Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Notas sobre as relações orgânicas entre Igreja e Estado à luz das eleições 2022

João De Regina

Notas sobre as relações orgânicas entre Igreja e Estado à luz das eleições 2022

João De Regina

Mais uma vez a questão do voto religioso, especialmente dos evangélicos, foi tema central nessas eleições. De partida, Michelle Bolsonaro realizava orações semanais no gabinete da presidência e, na chapa Lula-Alckmin, um operativo desde a coordenação da campanha era montado para chegar no conservadorismo religioso, inclusive renunciando às pautas de esquerda criminalizadas pelas igrejas. No segundo turno, o tom de “guerra santa” escalou ainda tendo como centralidade temas como maçonaria e satanismo.

Como de costume, Bolsonaro e sua base de extrema direita aproveitaram o cenário eleitoral para intensificar a campanha anti-aborto. Dedicou mais de 5 minutos de sua propaganda eleitoral para acusar Lula de defensor da legalização do aborto e com imagens sensacionalistas. Lula, por sua vez, não só afirmou ser pessoalmente contra o aborto como sua campanha quis imputar a Bolsonaro uma “tolerância” com a prática em um episódio de sua vida pessoal. [1]

O segundo turno também foi marcado pelas táticas de “guerrilha digital” que receberam na esquerda o nome de “janonismo cultural”, em referência ao destaque da atuação do deputado mineiro André Janones (Avante) na utilização “agressiva” de táticas simétricas à utilizada pelo ativismo digital de direita. Alguns apoiadores da campanha de Lula declararam que tal cenário é uma consequência da impossibilidade de jogar no “fairplay” com uma campanha reacionária e mentirosa em escala industrial como a de Bolsonaro. Não suficiente, Lula concentrou os esforços na reta final da campanha para competir com Bolsonaro pelo lema “Deus e a Família”. Cercou-se de padres, monges, freiras e pastores para se aproximar da imagem de religioso.

Parte dessa ofensiva foi uma nova “Carta Pública ao Povo Evangélico” onde diz mais uma vez ser contra o aborto, defende a parceria com a igrejas, tanto a nível social, como no governo, e clama pelo respeito à família como um valor central. A conclusão da carta conclama que os brasileiros vivem uma dupla condição complementar: ser cristão e cidadão.

Se a aliança com Alckmin, além do apoio e compromisso de setores empresariais importantes, era um giro importante à direita no campo político e econômico, o segundo turno mostrou disposição a ceder cada vez mais nos temas dos valores, costumes e pautas sociais.

Neste artigo, argumentamos que tais elementos estão longe de serem somente táticas da disputa eleitoral. A centralidade do conservadorismo religioso nessa eleição é uma expressão da degeneração do regime democrático burguês brasileiro e da influência, crescente e enraizada, de instituições religiosas/empresariais no Estado brasileiro. Se, por um lado, a extrema direita possui uma relação orgânica com o que há de mais reacionário no conservadorismo religioso, a coligação Lula-Alckmin, ao se propor a administrar o regime pós-golpe de 2016, não pode enfrentar de fato essa força social da burguesia brasileira, mas somente se adaptar, fazer concessões e compromissos.

Igreja e Estado: relações históricas da hegemonia burguesa no Brasil

A separação do Estado e da Igreja é uma promessa da revolução burguesa, da própria revolução francesa, que a burguesia não pode cumprir até o final em lugar nenhum do mundo. No caso brasileiro, vemos que a laicidade possui uma característica histórica bastante formal e significativamente frágil.

Até 1889, o Brasil tinha o catolicismo como religião oficial. A primeira constituição republicana separou formalmente Igreja e Estado e declarou a liberdade religiosa e de culto no país, além de extinguir o chamado regime do padroado [2]. No entanto, uma quantidade de privilégios foi preservada. Não houve qualquer confisco dos bens e terras da Igreja, e em algumas regiões do território nacional o clero ainda detinha a prerrogativa.

Sem o monopólio político-religioso, a Igreja Católica passou a enfrentar a emergência de campos que questionavam sua autoridade ainda hegemônica. Foi nas primeiras décadas do século XX que começaram a surgir as primeiras igrejas evangélicas no Brasil como a Congregação Cristã (1910) e A Assembleia de Deus (1911). Não suficiente, era um contexto internacional de ascensão do movimento sindical de inspiração anarquista e comunista que faziam forte campanha contra os privilégios e o conservadorismo do clero. A postura reativa da Igreja foi apresentar um discurso político maniqueísta que identificava a si própria como guardiã dos bons costumes e se declarava inimiga não só do radicalismo do novo movimento operário, mas de qualquer concepção moderada de organização social moderna. Se, por um lado, o medo da revolução fez com que a Igreja hierarquizasse a esquerda como principal inimiga, no campo religioso o dualismo também atuou. Tanto as religiões de matrizes africanas quanto as novas denominações evangélicas eram consideradas seitas a serem combatidas.

Não por acaso, setores importantes da hierarquia católica foram decisivos em fomentar o conservadorismo e levar uma base importante de católicos para o apoio ao movimento integralista. Simultaneamente, houve uma campanha de difamação e combate contra o movimento comunista. No entanto, a Igreja incentiva que seus fiéis se mantivessem sindicalizados para marcar posições contra a esquerda. Em 1927, o Partido Comunista Brasileiro é colocado na ilegalidade, a Igreja Católica busca ocupar um espaço social no movimento operário através da Juventude Operária Católica e de outros comitês operários.

De forma paralela ao combate exercido contra a esquerda e o comunismo no movimento operário, a Igreja passou a se organizar para influir diretamente no Estado nos anos 30, através da Liga Eleitoral Católica (LEC). Tal organização, criada no Rio de Janeiro pelo cardeal Dom Sebastião Leme, foi decisiva na eleição de 1933 e na Assembleia Nacional Constituinte no mesmo ano. As já chamadas pautas dos valores já eram carro chefe da campanha católica que, além do anticomunismo, lutava contra avanços a favor da legislação do divórcio [3], a defesa do ensino religioso nas escolas e a luta contra o que chamavam de “laicismo sectário”. A LEC não participou de nenhum partido político, mas indicava os candidatos apoiados por ala importante dos cardeais católicos e cumpria o papel de fiscalizar os políticos eleitos com seu apoio. Os candidatos apoiados pelo clero católico foram, em grande parte, vencedores na Constituinte. Não por acaso, a Constituição de 1934 incorporou a defesa da demanda das igrejas como a proibição do divórcio e o subsídio público para obras ligadas à igreja.

Em 1937, globalmente, a Igreja Católica vai ainda mais à direita. O Papa Pio XI decreta a Carta Encíclica Divínis Redemptores condenando o comunismo e propondo posturas de engajamento anticomunistas para a comunidade católica. Foi nesse mesmo ano que a Igreja apoiou a ditadura de Getúlio Vargas. Dom Leme, o fundador da LEC passou a ser muito próximo de Getúlio Vargas e aproveitou a oportunidade para aprofundar as relações orgânicas entre a Igreja e o Estado.

Entre 1946 e 1964, na mais nova tentativa republicana burguesa no país, a separação entre Igreja e Estado foi mais uma vez declarada do ponto de vista formal, assim como a liberdade religiosa. No entanto, a Igreja Católica continuava preservada do ponto de vista do poder público. Na Constituição de 1946, foi mantida a oferta do ensino religioso obrigatório, com a ressalva de que ele poderia ser ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno. Foi o período também em que foi criada, em 1947, por Goffredo Telles, a lei que exigia a imagem de um Crucifixo na Câmara dos Deputados. Em sua opinião, a política deveria seguir a moral cristã. De forma geral, foi um período de crescente criminalização e marginalização de outras denominações religiosas, especialmente as de matrizes africanas. Uma das vias de combate a essas religiões eram as acusações de curandeirismo e de prática ilegal da medicina.

É conhecido que a cúpula da Igreja Católica apoiou a ditadura militar e o golpe de 1964. Especialmente, no dia 27 de maio de 1964, quando a CNBB em mensagem pública saúda os militares por conter o avanço do comunismo no Brasil. É claro que um setor do alto clero católico busca repetir a experiência com a ditadura varguista, agora com o regime militar. No entanto, as relações católicas a favor do regime militar, por muitas vezes, são ofuscadas devido à posição crítica que ela adquiriu nos 70 e 80, e, principalmente, devido à militância ativa de setores eclesiais de base e da atuação contra a ditadura de alguns bispos. Não suficiente, a produção de uma memória oficial de uma Igreja militante a favor dos direitos humanos e contra a ditadura foi parte chave da transição pactuada da ditadura para a democracia. Uma transição que, apesar da mobilização massiva de trabalhadores e setores populares e do protagonismo de greves operárias, manteve-se condicionada a garantir que as massas não desenvolvessem uma derrubada revolucionária da ditadura.

No entanto, além do apoio declarado da CNBB ao golpe, setores da Igreja mantiveram relações com o regime militar, mesmo nos giros críticos da Igreja ao regime. É o caso de Dom Eugenio de Araújo Sales, anticomunista convicto e declarado, que mantinha relações com o regime militar, enquanto uma parcela de ativistas e militantes católicos eram perseguidos e torturados. O momento mais crítico que mostrou as relações obscuras do regime militar com a Igreja Católica foi a formação da Comissão Bipartite, um fórum secreto que reunia lideranças católicas e militares da cúpula do regime, chamados de Grupo da Situação. A existência deste fórum secreto que se reuniu 24 vezes entre 1970 e 1974 é uma evidência contrária à tese de que houve uma ruptura total entre a Igreja Católica e o regime militar mesmo durante os anos mais críticos da repressão.

No que tange às igrejas evangélicas, ainda que neste período seu crescimento estivesse começando e sua força social fosse bem menor do que o catolicismo, podemos dizer que é no período da ditadura militar que há uma aproximação entre as Igrejas e o Estado. Até então as manifestações políticas de lideranças evangélicas estavam inseridas no contexto de questionar a hegemonia católica e promover uma ideia de religião oprimida pelo Estado que refletia uma supremacia católica. No entanto, na altura do golpe de 1964, de forma geral as igrejas evangélicas se posicionaram de maneira semelhante à Igreja Católica. Porém, com algumas exceções [4], não ocorreu entre as cúpulas evangélicas uma guinada crítica, nem mesmo após o endurecimento do regime em 1968. Nesse contexto, o regime passou a se posicionar mais favorável às igrejas evangélicas na medida que no interior da Igreja Católica surgiam setores críticos da ditadura. Inclusive, atualmente, é conhecida a atuação cúmplice de pastores e lideranças evangélicas como informantes do DOPs e que perseguiam críticos do regime em sua própria base religiosa.

A presença da cúpula evangélica na política como característica do regime de 1988

Podemos afirmar que a participação decisiva de lideranças evangélicas na política brasileira é uma característica do regime político que se abriu após a constituição de 1988. Na Assembleia Constituinte de 1986, ficou conhecida a chamada Bancada Evangélica, que contava com 33 deputados, sendo 18 pentecostais. As pautas desses deputados já estavam ligadas a temas conservadores, em aliança com a direita e com uma atuação fisiológica. Entre os argumentos agenciados pelas lideranças políticas evangélicas durante a transição, estava novamente a ideia de que a comunidade crente poderia ser perseguida. Seja porque a Igreja Católica estaria tramando o retorno do catolicismo como religião oficial ou candidatos ligados à esquerda quisessem restringir a liberdade religiosa.

O crescimento da influência das bancadas parlamentares evangélicas se tornou um elemento importante de todo o regime político de 1988, assim como, atualmente, é uma expressão da degradação dele próprio. A crescente presença das cúpulas evangélicas acontece paralelamente ao crescimento demográfico impactante dos evangélicos [5], pelo qual, em nome do engajamento eleitoral da base religiosa, pastores de variadas denominações angariam espaços no regime político negociando com os partidos tradicionais e com os governos executivos.

A relação das igrejas evangélicas com o Estado não deixa de possuir um forte caráter fisiológico. Apesar dos slogans sobre moralização da política pregada pelos líderes, por diversas vezes membros da bancada evangélica estiveram envolvidos com escândalos de corrupção. Um conhecido é o Bispo Rodrigues da Igreja Universal, que foi acusado de envolvimento direto no mensalão em 2005. Outro escândalo foi a chamada CPI das Sanguessugas, em que, entre os 90 deputados acusados, 23 eram evangélicos.

Não suficiente, ainda que heterogênea, podemos afirmar que a bancada evangélica ao longo dos mandatos presidenciais chegou a apresentar algum tipo de apoio a todos presidentes eleitos. O primeiro engajamento em campanhas para executivo foi em 1989 a favor de Fernando Collor de Melo. A Igreja Universal do Reino de Deus apresentou seu apoio ainda no primeiro turno. Em 1994, o pentecostalismo se apresentou forte em uma campanha anti-Lula, com destaque para o aparecimento contundente da rede midiática da Universal. Além do apoio a Fernando Henrrique Cardoso, a bancada conseguiu eleger dois senadores, um pelo Rio de Janeiro e outro por Goiás. Foi na eleição de 1998 que a bancada chegou a eleger 53 deputados, sendo que quase metade eram da Universal. O sucesso eleitoral da Igreja Universal fez com que ela se tornasse uma das principais protagonistas dos meios políticos evangélicos.

Já em 2002, após o primeiro turno, quando existia uma candidatura evangélica ao executivo, Anthony Garotinho, tanto o candidato vitorioso quanto Serra buscaram apoio das Igrejas para atingir o eleitorado evangélico. A Igreja Universal, seguindo o apoio do próprio Garotinho, passou a apoiar, pela primeira vez, Lula. É nessa eleição que a Bancada Evangélica se transforma em Frente Parlamentar Evangélica. A partir daí, os governos do PT, Lula e Dilma, fizeram inúmeros acenos às lideranças prometendo parcerias entre o Executivo e Legislativo em troca de votos e apoio parlamentar. A área de maior concentração dessas parcerias foi na área de saúde colocando igrejas na administração de centros de recuperação de usuários de drogas, um tipo de parceria já utilizada pela Igreja Católica.

A Frente Parlamentar Evangélica, nas eleições de 2014, ampliou sua bancada para 74 deputados. É esse o contexto de ascensão de Eduardo Cunha da Assembleia de Deus, um dos protagonistas do golpe de 2016 como presidente da Câmara. Aproveitando o espaço conquistado, a Bancada da Bíblia aumentou o tom de suas campanhas conservadoras contra a legalização do aborto e pela patologização dos LGBT`s. Entre os indicativos de que os acenos do PT aos evangélicos fortaleceu suas atuações conservadoras, podemos elencar a nomeação do Pastor Marco Feliciano para Comissão de Direitos Humanos e Minorias em 2013, o que foi utilizado para propor o escandaloso Estatuto do Nascituro e a cruzada em defesa da “Cura Gay”.

Igreja-Partido-Empresa em meio a neoliberalismo brasileiro

Como abordamos, a participação política evangélica é um fenômeno da redemocratização, do regime político democrático-burguês formado com a Constituição de 1988. Não suficiente, ele é um fenômeno muito centralizado no pentecostalismo, além de uma via privilegiada de atuação da direita conservadora. Porém, um erro comum para analisar a presença evangélica conservadora na política é o de identificar simplesmente como um reflexo da transição demográfica religiosa brasileira. [6]

Um primeiro erro dessa compreensão é perder de vista que o catolicismo brasileiro ainda goza de uma enormidade de privilégios e uma aura de religião oficial com uma quantidade grande de representantes, como o próprio Geraldo Alckmin conhecido por suas relações com a Opus Dei. Além disso, o Brasil segue sendo um país estratégico para a Igreja Católica de conjunto, sendo que o crescimento pentecostal lhe preocupa. Outro sinal de que a Igreja Católica continuou exercendo um papel importante na política brasileira, mesmo com o crescimento da influência evangélica, é o acordo firmado entre o governo Lula e o Vaticano em 2008, que acordava com a Igreja Católica uma série de privilégios, que envolvem benefícios fiscais, regime trabalhista de religiosos, casamento, imunidades, patrimônio cultural, ensino religioso nas escolas públicas, entre outros.

As vindas de Papas para o Brasil é outro elemento importante que mostra ainda o peso do Brasil para o Vaticano como a vinda do reacionário Papa Bento XVI. Depois, em meio ao projeto lulista de preparação, especialmente do Rio de Janeiro, para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas, ao mesmo tempo em que flertava com as Igrejas Evangélicas, que foram parte do bloco de poder lulista no seu auge, antes de aderirem ao projeto golpista, o PT teve iniciativa para programar uma nova vinda do Papa no país, com mais peso, no Rio, em julho de 2013, com a Jornada Mundial da Juventude. Com a renúncia do papa Bento XVI em fevereiro de 2013, o evento foi conduzido pelo seu sucessor, Papa Francisco. A JMJ Rio 2013 foi considerada como "o maior evento da história do Rio de Janeiro" por Eduardo Paes, segundo os organizadores foram mais de 3 milhões de pessoas, mais um passo no sentido do Rio ser uma “capital de grandes eventos”, como preparatório da Copa e Olimpíadas.

Não por acaso, as relações construídas entre evangélicos e Estado, por vezes, mimetizou táticas e mecanismos já presentes na relação entre poder público e Igreja Católica. Muitos historiadores, por exemplo, identificam uma atuação semelhante da bancada evangélica com a LEC na primeira metade do século XX. Não suficiente, o discurso político agenciado pelo conservadorismo religioso católico e evangélico muitas vezes se assemelha, seja na “demonização” de forças políticas adversárias, especialmente da esquerda, seja na utilização de sua base religiosa como moeda de troca com outras agremiações do sistema político.

O segundo erro de colocar um sinal de igual entre crescimento de fiéis evangélicos e a escalada de influência política das lideranças da Igreja é relativizar a importância política e empresarial desse segmento. Quando falamos das estratégias políticas utilizadas por esse setor, estamos falando sobre uma ala significativa da burguesia que atua através de triangulações entre religião, negócios e partidos políticos. A Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, talvez seja o exemplo mais ilustrativo.
Fundada no Rio de Janeiro em 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus, com expoentes famosos como Edir Macedo e Marcelo Crivella, não só cresceu exponencialmente em número de fiéis como iniciou uma verdadeira conglomeração empresarial com redes midiáticas [7], indústrias musicais e uma expansão internacional acentuada. Nos anos 90, acompanhando o avanço neoliberal no Brasil, a Igreja Universal deu um salto no ramo comunicacional. O fortalecimento de uma mídia evangélica possui para a cúpula da Universal tanto um sentido de massificar a religião, como galgar espaço político. No Brasil, sabemos da importância, para a preservação de oligarquias políticas e econômicas, a posse de monopólios comunicacionais. Edir Macedo não podia abrir mão dessa estratégia religiosa, política e econômica. Ao comprar, através, de intermediários, a Rede Record, ele aprofundou suas relações políticas, apoiando a candidatura de Fernando Collor, e, também, protegeu o perfil que queria impor ao império midiático que acabava de adquirir.

Ligados à Igreja estão, além dos ramos de televisões e rádios, fábricas de bancos, clínicas de reabilitação e associações beneficentes. Esse sistema de empresas se beneficia de uma hierarquia piramidal altamente centralizada na figura de Edir Macedo, que conta com um patrimônio estimado em 2 bilhões de reais. Assim, quando falamos da bancada da bíblia não estamos falando apenas de um grupo religioso somente, mas de uma parte da decadente burguesia brasileira, atuando para acumular capital, gerindo conglomerados empresariais bilionários.

Em 2003, a Igreja Universal começou a criação de seu próprio braço político, então chamado de Partido Municipalista Renovador (PMR), atual Republicanos. Evidentemente, a estrutura da igreja foi utilizada para a legalização do partido contando com campanhas de assinaturas na porta dos templos. Atualmente, o Republicanos é uma parte importante para compreender o peso institucional que vem ganhando a extrema-direita. Esse partido reúne não só membros diretamente escolhidos pelos bispos da igreja, como acolhe outras lideranças conservadoras, como foi o caso de candidatos bolsonaristas quando fracassou a tentativa de Bolsonaro criar seu próprio partido.

Se, por um lado, a cúpula da Universal tem um papel decisivo na política partidária dos Republicanos, por outro, sua capilaridade social pela via religiosa permite que outros setores conservadores usem o partido. Assim, os Republicanos se tornam um partido importante para pressionar o Estado a tornar ainda mais íntima a relação com as igrejas, ao mesmo tempo que é uma peça-chave para expansão conservadora como um todo. Não por acaso o partido impulsiona expoentes como o vice-presidente Mourão e o candidato Tarcísio de Freitas.

Importante destacar que a política da Igreja Universal também soube se beneficiar dos anos do PT no executivo. Além dos acordos eleitorais e parlamentares, o PT precisou por inúmeras vezes evidenciar compromissos com esse setor, seja através de cartas como da Dilma com a “Carta ao Povo de Deus”, seja na presença dela própria na fundação do Templo Salomão ao lado de Edir Macedo, ou nos inúmeros privilégios tributários concedidos pelo executivo e pelo legislativo, com apoio de candidatos do PT e do PCdoB.

O Rio de Janeiro pode ser compreendido como um lugar exemplar do fortalecimento das cúpulas religiosas através dos acordos e compromissos estabelecidos com os governos petistas. Em 2007, quando é lançado o Tropa de Elite e existia todo um preparatório da política das UPPs (que começam em 2008), em meio a inúmeros massacres do BOPE, o lulismo fazia uma frente única com a Globo e toda a burguesia nacional para responder o problema da pobreza e suas conseqüências no Rio de Janeiro através da militarização. A aliança com o PMDB era parte central de grande bloco unido a favor repressão e policiamento das periferias e favelas cariocas. Era parte da “higienização social” para o Brasil ganhar sede da Copa do Mundo em outubro de 2007 e das Olimpiadas em outubro de 2009, um “plano ambicioso” do Rio como “vitrine” do “Brasil potência”. De forma mais geral, essa conjuntura nacional dos anos do Governo Lula foi central para o fortalecimento das Igrejas, em especial as evangélicas que cresceram 61% entre 2000 e 2010. Foi o período de fortalecimento de figuras reacionárias que depois fariam parte do golpismo como Eduardo Cunha e Marcello Crivella, na altura senador.

Em suma, o caráter triangular dos negócios pentecostais não pode ser compreendido por fora do avanço do neoliberalismo no país. Nesse sentido, não é algo menor a potência social da chamada “teologia da prosperidade” e seu papel ideológico que legitima o trabalho informal e justifica o aumento do policiamento e saídas repressivas para a segurança pública. O avanço do pentecostalismo acompanha os elementos constitutivos do neoliberalismo: a precarização e o trabalho informal, a ode ao empreendedorismo e o aumento das forças repressivas do Estado. Em contexto de avanço da pauperização e do crescimentos de situações de austeridade, os aparatos religiosos também se beneficiam do fato de que a política pública burguesa ataca e precariza os mecanismos de previdência, saneamento e segurança alimentar. As igrejas, católicas e evangélicas, apresentam-se como eficientes assistentes capazes de administrar a fome melhor do que o próprio Estado. Por sua vez, políticos aceitam tal prerrogativa em nome do apoio eleitoral. Uma configuração que beneficia tanto o crescimento de discursos em prol do “Estado mínimo" como de legitimidade do aparato religioso.

Bolsonarismo e a escalada de lideranças evangélicas no executivo e judiciário

Na eleição de 2018, o chamado voto evangélico foi considerado decisivo para eleição de Bolsonaro e o peso das religiões pentecostais, uma peça-chave na articulação conservadora no país. De fato, as cúpulas evangélicas foram parte central da reação conservadora ao forte movimento de mulheres que emergiu no Brasil e na América Latina.

Com a formação do governo Bolsonaro e a exploração da chamada pauta dos costumes, lideranças evangélicas como Damares Alves passaram a ser protagonistas das iniciativas mais reacionárias do governo. Ao mesmo tempo, Bolsonaro, que simbolicamente explora a ideia de uma maioria judaico-cristã para atacar a liberdade religiosa e o laicismo, se mostrou absolutamente aberto e funcional para os interesses de lideranças evangélicas de ocupar espaços além do legislativo, mas também no executivo e no judiciário.

É nesse contexto que surgiu a ideia de juízes terrivelmente evangélicos e a nomeação de André Mendonça com o intuito de ser uma voz dentro do STF dos interesses reacionários contra o aborto, contra a descriminalização das drogas, em prol do racismo e da homofobia.

Nesse sentido, o governo Bolsonaro significou um salto no avanço reacionário das relações entre igrejas e Estado. O que aconteceu aprofundando a relação fisiológica da frente parlamentar evangélica, que conta hoje com 194 membros num universo de 513 deputados, sendo uma força ainda maior para atacar os direitos das mulheres e da população LGBTQI+. Um dos casos de destaque de corrupção no governo Bolsonaro envolveu parte importante dessas lideranças, como se viu com o ex-ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, que desviava dinheiro público da Educação para favorecer com propinas as prefeituras indicadas por pastores aliados.

Expressões de uma crise orgânica

Uma possibilidade teórica para compreender a importância das cúpulas religiosas no contexto atual da democracia burguesa é perceber o fenômeno a partir da conceituação de Gramsci. Tanto através dos conceitos de Estado integral, quanto de crise orgânica.

O revolucionário italiano formulou a ideia do Estado integral, para evidenciar que a burguesia busca organizar o consenso também na sociedade civil, não existindo uma divisão absoluta entre Estado e sociedade civil. Elas são um todo integrado onde existem aparelhos privados de hegemonia, que são decisivos, como as igrejas, escolas e imprensa. No caso das cúpulas religiosas e das igrejas, tal caráter é evidente, uma vez que elas não se contentam em exercer apenas um poder ideológico, que já é expressivo, como querem estar de forma orgânica na estrutura estatal e fazer com que a política seja definida e influenciada pela religião. No caso do atual conservadorismo de matriz evangélica, por exemplo, não se trata apenas de reivindicar para si um direito, uma moral religiosa privada, mas impor sua influência de forma mais contundente para o conjunto da sociedade.

Não suficiente, ao pensar o cenário político atual percebemos que por atuarem no limiar entre sociedade política e sociedade as igrejas adquirem uma agência privilegiada de política burguesa em um contexto de crise orgânica. Para Gramsci, algumas conjunturas são atravessadas por um contexto de crise social e política que afasta as bases sociais de sua representação política tradicional. No contexto brasileiro, o questionamento insistente e popular, explorado de forma hipócrita pela extrema direita, da “política tradicional” é um sintoma desse tipo de crise. Ainda de acordo com o revolucionário italiano, a crise orgânica se expressa de forma concentrada em uma degradação do regime parlamentar, democrático burguês, e acaba abrindo espaço para forças relativamente estranhas à “política tradicional”. É quando fortalece as burocracias civis e policiais, setores do próprio exército e outras mediações com tendências bonapartistas.

O golpe que tirou Dilma, a própria eleição de Bolsonaro e o atual enraizamento institucional da extrema-direita são fenômenos relacionados à crise orgânica brasileira que se abriu após o fim do projeto gradualista do PT. Na nossa opinião, o fortalecimento das cúpulas evangélicas na política é um fenômeno dessa crise que deve ser compreendido como mais um elemento do cenário político atual marcado por expressões bonapartistas e de instabilidade política. O bolsonarismo por sua vez é um tipo de resposta crítica e instável a essa situação de crise orgânica. De acordo com Danilo Paris é um tipo de configuração que se apresenta como “avesso da hegemonia”:

"o bolsonarismo é uma forma política e social particular. A força disruptiva que o fez chegar ao poder não pode ser passivizada pelos recursos tradicionais da democracia burguesa. Envolve estratos sociais e frações de classe que precisam do enfrentamento. São a expressão mais radicalizada do programa burguês da super exploração, contornada por valores reacionários que fornece a argamassa que dá coesão aos setores heterogêneos de sua base social. Latifundiário, neopentecostal, miliciano, varejista, garimpeiro e militar se unificam em torno da agressividade de uma liderança que promete nunca abandonar seu rebanho, enfrentado-se contra tudo e contra todos, e por isso, não pode buscar o consentimento entre os demais. De certo modo, Bolsonaro foi o governo do “avesso da hegemonia”, incapaz de consolidar composições de classe e consentimentos em setores mais ampliados da sociedade civil e do Estado, sob a pena de perder a base social que lhe conferiu sustentação e o alçou ao cargo de presidente."

O papel das cúpulas das igrejas nesse contexto possui um caráter ímpar. Elas são ao mesmo tempo uma forma de continuidade com estruturas mais prolongadas do regime como o fisiologismo, que, mesmo envolvidas em inúmeros casos de corrupção, apresenta-se como um agente político capaz de mobilizar à direita uma parcela da sociedade civil. Ao mesmo tempo, elas operam um discurso forte de legitimação ideológica, através da “teologia da prosperidade” e do próprio conservadorismo moral, de características centrais do capitalismo atual como o trabalho precário, informal e as expressões patriarcais da sociedade brasileira. Em outras palavras, a força religiosa-política-empresarial representada pelos parlamentares evangélicos são recursos para que setores do próprio regime em decomposição busquem se “renovar” pela direita.

Hegemonia e luta de classes

Se durante os anos do PT no Executivo já ficou claro a disposição em conceder e se beneficiar das alianças com as cúpulas religiosas, na conjuntura que se expressou após o 1° turno, grande parte da frente ampla da chapa Lula-Alckmin intensificou o argumento de que para derrotar o Bolsonaro era fundamental ainda mais acenos e compromissos. Em relação ao eleitorado evangélico, esse argumento simplifica a relação entre o crescimento de fiéis com a presença de suas cúpulas na política, defendendo que para disputar a base religiosa, seria necessário abraçar a presença das cúpulas no sistema político.

Tal perspectiva se intensificou quando Lula sinalizou verdadeiros compromissos com as pautas conservadoras se dizendo contra a legalização do aborto e das drogas. A intensificação da chamada guerrilha digital que inflou preconceitos e a importância das “pautas dos costumes” foi um exemplo representativo disso. Tal horizonte político está longe de propiciar a luta pela hegemonia dos setores oprimidos, pelo contrário, ela fortalece não só as pautas e os métodos do conservadorismo, como de seus próprios expoentes. Em suma, a própria nova carta aos evangélicos é menos uma forma de se chegar na base religiosa, e mais um aceno de compromisso com os barões da fé e a própria bancada da bíblia.

O marxismo revolucionário não defende nenhuma religião, pois possui uma concepção materialista do mundo dissociada de compreensões místicas, espirituais ou sobrenatural. No entanto, consideramos como um direito democrático elementar o direito à liberdade de crença. Ademais, consideramos que as cúpulas religiosas forjam alianças burguesas em nome da manutenção de um regime social de exploração que explora a fé popular ao mesmo tempo que ataca os direitos religiosos de minorias sociais. Nesse sentido, atuar contra os privilégios das cúpulas religiosas, denunciar sua hipocrisia e sede de lucro não significa atacar a liberdade de crença e os sentimentos religiosos. Pelo contrário, uma perspectiva popular que busca unificar os setores oprimidos através da luta de classes é o caminho para se construir um projeto que evidencie para a população que as cúpulas de suas religiões são mais leais e tementes ao sistema de exploração e de precariedade da vida da população, do que à própria fé.

Como abordamos, o crescimento do pentecostalismo entre as massas é um fenômeno, por uma lado, do desenvolvimento do capitalismo neoliberal no Brasil, e, por outro, da própria crise orgânica que atravessa o país. Assim, é um erro naturalizar um suposto conservadorismo popular das massas brasileiras. A crise social e econômica, assim como a exploração intensa do trabalho, podem ser fatores que impulsionam as massas para a luta, o que, sim, poderia enfraquecer a influência das cúpulas religiosas. Porém, para esse processo se desenvolver, é importante a construção de um projeto hegemônico que se baseia na luta de classes.

Ao abandonar uma perspectiva de luta de classes, a esquerda institucional se vê refém do próprio terreno da burguesia tendo que renunciar a pautas democráticas elementares como a luta pela separação entre Igrejas e Estado. Dessa forma, fortalece a possibilidade de agentes políticos reacionários continuem testando, ainda que de forma instável e precária, novas experiências à direita para tentar reconstruir uma hegemonia burguesa.

A contradição é que, em momentos de crise capitalista e da hegemonia burguesa, sem uma alternativa de classe que possa dar respostas às demandas populares, instrumentos conservadores como as igrejas tendem a se fortalecer. Se no campo coerção se fortalecem os instrumentos policiais e militares, no campo da sociedade civil, fortalece a agência das igrejas incentivando o preconceito na população. Na medida em que a esquerda atua para administrar o próprio regime político, em alianças e concessões com as representações políticas empresarial-religiosas conservadoras, nenhuma alternativa para unificar a população em torno de demandas comuns é criada.

Tal situação se complementa na medida em que a esquerda institucional atua nos sindicatos e movimentos populares de forma corporativista e em uma lógica unicamente de “pressão”. Sem que os organismos da classe trabalhadora tomem para si as demandas dos setores mais oprimidos e precarizados, o caminho estará livre para que os preconceitos religiosos e a influência conservadora se fortaleça entre as massas. Nesse sentido, a disputa por uma hegemonia junto ao setores oprimido passa pela organização real das lutas populares e da construção de alianças entre os setores estratégicos da classe operária e a população pobre, focando naquilo que mais unifica as massas: a deterioração das condições de vida e a exploração capitalista.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1Diana Assunção neste artigo demonstra como a disputa eleitoral em sua totalidade se voltou contra o direito ao aborto.

[2O regime de padroado funcionava através de um acordo que oficializa o catolicismo como religião de Estado, ao mesmo tempo que dava ao rei a prerrogativa de escolher e nomear bispos e outros representantes.

[3O divórcio só vai ser legalizado de fato no Brasil em 1977.

[4É o caso do presbiteriano Jaime Wright.

[5Estima-se que o número de evangélicos no país elevou-se em 61,45% de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010, atingindo 22,2%. Desde então, esse número aumentou ainda mais. A maioria dos brasileiros ainda se declara católica, com 50%, os evangélicos são os que mais crescem, já contam com 31%, dentre os quais 58% são mulheres.

[6É comumente chamada de transição demográfica religiosa o processo histórico de diminuição da maioria católica entre a população no Brasil. O crescimento do pentecostalismo, fazendo com que o número de evangélicos se aproxime progressivamente do número dos católicos é uma das marcas desse processo.

[7O mercado religioso que considera a indústria cultural gospel acumulou apenas no ano de 2015 cerca de R$21 bilhões.
CATEGORÍAS

[Igrejas Evangélicas]   /   [Separação da Igreja e do Estado]   /   [Igreja Universal]   /   [Igreja Católica]   /   [Direito ao aborto]   /   [Política]

João De Regina

Comentários