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SEMANÁRIO

Lágrimas de leão: o movimento estudantil retorna

Gabriel Piro

Segundo Asse

Juliana Yantorno

Lágrimas de leão: o movimento estudantil retorna

Gabriel Piro

Segundo Asse

Juliana Yantorno

Após a marcha massiva do dia 23, muito foi escrito e dito sobre uma novidade: a luta universitária e o despertar do movimento estudantil expressam mudanças no humor social em relação ao plano de guerra de Milei.

As fotos das marchas do dia 23 somam-se aos cartões-postais que mostram uma juventude que surge com força em diferentes partes do mundo. Na França, na Espanha e até mesmo no coração do imperialismo, nos Estados Unidos, acontecem marchas massivas contra o genocídio de Israel à população palestina. Os estudantes universitários têm realizado ações cada vez mais radicalizadas, em universidades como Harvard e Columbia. Se Milei queria que a Argentina se parecesse com o primeiro mundo, ai está!

Na Argentina, o estopim foram os ataques à universidade pública que o governo ameaça deixar sem orçamento, forçando uma paralisação. A resposta se manifestou de uma maneira particular: massivamente e nas ruas.

Lágrimas, mas não da esquerda

Um primeiro dado é que quase todo o espectro político concorda que a mobilização foi um golpe duro para Milei. Enquanto com as mobilizações anteriores não faltaram tentativas de "diminuir a importância", com esta foi impossível disfarçar.

O jornal La Nación dizia: "A magnitude da marcha põe à prova o temperamento do Governo e o ’mandamento’ que Milei declarou na segunda-feira em cadeia nacional: ’Não gastarás’ [1]. Para muitos, a cultura, a educação e a ciência não são ’gastos’, são direitos. Em La Política Online, em um editorial intitulado No la vio diz: "A impressionante marcha em defesa da educação pública não é um Waterloo [2], mas tem que se ver como reage o governo que tem um grande talento para transformar inconvenientes em derrotas esmagadoras (lembrar queda da lei ônibus)" [3]. Segundo esses analistas, a força mobilizada no dia 23 é uma mostra importante das contradições que se expressam entre o ajuste fiscal e as expectativas de um setor social que se dizia ser a base social de Milei: os jovens.

As ruas em debate

Por sua parte, o jornal Página 12 fala de três marchas: a da greve de 24 de janeiro, 24 de março e esta. "Nas três marchas houve uma parte que foi a todas, mas em cada uma se somam muitos manifestantes novos. E quem vai uma vez, já não desiste, porque o encontro físico com outras pessoas que pensam de forma semelhante e atuam em conjunto destroi preconceitos e dilui o preconceito sobre o qual se monta todo o discurso antipopular" [4] .

Efetivamente, esta marcha implica um salto na mobilização. Neste caso, construída desde diferentes setores, com uma composição etária, social e política variada e com assembleias prévias em múltiplas universidades, que evidencia a rejeição maciça a mexer na universidade, como uma espécie de "consenso social" transversal na Argentina. Mas o que Página 12 não diz é que essa dinâmica ascendente de que fala não pode se desvincular do contexto político e da orientação que os diferentes setores da oposição querem imprimir. As lideranças peronistas e radicalistas querem que essa mobilização seja apenas uma moeda de negociação com o governo que não desdobre toda essa força para lutar contra o conjunto do plano de ajuste.

No próprio documento que foi lido na marcha, acordado por radicalistas e peronistas, desde a direção dos sindicatos docentes, os reitores e a Federação Universitária Argentina (FUA), não se fez nenhuma referência sobre como continuar a luta. Lógico: não queriam antecipar o que se viu no dia seguinte: a UCR (União Cívica Radical) faltou na sessão para discutir o orçamento universitário (agora para limpar a cara propõem que ele seja tratado em comissões parlamentares). Isso porque o radicalismo é parte das forças "colaboracionistas" com o governo. Enquanto dizem defender a educação pública, manobram no congresso a nova Lei Ônibus que inclui uma reforma trabalhista reacionária que retira direitos dos trabalhadores.

Por sua parte, o peronismo tem a política de que essas mobilizações cumpram apenas um papel de desgaste para o governo. Que causem dano, mas que não desencadeiem uma mobilização e uma organização que derrotem efetivamente o plano Milei. O que querem é que esse descontentamento se expresse eleitoralmente em 2025 e 2027, apresentando-se novamente como o "mal menor" em um país já devastado. Por isso, diante da iminente votação da nova Lei Ômnibus e da Reforma Trabalhista, convocam a mobilizar apenas na quarta-feira (e uma greve no distante 9 de maio).

A luta é agora porque o ataque é agora. A questão do orçamento continua aberta e certamente terá novos episódios dentro e fora do congresso, onde precisamos estar organizados para enfrentá-los. Após anos de ajuste tanto sob o macrismo quanto sob o governo do Frente de Todos, é um fato que hoje se necessita um aumento de 300% no orçamento universitário para equiparar-se à inflação anual esperada. Os centros acadêmicos de estudantes e demais entidades estudantis devem reivindicar isso e organizar assembleias e reuniões em cada faculdade para discutir como traçar um plano de luta nessa direção. Sabemos que essa luta não pode ficar isolada.

Por isso, desde a esquerda, demos uma luta prévia em todas as faculdades para que a marcha incluísse a consigna de luta contra o DNU, a Lei Ômnibus e todo o plano de Milei. Após a mobilização desta terça-feira, há melhores condições para enfrentar os ataques, já que sob a bandeira da defesa da educação pública, também se expressaram múltiplos mal-estares e setores insatisfeitos pela queda dos salários, pelos despedimentos, pelos ataques também à saúde pública e às aposentadorias. Estar também nas ruas quando esta Lei for votada é uma tarefa fundamental, pois degrada as condições de vida das maiorias populares. Se esta Lei passar sem que se expressem "as forças da rua", Milei estará mais fortalecido para depois ajustar mais a Universidade. Não podemos deixar que a força de mais de um milhão que estiveram nas ruas no dia 23 se dilua. Neste sentido, propomos uma perspectiva para que o movimento estudantil desempenhe um papel no enfrentamento a este governo, em unidade com outros setores e resgatando suas tradições históricas mais progressistas.

Aos olhos de milhões, a universidade é um direito

Como apontam várias análises, parte da massividade da mobilização do outro dia se explica pelo papel específico que a universidade tem na Argentina. O número de estudantes tem aumentado nas últimas décadas, expandindo-se socialmente, já que hoje fazem parte da universidade setores que há décadas nem sonhavam em chegar lá: “Daniel Schteingart ilustrou o aumento de estudantes terciários de 1970 até 2021. Foi de 275.000, 1,2% da população, para 3,7 milhões, 8,1% da população. O grande salto ocorreu em meados dos anos 90 e está relacionado à criação de novas universidades, especialmente na região metropolitana de Buenos Aires. Se essa transformação gradual não for percebida, é muito difícil compreender o que aconteceu anteontem.” [5] Assim, a matrícula em universidades históricas também aumentou. Por exemplo, a Universidade de Buenos Aires passou de ter uma matrícula de pouco mais de 150 mil estudantes em 1992 para atualmente mais de 300 mil estudantes. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, a universidade expandiu-se territorialmente, com várias províncias e municípios que agora têm sua própria universidade. Um caso emblemático são as universidades da região metropolitana de Buenos Aires que permitiram o aumento do número de estudantes nas diferentes cidades.

O movimento estudantil vai muito além das clássicas “classes médias”. Como mostra o gráfico a seguir, atualmente uma porção significativa dos estudantes universitários são de “primeira geração”:

Essa expansão não ocorre sem fortes contradições. Para estabelecer uma comparação, no país há 557 estudantes para cada 10.000 habitantes, enquanto no Brasil são 408 e no Chile, 355. No entanto, na Argentina, menos conseguem obter o diploma. Embora a luta do movimento estudantil tenha conseguido defender em geral a educação pública quando houve tentativas de privatização, ela também foi precarizada, fazendo com que hoje apenas 25% dos estudantes, 1 em cada 4, consigam se formar.

Isso se combina com uma contradição estrutural da universidade (uma tendência global que continuou se aprofundando) entre a ampliação do acesso e a incapacidade do capitalismo de absorver maiores níveis de “mão de obra qualificada”. A aspiração de um setor da sociedade de que a universidade funcione como um veículo para o “ascenso social” encontra contradições com os crescentes níveis de precarização entre a juventude. Assim como se fala dos “trabalhadores pobres” (em referência àqueles que, apesar de receberem um salário formal, não cobrem a cesta básica), pode-se falar de “universitários precarizados”: jovens com diploma que não conseguem emprego ou cujos empregos são precários. Esta situação só tende a se agravar em um momento de crise como o atual. Por exemplo, como se compatibiliza cada vez mais estudantes na carreira de comunicação social da UBA com o fechamento da TELAM? O que podem esperar os estudantes de medicina após receberem seu diploma no contexto de um desfinanciamento generalizado do sistema de saúde público? A pirâmide universitária mostra então uma “base larga” (muitos ingressantes) e um topo que se torna cada vez mais estreito. Nós não queremos uma universidade “funcionando” em um país em ruínas (o que, além disso, é impossível). Daí nossa crítica ao corporativismo de peronistas e radicais (ao qual um setor da esquerda se adapta) que tenta separar as lutas da universidade das realidades “exteriores” como se fossem coisas separadas. Queremos que a luta universitária seja o pontapé inicial para a luta por uma transformação mais profunda da sociedade.

Agora, o fato de que nos últimos 50 anos a possibilidade de acesso à educação superior tenha se expandido tem consequências políticas contraditórias. Por um lado, surge essa aspiração de “ascenso social” que busca ser utilizada como uma forma de contenção social às críticas do sistema social que condena os jovens a terem ainda trabalhos precarizados. Mas, por outro lado, também tem seu caráter explosivo, pois pode se transformar em uma demanda motriz de milhões, como se viu na marcha do 23, que consideram o acesso à educação superior como um direito.

Universidade dos trabalhadores, e quem não gostar, se lasque!

Durante a marcha, começaram a ecoar cantos como: "’Universidade dos trabalhadores, e quem não gostar, se lasque’, repetido nas ruas do centro portenho por pessoas de todas as idades" [6]. Uma das imagens mais difundidas da mobilização é a dos trabalhadores da construção civil no Chaco, entoando a gritos essa consigna junto com os estudantes; a mobilização convocou amplos setores, incluindo lideranças sindicais que há muito tempo não apoiavam uma luta universitária. Mas diante do apoio massivo à luta dos universitários, não tiveram escolha.

Nesse espírito, também se destacaram importantes símbolos de unidade entre setores da vanguarda trabalhadora, as assembleias de bairro autoconvocadas e os estudantes que se organizam em suas faculdades. Os estudantes da FADU [Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo] da UBA marcharam junto com os trabalhadores terceirizados da GPS, que vêm lutando contra o fechamento da Aerolíneas. Na zona Oeste, trabalhadores da saúde e professores do ensino médio se mobilizaram. Da zona Norte vieram os trabalhadores da MadyGraf e da empresa Kraft. São todas imagens que nos levam a pensar na potencialidade estratégica dessas convergências. A massividade do corpo estudantil e a posição estratégica desses trabalhadores na economia nacional podem constituir uma força social imparável.

Isso se contrasta com a política das direções peronistas nos sindicatos, que, ao contrário, apostam em uma "estratégia" de lutar por espaços, dividindo as lutas ou apenas falando formalmente de unidade. Qual o sentido de lutar separadamente diante de um ataque conjunto? A única explicação é que, à frente desses sindicatos, há burocracias cuja função é preservar seu lugar no regime e no Estado sem questionar os mecanismos "normais" de seu funcionamento. Porque se unissem todas as lutas, a fragilidade institucional do governo de Milei seria exposta ao extremo. O que seria de Milei sem o apoio dos "colaboracionistas" e sem a "rua tranquila" que as burocracias buscam garantir? Nessas situações convulsivas, seu próprio poder está em jogo, porque fica evidente que são os trabalhadores que podem decidir sobre os destinos do país.

O mesmo poderia se dizer sobre os centros estudantis e federações conduzidas pelo peronismo e pelo radicalismo, que transformam a luta em defesa da universidade em reivindicações corporativas. Aceitam a "solidariedade", mas desprovida de sua potencialidade estratégica, que está em unir realmente essas lutas em instâncias de coordenação e deliberação comuns, traçando um plano para enfrentar seriamente Milei. Não se pode defender a universidade isoladamente, porque o ataque é conjunto, e os setores afetados não estão em uma única frente. Essa ideia se torna mais relevante do que nunca nos dias de hoje, embora as lideranças virem as costas para esse desejo de unidade. A mudança na disposição para a luta e organização está relacionada ao fato de que no dia 23 se sentiu essa unidade nas ruas, e unidos nos sentimos mais fortes.

Como seguimos? Desde abaixo, democraticamente

Depois da massiva mobilização do outro dia, surge então a pergunta: quem vai orientar os próximos passos? No conjunto, a luta universitária ainda é liderada pelos reitores, pelos sindicatos docentes e pelas entidades estudantis, mas em todo o país começam a surgir novos espaços autoconvocados que se organizam apesar dessas direções, e que se recusam a esperar que os tempos das burocracias decidam sobre nosso futuro pelas nossas costas.

Os estudantes que começam a se organizar enfrentam uma dificuldade. Como temos apontamos há alguns anos, as burocracias estudantis levaram a um processo de degradação dos centros acadêmicos e entidades estudantis, transformando-as em prestadores de serviços (bares e xerox) que vieram "preencher" as lacunas da universidade precarizada. A Franja Morada [agrupação política universitária] da UCR e o PJ, que co-dirigem, são os principais impulsionadores desse modelo de Centros de Estudantes estatizados e regimentados, ligados por mil e um laços com as administrações universitárias. O restante das correntes, até mesmo setores da esquerda, não rompeu com a ideia de Centros Acadêmicos prestadores de serviços e se limitou a manter entidades e centros que funcionam como cascas vazias ou meras "chapas políticas", chegando a realizar todo tipo de alianças supostamente "instrumentais" para mantê-las. Ambos elementos, que foram elos muito importantes nas cadeias de integração política da juventude ao regime, começaram a ser questionados.

Por isso, a partir da Juventude do PTS, além de questionar esse modelo que se mostra totalmente inútil para se organizar e lutar, queremos potencializar o desenvolvimento de todo espaço democrático, auto organizado desde abaixo, que tenha a forma que tiver (debates nas aulas, assembleias autoconvocadas, por curso, interfaculdades, comitês, comissões, grupos de WhatsApp que se tornem espaços de deliberação e ação, etc.), para que surja um setor de estudantes em cada faculdade que impulsione um movimento estudantil independente do governo e de luta junto aos trabalhadores.

Dentro dessas propostas, destacamos uma via que historicamente colaborou nessa perspectiva, que é a formação de corpos de delegados. O que é isso; como seria? Seu funcionamento é simples: em cada aula é eleito um delegado, e esses delegados formam o corpo de delegados, que se reúne periodicamente (reuniões abertas a quem quiser participar). Mas nessas reuniões se discute o que foi discutido, votado e definido em cada aula, o que chamamos de mandato de base. O corpo de delegados, com base nesses mandatos, convoca espaços democráticos, assembleias estudantis, e de coordenação, assembleias interdepartamentais, interfaculdades, ou espaços com outros setores, por exemplo, trabalhadores em luta que têm sua própria organização democrática. E nessas assembleias se debate e se decide. Os delegados, é claro, são revogáveis a qualquer momento se não cumprirem com seus mandatos de base.

Essa forma de organização envolve diretamente o conjunto dos estudantes nas discussões e na tomada de decisões, permitindo que a direção do movimento estudantil responda diretamente ao conjunto da base, o que é uma ajuda inestimável contra qualquer prática burocrática ou antidemocrática. Essa deliberação coletiva permite discutir não apenas as formas de organização e os métodos de luta, mas também nossos objetivos.

A luta pela democratização da universidade e seu sentido social

A partir da Juventude do PTS, nesse sentido, entendemos que a luta por construir esses espaços tem a ver com questionar o conjunto da universidade e seu funcionamento. O problema da orientação social da universidade se relaciona com o projeto de país que Milei busca, que aspira a uma reestruturação da Argentina a serviço do capital financeiro mais concentrado, varrendo o que chamamos de "estado ampliado". Como dizíamos neste artigo, o que Milei chama de "privilégios" de determinados setores de trabalhadores e setores populares, na verdade são conquistas obtidas por meio de uma determinada relação de forças, que inclui as universidades.

Mas a defesa da universidade contra esse avanço não pode nos levar a ocultar as contradições que existem hoje. Os planos de Milei se baseiam nas tentativas anteriores de avançar na mercantilização da universidade, que deixaram suas marcas. Nos anos 1990, o menemismo [7] propôs a LES (uma lei que nenhum governo revogou) que, apoiada nas recomendações do Banco Mundial, defendia a necessidade de avançar na privatização e no pagamento de mensalidades nas universidades, ao mesmo tempo em que incentivava a desfinanciar a oferta pública para reduzir a matrícula e fortalecer o setor privado, que seria supostamente mais "eficiente" diante da evasão e fracasso predominantes no setor público. Como resultado das lutas estudantis, a LES, apesar de avançar em reformas significativas reacionárias, esvaziando o orçamento da universidade e moldando os cursos de graduação e pós-graduação de acordo com os interesses empresariais, não conseguiu instalar um modelo privatista ao nível de outros países latino-americanos como Chile ou Brasil.

Isso resultou em uma universidade precarizada, com milhares de professores voluntários e faculdades que recorrem aos "recursos próprios" para se financiar. Isso, em muitos casos, resulta em convênios com empresas multinacionais que investem nas universidades em troca de mão de obra barata (estágios), publicidade ou projetos de pesquisa adaptados aos seus negócios.

Por isso, como a universidade atual não pode ser separada de seu caráter de classe, que é o caráter de classe da sociedade em que está inserida, transformar a universidade atual implica estabelecer uma crítica e um plano de ação contra a sociedade de classes que sustenta os aspectos mais reacionários da instituição universitária, como uma maneira de pensar numa produção de conhecimento libertada das amarras que o capitalismo impõe para o seu verdadeiro desenvolvimento. Ou seja, implica lutar por uma universidade a serviço dos trabalhadores e da grande maioria da população, onde ser estudante universitário não seja um privilégio nem uma forma de diferenciação social.

Para enfrentar essa luta, é necessário questionar o funcionamento atual das universidades. Quem as dirige e como? Embora desde a Reforma Universitária de 1918 a universidade funcione sob o princípio do cogoverno, ou seja, a partir de uma representação dos diferentes corpos da universidade, docentes e estudantes (os não docentes estão sub-representados ou não são levados em consideração na maioria dos Conselhos Diretores), essa representação dos corpos é profundamente antidemocrática: a representação dos docentes é ponderada entre aqueles titularizados e os que não são (considerados sob a figura de "graduados", escondendo o fato de que são trabalhadores docentes na maioria dos casos). Por exemplo, na UBA, apenas 10% dos docentes votam no corpo docente (cerca de 2500 em um total de mais de 28 mil docentes censados) [8]. Por sua vez, essa representação é igual à representação estudantil, embora os estudantes sejam a imensa maioria das universidades. Ou seja, um método feudal onde se qualifica o voto.

Isso permite que aqueles que dirigem a universidade atuem como uma casta, em função de seus próprios interesses e, por exemplo, negociem com governos e empresas, o que dá carta branca para a orientação pró-mercado, sobre a qual nunca foi consultada a maioria da universidade, seja estudantes, docentes ou não docentes. A luta pela democratização desses organismos precisa começar pela eleição direta das autoridades: uma pessoa, um voto, e a participação direta daqueles que fazem parte da universidade em cada decisão, é um ponto de apoio justamente para lutar por outra orientação para a universidade.

Doutrinação marxista?

Este panorama deixa claro que estamos longe de um cenário como o que Milei propõe, onde as universidades seriam "centros de doutrinação marxista". Como é apontado no último podcast da revista Crisis: "Pelo contrário, [as universidades públicas] estão fortemente capturadas pelas grandes empresas nacionais e transnacionais. Podemos ver os investimentos realizados pelos principais atores do agronegócio em faculdades de todo o país, Monsanto, Bayer, mineração". Alejandro Galeano, professor universitário convidado ao podcast, chega a afirmar que "contra argumento a isso [ao discurso de doutrinação marxista] é a centralidade que a UBA tem no funcionamento do capitalismo argentino". O discurso de Milei, que não se sustenta na realidade, é justamente para aprofundar essa orientação, eliminando tudo o que não seja aberta e fanaticamente neoliberal.

Do nosso ponto de vista, falta marxismo nas universidades. Para questionar o caráter de classe da universidade e da sociedade em que vivemos, precisamos de uma perspectiva crítica que comece parta da batalha contra a ideologia dominante que busca manter as coisas como estão. Hoje, as cátedras marxistas são uma pequena minoria na universidade e mesmo quando se aborda o pensamento marxista, ele é separado de sua potencialidade revolucionária. A partir das cátedras livres Karl Marx, que temos impulsionado em todo o país, apostamos em fazer com que o marxismo assuma a ofensiva de lutar contra as ideologias reacionárias, propondo um conhecimento colaborativo entre estudantes e trabalhadores em função de uma crítica radical a esta sociedade miserável.

Temos que aproveitar que Milei coloca no centro novamente as ideias do marxismo e do comunismo para discutir sua potencialidade revolucionária e criar um novo imaginário em setores da juventude que estão ansiosos por pensar em novas ideias. Pablo Semán e Nicolás Welschinger diziam no Panamá: "Talvez o governo tenha conseguido rapidamente trazer uma nova geração de dirigentes estudantis ou mesmo de estudantes politizados contra ele. Ainda é muito cedo para dizer, mas ninguém deve esquecer que entre os 18 e os 20 anos as politizações ocorrem a velocidades surpreendentes". A mesma lógica pode ser aplicada a uma geração que, diante de tantas catástrofes capitalistas, tome nas mãos as ideias revolucionárias.

Que medo, trabalhadores e estudantes como no Cordobazo!

Com tudo o que foi dito até aqui, cabe resgatar uma hipótese que propusemos a partir da Juventude do PTS há alguns anos nesta mesma revista: "Nossa hipótese e aposta política é que a existência de um corpo discente mais massivo em uma Universidade mercantilizada, onde poucos conseguem se formar, coloca a possibilidade de um importante confronto de aspirações com aqueles que querem se formar. Essa massividade também faz com que a linha divisória entre a "classe média universitária" e os setores populares se torne mais difusa devido à própria mudança na composição dos estudantes. A massividade traz a potencialidade de um corpo discente com maiores laços com os setores populares" [9]. Isso é muito significativo politicamente se compararmos a magnitude do corpo discente atual com o de outras épocas, onde já desempenhou um papel muito importante, como nos anos 60 e 70, apesar de seu menor peso social.

Nesse sentido, há um debate sobre como essa massividade e composição do corpo discente pode entrar em cena sob uma perspectiva estratégica que busque estabelecer pontes entre o movimento estudantil e o movimento operário para mudar a sociedade pela raiz. Para pensar esse aspecto, queremos resgatar as melhores tradições do movimento estudantil, como o Cordobazo, o levante em que se uniram trabalhadores e estudantes, que abriu uma etapa revolucionária na Argentina, da qual é fundamental extrair lições para o presente. Como dizíamos aqui: tanto o Cordobazo como o conjunto desses processos marcaram a irrupção violenta de importantes setores do movimento operário, estudantil e de massas na cena política nacional para tomar em suas mãos seus próprios destinos. Expressavam uma profunda tendência à ação histórica independente, não controlada pelo peronismo e sob a influência das diferentes correntes da esquerda marxista.

A geração que protagonizou o Cordobazo tinha outro horizonte, o da revolução, para acabar com o capitalismo e lutar por uma sociedade que não estivesse organizada em função dos lucros de poucos. Como afirmamos neste artigo, essa tendência a buscar a mudança social estava impregnada das influências da Revolução Cubana, do Maio Francês, do movimento internacional contra a guerra do Vietnã, entre outras. Naquele momento, predominavam as estratégias guerrilheiras separadas da ação independente da classe trabalhadora ou das "frentes populistas" de colaboração com setores da burguesia "nacional", o que teve resultados catastróficos em todo o processo. Atualmente, nós, que nos reivindicamos socialistas e revolucionários, temos o desafio de repensar esses limites ao mesmo tempo em que queremos adotar os melhores elementos dessa tradição. Buscando a unidade operário-estudantil sob o imaginário de construir uma nova sociedade onde sejam os trabalhadores, os estudantes e os setores populares que tomem cada decisão sobre o que, como e para que se produz. Esta perspectiva é a que estamos lutando.


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FOOTNOTES

[2A famosa batalha de Waterloo, em 18 de junho de 1815, pôs fim ao breve sonho de Napoleão Bonaparte de restaurar seu poder e se apoderar da Europa novamente.

[3No la vio.

[6A defesa da universidade pública, uma demanda transversal que provocou a maior manifestação contra o governo de Milei

[7Se refere às políticas implementadas por Carlos Menem, presidente da Argentina entre 1989 e 1999

[8Segundo o Censo Docente de 2011, a UBA tem 28.232 professores, 700 a menos do que havia no Censo de 2004. Desse total, apenas 23% são professores. Os outros 77% estão na categoria de auxiliar. No entanto, apenas 2.495 desses professores são regulares e, portanto, estão habilitados para votar. Isso representa 10,5% do total de professores. Veja aqui.
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