polícia, o ódio à polícia ipso facto torna-se ódio a Macron. Neste caso, realmente, não sabemos como vai acabar; o melhor seria, sem dúvida, de helicóptero.

Superar o “pré”

Talvez seja claro para todos que, na força de querer reinar sozinho na glória, Macron empacou com tudo: empacou com a lei previdenciária, assim como empacou com a polícia, de modo que, por metonímia, tornou-se o síntese viva de todos os ódios particulares e, finalmente, em seu único objeto. Com um grau adicional de metonímia, tanto quanto por necessidade de estrutura, ela também se prendeu à "ordem capitalista". Portanto, atualmente essa é efetivamente a questão em pauta: acabar com “Macron e a ordem capitalista”. Em outras palavras, uma questão revolucionária.

A questão colocada pode ser revolucionária sem que a própria situação a seja. A história mostrou que havia duas opções possíveis aqui: esperar na praia que a onda se forme “por si só” ou ajudar ativamente a se tornar uma. Talvez com o risco de estar fora do lugar, mas com a eventual ajuda dos ritmos que, em certas conjunturas, podem ter acelerações relâmpagos. Em todos os casos, não se passa do atual "pré-revolucionário" ao simples "revolucionário" com a única negatividade de uma rejeição. É necessária também uma afirmação, um enorme “para”, que traga a unificação das forças de todos. Qual será? A questão é compreendida na condição de estar à altura do que está levantando o país, mesmo que ainda tenha uma forma indefinida; e, precisamente, fazê-la passar para uma forma definida.

Para deixar uma insurreição em estado de meio e não de fim, para que ela se torne realmente um processo revolucionário, é preciso articular uma saída. Ou seja, formular um desejo político positivo, no qual a multidão, sempre a multidão, possa se reconhecer. Mas não é preciso ir muito longe para identificá-lo, na verdade não sabemos de mais nada: cuidar da nossa vida, começando pela produção. O desejo político positivo, que o capitalismo e as instituições políticas burguesas ferem por princípio e por definição, é o da soberania.

A soberania dos produtores sobre a produção, é isso que pode inspirar, e muito além da mera classe trabalhadora, a quem interessa em primeiro lugar. Porque, cada vez mais numerosos, aqueles a quem chamamos de executivos também sofrem de embrutecimento gerencial, do domínio cego dos acionistas, da idiotice das decisões de produção de sua administração, senão de sua nocividade, e aspiram, mas com uma aspiração gigantesca, a terem o direito de se expressar sobre tudo o que lhes foi despojado.

Esse poder, cuja legitimidade desmoronou, não é mais que um bloco de coerção.

Não há legitimidade, falando em direito de soberania, a não ser para quem faz o trabalho. Quanto aos que, ignorando tudo, no entanto pretendem organizá-lo, consultores e planejadores, não passam de parasitas e devem ser expulsos. O argumento supremo e imparável pela soberania dos produtores foi dado por um sindicalista, Eric Lietchi, da CGT Energie Paris. Os balanços falam por si, observa na essência: sob a liderança da classe parasitária, o país foi destruído. Os hospitais estão em ruínas, a justiça está em ruínas, a educação está em ruínas, a pesquisa e as universidades estão em ruínas, os remédios estão em ruínas – os farmacêuticos são implorados para fabricar amoxicilina em suas dispensas.

Neste outono, Borne estava “graças a Deus” esperando que não ficasse muito frio no inverno para o sistema elétrico – em ruínas como o resto – mais ou menos aguentasse. Os professores são contratados para assumirem de emergência em meia hora. Funcionários são mobilizados para gerir grupos; em breve haverá trens? E as pessoas estão com fome. Não teríamos pensado ser possível escrever algo assim um dia, mas é um fato: um quarto dos franceses não come de acordo com sua vontade. Os jovens estão com fome. As filas para ajuda alimentar são infinitas. Entre isso e a polícia, o canal France 2 poderia fazer uma reportagem "descrevendo a situação", mas às cegas, sem indicar de que país se trata, e ao mesmo tempo seria organizado um programa de televisão solidário, [Juliette] Binoche cortaria um fusível e [André] Glucksmann prepararia uma coluna de opinião –para esses infelizes do fim do mundo.

Em poucas décadas, com um pico de proeza desde 2017, um modelo inteiro caiu de joelhos. Eles colocaram a economia de joelhos. Não foi a CGT, nem a Intersindical – foram somente: eles. Os competentes arruinaram o país. A desorganização é total. Como se sabe, a carreira profissional e a meritocracia foram historicamente promovidas pela burguesia como títulos substitutos de sangue e linhagem para suplantar a aristocracia. Paradoxo (que não é esse), no capitalismo tardio, a incompetência da burguesia tornou-se uma força em si –podemos dar-lhe esse nome com uma ligeira correção de Schumpeter–: a destruição destrutiva. Ou se não, seu nome sintético: McKinsey [3].

Imaginar o que nunca foi dito

O argumento de Lietchi ganha força total aqui. Porque a ideia da soberania dos produtores, comumente referida ao mundo dos sonhos, surge como consequência lógica de uma verificação irrefutável. Sua conclusão segue com a mesma vantagem: você tem que jogar fora aqueles imbecis nocivos e controlar toda a produção. Eles não conseguiram? Os trabalhadores saberão – eles já sabem. Pode-se considerar que este é o verdadeiro significado que deve ser dado às palavras “greve geral”: não as paralisações gerais do trabalho, mas o ato iniciador da reapropriação geral do instrumento – o início da soberania dos produtores.

É neste momento que o momento mostra sua força sem precedentes, embora, por enquanto, permaneça no imaginário. De fato: a fisionomia das empresas é inédita quando elas voltam para as mãos dos funcionários. É inaudita a reorganização dos serviços públicos quando estão sob a direção de quem sabe curar, ensinar, controlar a segurança dos caminhos-de-ferro e conduzir os comboios, passar cabos, distribuir o correio tendo tempo para falar com as pessoas, etc. É inaudita a abertura das universidades a todos os públicos, a emancipação da arte da burguesia artista e seus patrocinadores capitalistas. É inaudita a derrota da burguesia, a condenação histórica da sua mistura característica de arrogância e estupidez – não sabendo fazer nada, sempre se limitou a obrigar as pessoas a fazer, fazer….

Concordamos que a imaginação não leva a uma forma acabada – na verdade, é melhor assim. Pelo menos eles dão uma direção ao espírito. Trata-se de uma direção comum, derivada da questão política, de declinar em todas as questões: quem decide? Mais exatamente, derivado de um princípio: todos os interessados ​​têm o direito de decidir.

O princípio funciona como uma partição das águas. Para a burguesia, só a burguesia tem poder de decisão. Expressando a verdade da burguesia tardia, sua verdade fascista de se fazer necessário, é perfeitamente consciente do perigo: “Devemos temer o retorno do comunismo?” pergunta um repórter angustiado. Sem dúvida, sem querer, a questão está bem colocada. A partir do momento que o “comunismo” é entendido como o partido contrário, o partido dos direitos para todos, o partido da soberania geral, o partido da igualdade.

A maravilhosa emergência dos "coletes amarelos" teve o defeito de nunca ter se apegado à questão salarial. Já os porta-vozes oficiais dessa questão, uma engrenagem institucional instalada a fogo no sistema institucional, nunca deixaram de despolitizar a questão que lhes cabia, transformada em matéria de acordos coletivos. Conosco, assinantes da derrota, atrelados a esta conduta esclarecida.

Em dois meses tudo mudou. As formas de luta vão-se diversificando e completando-se: as manifestações de quinta-feira, massivas mas vãs, já não se podem separar das selvagens que fazem correr os polícias até de madrugada. Assim, a essência da luta de classes se insinua na forma dos “coletes amarelos”. Combinação inconcebível, esperada há tanto tempo. Nesta ocasião, destituinte.

Fréderic Lordon é filósofo, autor de Figures du communisme. La Fabrique: Paris.

Traduzido por Caio Silva Melo

Este artigo foi publicado pela primeira vez no jornal Le Monde


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FOOTNOTES

[1mecanismo que derrubaria Macron e convocaria novas eleições

[2Principal centro do governo federal

[3consultoria norte-americana contratada pelo governo francês para arquitetar a Reforma da Previdência
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