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Esta semana completa dois anos do massacre de Daca: mais de mil trabalhadoras têxteis mortas entre escombros e máquinas. Foi na véspera do 1º de maio de 2013. Trouxemos um artigo escrito durante aqueles dias de dor e rebelião em Bangladesh.

sábado 2 de maio de 2015 | 00:00

1. Massacre na véspera

Nesse 24 de abril, algumas operárias sentiam que as paredes rangiam. Apesar do barulho das overloques podiam escutar o ruído. Apesar da poeira, podiam ver as rachaduras. Mas não as deixaram sair. Uma delas escapou, talvez, duas, mas 4.000 seguiram costurando, colocando as brilhantes etiquetas, embolsando.

Até que o estrondo apaziguou o som das overloques e varreu a poeira das salas, silenciando o murmúrio das operárias para transformar tudo em silêncio e escombros. Depois, os gritos. Milhares de gritos. De dor, de socorro, de fúria. Os que conseguiram sair procuravam seus familiares, seus amigos.

Nesse 24 de abril, um dos edifícios que aloja dezenas de oficinas têxteis em Daca, a capital de Bangladesh, veio abaixo, arrastando máquinas e corpos.
Na véspera do 1º de Maio, já contaram 405 vítimas fatais. Mas sabem que quando terminarem de levantar os ruídos serão muito mais.

Neste 1º de Maio, como poucas vezes, o capitalismo voltará a mostrar que é capaz de oferecer as vidas operárias que forem necessárias, para se manter vivo.

2. Made in Bangladesh

Na “alfaiataria do Ocidente” manda a ditadura do capital. Não são só os capatazes bengaleses os que ditam as regras. As ordenam por telefone os gerentes das grandes marcas europeias e norte-americanas. Zara, Levi’s, Lee, Calvin Klein, Tommy Hilfiger, Walmart, Carrefour, Nike, Ralph Lauren, Primark.

A deslocalização da indústria têxtil e da moda cresceu nas últimas décadas. As conquistas que, apesar do neoliberalismo, tinha o movimento operário dos países centrais, levava os capitalistas a terceirizar a produção em fábricas dos países asiáticos e centro-americanos.

Bangladesh é o paraíso para os papas da moda. Manchester do século XXI. Três milhões e meio de trabalhadores passam seus dias em oficinas têxteis, 12, 24 horas por dia. As telas e confecções que produzem são exportadas por 5 bilhões de dólares, mas eles, os trabalhadores, recebem 32 dólares mensais. Pior: pela inflação, o salário real caiu cerca de 30% nos últimos três anos.

Em Daca, 53% das empresas não pagam as horas extras e 15% não pagam os salários em dia. Se vão terminar quebrados, extenuados, mortos de fome, de esforço, deteriorados, para que mantê-los?, perguntam alguns patrões.

Por isso, a tragédia da véspera do 1º de maio se soma a do dia 24 de novembro do ano passado, chegando a 900 mortos na indústria têxtil nos últimos 10 anos.

3. Polícia industrial

O governo tem só 18 fiscais para controlar as condições de trabalho das 100 mil fábricas e oficinas que funcionam ao redor de Daca, mas criou uma “polícia industrial” para ajudar aos empresários a disciplinar os que se rebelam contra tanta opressão.

Das 5 mil fábricas têxteis de Bangladesh, apenas 15 têm organização sindical. As grandes marcas falam de “responsabilidade social” nos canais da metrópole, enquanto perseguem quem quer se organizar nas ruas e fábricas de Daca. O ativista Aminul Islam foi preso e torturado durante 30 dias a pedido dos empresários provedores do Carrefour e WalMart. A poucos dias de ser liberado, Islam apareceu morto com sinais se tortura.

Mas não é necessário ser preso para estar enjaulado. A maioria dos que quiseram escapar do colapso encontraram as portas fechadas, cadeados e grades.

Só Bangladesh tem uma polícia industrial, ou na realidade todo o capitalismo necessita de seus cães de guarda, dentro e fora das empresas, para perpetuar a exploração?

4. As mãos de Farida

As mãos de Farida estão atadas. Costuram, descosturam, voltam a costurar.
As mãos de Farida estão cansadas. Passam as telas, passam as horas.
As mãos de Farida estão vazias. Não tem pão, não tem dinheiro.
As mãos de Farida estão quebradas. Doloridas, endurecidas, calejadas, fracas.
As mãos de Farida estão caídas. Depois da queda, sua mãe não pode levantá-las.
Quem as levanta, quem as faz punho, pedra, bandeira? Quem as desperta, as alivia, as enche de ódio? Quem as transforma em força demolidora, vingadora, até que as fábricas sejam nossas, de todos?

5. Costureiras

90% das vítima da indústria têxtil (e hoje de seus escombros) são mulheres.
Vindas das zonas rurais, trocam os facões pelas máquinas de costuras, mas seguem trabalhando de sol a sol. E mais: depois vem as “tarefas do lar”.

Segundo estudos médicos, 68% das mulheres bengalesas sofrem de fraqueza e fadiga constante. O segundo grande problema de saúde são as úlceras gástricas pelos baixos salários e os hábitos alimentícios irregulares (a quem importa se comeram hoje?). Seguidos pelas dores no peito, nas costas, na vista e nas articulações, tudo derivado das condições de trabalho. O assédio sexual está “regulamentado”: o impõe os capatazes e a polícia industrial.

As infecções urinárias correm como uma praga: se não as deixam sair quando está desmoronando o edifício, porque vão deixa-las interromper seu trabalho para ir ao banheiro?

A “alfaiataria do Ocidente” não aceitou colocar creches para os filhos das operárias. Nem salões com jogos, nem professoras que fazem mimos, nem biscoitos doces para comer esticados nos colchonetes. Se não suportam a fome, “podem” trabalhar nas mesmas fábricas que suas mães.

6. Mãos pequenas, salários pequenos

Shanta tem 9 anos. Reparte seu tempo entre a escola e a fábrica de válvulas. Entre a tabuada de 2 e o golpe das máquinas. Esses golpes lhe roubaram um pedaço de dedo e deformaram outro. Mas de outros companheiros, arrancaram parte piores.

Em Bangladesh, 13 milhões de meninos e meninas trabalham. Têxteis, serviço doméstico, siderúrgicas, fábricas de tijolos e minas. Muitas das crianças terminam nas “casas para solteiros” da Índia.

No edifício desabado em 20 de abril havia crianças. Recebem muito menos do que o menor salário que recebem os adultos. O último elo da cadeia da escravidão assalariada. 10 dólares por mês, sem máscaras, sem luvas, sem comida. Sem lápis, sem brinquedos, sem sorrisos. Até que a noite traga o som da sirene da fábrica.

Jornalista: E quando brinca?

Ruman (operário metalúrgico, 11 anos): Saio para brincar quando acaba a luz na fábrica. Nesse momento, saímos todos à rua para jogar bola.
Jornalista: Nos domingos não trabalha na fábrica, o que você faz?
Ruman: Durmo, durmo muito. Quase sempre estou cansado.*

7. Roupa suja

Zara, Levi’s, Lee, Calvin Klein, Tommy Hilfiger, Walmart, Carrefour, Nike, Ralph Lauren.

A jovem entra na Corte inglesa, a principal loja da Espanha. As luzes a deslumbram, as escadas a desliza por andares e andares, a leva entre promoções e manequins, a colocam em uma loja, logo em outra, a entregam aos vendedores que a giram e a cativam com tamanhos e cores, que escolhem a camisa branca e voltam a gira-la, que a dizem “foi feita para você”. A camisa feita-para-ela tem uma mancha de sangue na gola. Lhe trazem outra, mas está rasgada, como se uma mão tivesse agarrada a ela antes do abismo. Lhe trazem outra, encharcada, molhada, inteiramente suada, como se alguém tivesse costurado 12, 14, 16 horas vestida com ela. Outra mais, mas essa, com as mangas queimadas, escaldadas, é possível sentir o calor ao tocá-las. Desculpe senhorita, hoje não teve sorte, não temos camisas-feitas-para-você.

Era tarde, a jovem já havia guardado seu cartão de descontos e corria pelo corredor, indo para longe das luzes e manequins.
As costureiras de Bangladesh, como espíritos vingadores, andam pelas lojas da velha Europa.

Quando escutarem a última súplica dos capitalistas da moda e as marquises queimarem, não digam que não foram avisados.

8. Grito

(cartaz de convocatória da marcha frente o massacre de novembro de 2012, com 124 vítimas fatais)
“Me trancaram
Me queimaram viva
Não quero mais coletivas de imprensa
Porque a fábrica é uma prisão
Não aceito trabalhar presa”

9. Em nome das gerações massacradas e escravizadas

A ofensiva burguesa das últimas décadas espalhou o capitalismo pelas áreas mais vastas do planeta. Bilhões de camponeses hoje trabalham (e morrem) nas fábricas da China, Índia, Bangladesh. Também estendeu, a sua maneira, a classe que o sepultará. Ou merece outro final este sistema criminoso?
Quando ainda os socorristas escutavam murmúrios debaixo da montanha de telas e tijolos, a fúria se desatou. Os operários que escaparam e os familiares dos mortos foram às ruas, golpearam as portas das oficinas, enfrentaram a polícia.

Os gritos não foram só de dor. O ódio contra os capitalistas assassinos, de Daca e de Madrid, atordoou a zona industrial. Como aquelas operárias que, depois do massacre da fábrica Cotton de Nova York, recorreram às ruas ano após ano para reivindicar a seus mártires, e para exigir direitos, jornada de trabalho de 8 horas, licença maternidade e de gravidez, para se organizarem em um sindicato.

As mulheres bengalesas foram parte da “primavera árabe”, quando enfrentando ao governo e aos clérigos islamitas, marcharam em abril de 2011 para exigir mais direitos. São as mesmas que, para escapar da polícia industrial e enfrentar a discriminação de algumas autoridades sindicais, se organizam nos bairros operários de Ashulia.

Hoje escondem as lágrimas com um grito de fúria. “Tanto o ódio como a vontade de sacrifício se alimentam da imagem dos antecessores escravizados”. (Walter Benjamin)

10. Bangladesh está perto

Quem disse que Bangladesh é outra época, outro mundo?

Quem disse que não são as mesmas empresas, os mesmos modos de produção, o mesmo capital que aqui e ali transforma o trabalhador em um “burro de carga?” Que o explora, o descarta, o mata.

Quem disse que aqui se impôs a velha bandeira do 1º de Maio e os mártires de Chicago, das 8 horas de trabalho, 8 horas de descanso e as 8 de ócio? E que não há oficinas têxteis que exploram nativos e sobretudo imigrantes, inclusive, até a morte?

E que não há grandes marcas que terceirizam, e governos que garantam essa exploração?
Apesar das conquistas da nossa classe, Bangladesh não pode estar longe para nós.

Como disse George Engel, um dos mártires de Chicago e do 1º de Maio frente ao tribunal que o condenava: “Compreendi que para o operário não há diferença entre Nova York, Filadélfia ou Chicago, assim como não há entre Alemanha e esta república tão ponderada... Então, entrei na Associação Internacional de Trabalhadores. Os membros desta associação estão convencidos de que só por força poderão emancipar os trabalhadores, de acordo com o que a História ensina. Nela podemos aprender que só pela força foi abolida a escravidão...”

Só um partido mundial da revolução terminará com os massacres capitalistas e sua roupa suja.

* no jornal Vanguardia

Tradução: Tassia Arcenio




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