×

Jujuy | Informe especial: A guerra pelo lítio na Argentina

A luta do povo de Jujuy contra a reforma constitucional de Morales e contra o peronismo expôs os métodos do consenso extrativista imposto pelos partidos do regime. Em tempos de “transição energética” que tem gerado novas negociações “verdes” e diante da falta de dólares, a exploração do lítio se apresenta como nova promessa de desenvolvimento do país. Neste informe especial, apresentamos uma radiografia da exploração do lítio na Argentina, suas consequências socioambientais, a luta das comunidades indígenas e uma análise de suas perspectivas nas vozes de especialistas e protagonistas.

terça-feira 4 de julho de 2023 | Edição do dia

“É lógico, do ponto de vista do capital, ter um Estado que não permite que ninguém ocupe uma rua ou uma rodovia se o objetivo é saquear os recursos naturais, enquanto aprofundam um projeto de província rica com trabalhadores pobres”, denunciou o conselheiro de Jujuy pelo PTS-FITU, Gastón Remy.

A situação em que se vive nessa província há semanas estremeceu a opinião pública nacional pela brutal repressão do governador radical Gerardo Morales contra o povo de Jujuy, que rechaçava nas ruas a reforma constitucional reacionária aprovada com votos do PJ. Esta acaba com o direito ao protesto social e o das comunidades indígenas sobre suas terras, onde (não casualmente) se encontram grandes reservas de lítio.

Existe um consenso extrativista, uma vez que não há oposições ao saque entre os candidatos presidenciais, de Sergio Massa aos da oposição de direita. Wall Street festeja, já que as potências econômicas têm interesse estratégico neste bem comum natural. Para entendermos melhor as consequências ambientais, sociais e econômicas da extração de lítio no país, neste informe especial do La Izquierda Diario conversamos com o economista Ariel Slipak, a bióloga do Conicet Andrea Izquierdo, a deputada de Jujuy Natalia Morales (PTS-FITU), o conselheiro do PTS-FITU Gastón Remy e com Mario, trabalhador minerador do Chile.
 
O lítio na disputa geopolítica e a transição energética

Se a crise climática gerada pelo capitalismo não for detida rapidamente, é possível chegar a níveis catastróficos de consequências gravíssimas para a vida a planeta e sobretudo para a maioria trabalhadora. Segundo o Acordo de París, o planeta deveria chegar ao grau zero de emissões em 2050. Para alcançar essa marca, se fala de distintos pontos de vista da transição energética. É uma busca por reduzir sensivelmente – não sem contradições – o uso do combustível fóssil (petróleo, gás e carvão) e a emissão de gases de efeito estufa, como dióxido de carbono. É aqui onde entra o lítio: um mineral com propriedades muito importantes para fabricar baterias eficientes e, por isso, cada vez mais cobiçado pelas potências imperialistas.

Uma pergunta necessária é que tipo de transição é possível, desejável ou justa desde o ponto de vista das maiorias sociais e, sobretudo, necessária para alcançar este objetivo.

Atualmente, os capitalistas não só estão fazendo o contrário para enfrentar o aquecimento global, impulsionando por exemplo novas “bombas de carbono”, como a anunciada por Joe Biden no Alaska; mas também, escorados sobre essa necessidade, abriram um nicho enorme de negócios. Mas isso não resolve a crise, uma vez que não atinge nenhuma de suas causas. Trata-se do “capitalismo verde” com a produção de automóveis elétricos como chamariz. Para a Agência Internacional de Energia, a produção de carros elétricos passaria de 2 milhões a 280 milhões em 2040, a demanda se multiplicaria por 42, mas a estimativa de redução da emissão de gases de efeito estufa é somente de... 1%!

Gigantes automotrizes como Tesla (EUA), Toyota (Japão), multinacionais como Eramet ou Geolith (França), Shandong Gold, Ganfeng Lithium e Zijin Mining, ou o próprio Estado chinês estão disputando o negócio da extração de lítio e a fabricação de baterias.

No marco internacional de disputas geopolíticas aceleradas pela guerra na Ucrânia entre EUA e seus aliados e o imperialismo em processo de constituição na China, a disputa pelo assim chamado novo “ouro branco” se recrudesce. Argentina, Chile e Bolívia concentram entre 50 e 85% das reservas mundiais e por este motivo a região se converteu em um “tabuleiro de xadrez ou damas” geopolítico, declarava a general a cargo do Comando Sul dos EUA, Laura Richardson.

Em janeiro de 2023, o influente think tank Wilson Center celebrou a política “decididamente market friendly” do país, ponderando, além dos rebaixamentos fiscais, “Os incentivos adicionais que incluem uma garantia de estabilidade fiscal de 30 anos; uma taxa de royalties fixa de 3%; e concessões outorgadas por tempo ilimitado. Jujuy outorga descontos dos royalties quando a empresa de lítio se compromete a processar localmente o lítio extraído lá”.

Sobre esta bandeja de benefícios para o capital internacional, o novo pré-candidato a presidência do União pela Pátria, Sergio Massa, vem impulsionando acordos de investimento para a extração de lítio com empresas norte-americanas e chinesas. Tudo isso com a desculpa de aumentar a entrada de dólares para enfrentar as impagáveis dívidas com o FMI e credores privados nos próximos anos. Abutres como Blackrock, Vanguard, JP Morgan e HSBC são alguns desses credores também por trás do lítio, enquanto entre os sócios locais se destaca José Luis Manzano, próximo de Massa e de Morales, que com a Integra Lithium acumula 243 mil hectares de salinas para explorar o negócio minerador.

O que agora está aquecendo a atmosfera tem origem no que Marx descreveu como uma fratura metabólica gerada pelo capitalismo no ciclo do carbono (extraindo do subsolo, onde se acumulou durante milhões de anos, para transformá-lo em combustível em busca de energia barata). Agora o capitalismo transfere esta crise de três formas simultâneas: espacialmente (com o saque e destruição extrativista da periferia pelos maiores emissores históricos, atrasados e dependentes); tecnologicamente (com um ciclo de negócios em torno os carros elétricos) e temporalmente (atrasando a solução da crise e permitindo mais lucros).

O mapa do lítio na Argentina

O país ocupa o quarto lugar como país produtor mundial de lítio (5%), depois da Austrália com 47 %, Chile com 30 %, China com 15 %. A maior parte das reservas deste mineral se encontram nas salmouras das salinas andinas do chamado “triangulo do lítio”, na região do Atacama, que se estende do norte do Chile com nome homônimo, ao sudoeste potosino na Bolívia e à Puna do noroeste Argentino.

Na Argentina, a distribuição do acervo deste mineral é a seguinte: em Salta se encontra 40%, Jujuy, 37% e Catamarca, 23%. Juntas, concentram em torno de 38 projetos mineradores, dos quais só dois se encontram em funcionamento. As duas explorações em funcionamento são controladas por duas gigantes produtoras globais: a norte-americana Livent e a australiana Alkem.

Nas Salinas de Olaroz (Jujuy) funciona a Sales de Jujuy AS, uma empresa 65% controlada pela Alkem, 25% pela automotriz Toyota e Jujuy Energía e Minería (Jemse), que pela regra fica com 8,5% de todos os projetos da província.

Nas Salinas de Hombre Muerto (Catamarca), a exploração do “projeto Fenix” está a cargo da norte-americana Livent.

Avanço de projetos de mineração de lítio na Cuenca Olaroz-Cauchari de 2013 a 2023

Como estão os empregos na mineração de lítio? Segundo dados da Secretaria de Mineração, em fevereiro deste ano foram registrados 3788 postos de trabalho nos ramos de produção de lítio (2670 postos) e em exploração e financiamento do lítio (1118 postos). Isto representa 10% dos empregos no setor minerador e somente 0,06% do total de trabalhadores registrados no setor privado.

Ainda que a média dos salários do setor estejam acima da média dos contratados, nem todos no setor do lítio recebem esses ativos. O economista e Conselheiro de San Salvador de Jujuy (PTS-FITU, Gastón Remy) afirma que na mineração de lítio quase metade dos trabalhadores não são contratados diretamente pela Associación Obrera Minera Argentina (AOMA). São contratos feitos com a UOCRA com piores condições de trabalho e menores salários. Além disso, os trabalhadores da AOMA trabalham 7 dias e folgam 7 dias, enquanto os contratados trabalham 21 dias e folgam 10 dias (a metade) com jornadas de trabalho de 12 horas. “Terminam o turno, saem acabados, têm um lugar para descansar, ver televisão, comer e depois dormir para seguir trabalhando no dia seguinte”, afirma Remy.

Com esta exploração, as empresas acumulam fortunas. A mineradora Alkem obteve lucros de U$S 144 milhões no primeiro trimestre do ano, segundo sua contabilidade. Trata-se de um aumento de 194% em relação ao mesmo trimestre de 2022. Já a Livent vende suas plantas no resto do mundo a totalidade do carbonato e cloreto de lítio a preços inferiores ao do mercado internacional. Uma prática fraudulenta que lhe permite não pagar uma parte dos royalties à província dos direitos de exportação.

Ao final de 2021, o preço internacional do carbonato de lítio teve um salto, passando de U$S 13 mil a tonelada (em junho) a U$S 68.500 (março de 2022) e continuou subindo até U$S 80.909 (novembro de 2022), para então cair hoje para um pouco mais de U$S 30.000. Mas diferentemente de outros bens negociáveis ou commodities que têm um mercado de referência – como o Brent em Londres, a soja em Chicago – que fixam seu preço público, com o lítio isso não ocorre. Seu preço tem majoritariamente como base as vendas da companhia chilena SQM para a China (o principal comprador global de carbonato de lítio equivalente ou LCE).

A legislação mineradora vigente, modificada em 1994 entre o PJ e a UCR, permite que as multinacionais tomem o mineral sem deixar quase nada em troca. A recente fusão entre Alkem e Livent garante uma concentração maior da produção em nível global. Em nível local, a produção através da nova companhia, Newco, será rival de outros projetos de capitais canadenses e chineses; mas também da grande burguesia nacional que pretende desembarcar: José Luis Manzano e Pluspetrol, os Bulgheroni ou Rocca.

Em defesa da água e dos territórios: a lucha das comunidades

A entoada “quem roubou todo o lítio” ressoou esta semana pelos rincões de Jujuy em meio à luta do povo de Jujuy e das comunidades originárias contra a reforma constituinte. Muito se fala das supostas entradas de dólares que poderiam chegar pela exploração do lítio, mas pouco da forma pela qual se extrai o mineral e, sobretudo, das consequências socioambientais que deixa.

Os métodos de exploração atual de lítio causam importantes impactos negativos sobre as salinas, que são zonas úmidas, e implicam um alto consumo de água, tanto salgada como doce, que escasseia esse bem natural comum na região.

A Lei de zonas úmidas consensuada por mais de 300 organizações de todo o país propõe a proteção e defesa das salinas andinas. Já foi apresentada em 2013, 2016, 2020 e 2021, mas nunca chegou sequer a se discutir no recinto. O lobby das câmaras mineradoras é um dos principais inimigos da mesma, com a cumplicidade dos Governadores do Norte Grande.

Por outro lado, as salinas estão em território dos povos originários. Ainda que legalmente o subsolo seja do Estado, os territórios ancestrais ocupados pelas comunidades indígenas devem ser reconhecidos como próprios, segundo estabelecem o art. 45 da Constituição Nacional e a Lei 26.160. Além disso, qualquer tipo de empreendimento deve reconhecer e cumprir a Consulta Prévia, Livre e Informada, segundo o Convênio 169 da OIT, ao qual a Argentina adere. Isto significa que todo projeto produtivo, de infraestrutura, do Estado e setores privados devem consultar as comunidades indígenas e que as mesmas devem contar com o direito ao acesso à informação, estudos, planos, avaliação e com instâncias de participação plena para que possam analisar se querem permitir ou não, com quais objetivos e, caso sim, de que forma.

Mas o Estado e os governos provinciais concedem às mineradoras o território para exploração de forma irregular. No caso de Jujuy, nas bacias de Oraloz-Cauchari e nas Salinas Grandes e Laguna Guayatayoc, por exemplo, dividem o território em zonas que são cedidas com o consentimento de somente algumas comunidades. Este procedimento contradiz as condições ecológicas e territoriais que devem ser avaliadas integralmente. Todas as comunidades devem dar o consentimento.

As comunidades que se opõem indubitavelmente à mineração pelas multinacionais como as comunidades kollas e atacamanas de Salinas Grandes e da Laguna de Gayatayoc apontam o problema da água e o desalojo de seus territórios e modos de vida como as principais preocupações. Elas têm uma vinculação econômica e material com as salinas, mas também, em sua visão de mundo, a natureza aparece fortemente vinculada a sua vida espiritual.

As empresas têm múltiplas estratégias para obter permissão e minimizar a resistência. Por exemplo, políticas assistenciais, de capacitação técnica em torno da atividade e postos de trabalho que, frente a uma situação de vulnerabilidade, funcionam como promessas de “progresso” social. Inclusive, obras de infraestrutura são feitas para melhorar rodovias e instalações para facilitar a mineração, transformando o conjunto do território em torno da atividade extrativista.

Quando, apesar da enorme desigualdade de poder, as comunidades resistem e rechaçam a mineração extrativista de lítio, a repressão estatal sempre ocorre. No entanto, as comunidades indígenas não se subjugam.
Um integrante da comunidade de El Toro (Susques), do povo do Atacama, que se encontra em luta contra a reforma de Gerardo Morales nos disse: “O cara quer se fazer de rei aqui da Puna, negociar com o gringo, arrancar o máximo dos minerais que pode, tirar a pecuária. Há pouquíssimos anos, a mineração foi implementada, onde meteram a política e as empresas estrangeiras. Nesta zona do Atacama, estão duas empresas, Exar, Sales de Jujuy, o governo tira muita grana, vende, faz negociações próprias. Somos povos indígenas que estão há anos nestes territórios, nossos avós nos deixaram e vamos defendê-los até a morte. Se deixamos isso passar hoje nesta província, vão acabar com todas as outras províncias.”

Uma saída pela esquerda, basta de saques e dependência

A transição energética global como resposta à crise climática gera as condições para um aumento da demanda de lítio. Isto gera “uma transição energética amigável para a proliferação de novos negócios, agora pintados de verde”, como aponta o especialista Ariel Slipak para este jornal.

Por conta da sede de lucros, a capacidade do lítio de armazenar energia não fóssil é utilizada principalmente para a produção de carros elétricos individuais, ao invés de sistemas de transporte público gratuitos em todo o mundo. Por trás da exploração do lítio não há nenhum interesse em solucionar a crise climática nem alcançar uma verdadeira transição energética em favor das maiorias sociais.

Trata-se de um novo nicho de negócios capitalistas que acabam com a água, a terra, os direitos do povo trabalhador e as comunidades, e se opõe a qualquer perspectiva de desenvolvimento genuíno.

Para combater a crise climática, é necessário hierarquicamente reduzir as emissões de gases de efeito estufa, parar de desmatar florestas e de mudar os usos do solo, com um plano que questione integralmente o modo de produção e de consumo capitalistas. Como mostramos, pouco se fala sobre o escasso impacto total do uso do lítio na crise climática.

A Argentina tem a nível mundial a terceira reserva deste bem natural comum. O consenso extrativista dos partidos do regime – do Juntos por el Cambio (Morales, Bullrich, Larreta), passando por Milei e o peronismo, agora unificado por trás da figura de Sergio Massa – veem no lítio a possibilidade de aumentar as exportações e, por esta via, a entrada de dólares que o país necessita como água no deserto para pagar a dívida fraudulenta ao FMI.

Quantos dólares gera e deixa no país esta atividade? De acordo com as projeções do Governo, até 2030 se estima que as exportações de lítio subiriam para U$S 8.730 milhões. Mas isto não significa que ficarão no país, qual será o lucro que as multinacionais terão? Somente em 2022, a empresa Sales de Jujuy ganhou U$S 523 milhões. São recursos suficientes para construir 14 mil moradias. Levando em conta o déficit de moradia existente em Jujuy, com esses recursos em 2 anos seria possível acabar com este problema que afeta milhares de pessoas.

A exploração do lítio que os governos vendem é parte de uma matriz extrativista conhecida, como o agronegócio, a megamineração e o fracking: exportação dos “passivos” ambientais dos países atrasados e dependentes que ficam como “zonas de sacrifício”. Do outro lado, lucros colossais para o capital concentrado (participam da Allkem, por exemplo, JP Morgan e HSBC Group) e empregos nos países imperialistas (o tratamento do carbonato de lítio e a fabricação de baterias, por exemplo). Não há desenvolvimento, mas aprofundamento do saque e da decadência nacional.

Sob o conceito de acumulação por desfossilização, o especialista Ariel Slipak com um grupo de investigadores do GYBC mostrou como “quem acaba pagando ou padecendo com seus corpos, com seu modo de vida e com um ataque a sua cultura são as comunidades.”




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias