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Guerra da Ucrânia, a ilusão da multipolaridade “progressista” e as tarefas da esquerda revolucionária

André Barbieri

Guerra da Ucrânia, a ilusão da multipolaridade “progressista” e as tarefas da esquerda revolucionária

André Barbieri

Apresentamos em formato público o documento internacional a ser discutido no V Congresso partidário do MRT, que será realizado entre 29 de setembro e 1 de outubro. O documento desenvolve temas e discussões abordados na sessão virtual da XII Conferência da Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-QI), realizada em maio de 2023, cujas definições seguem sendo válidas. Atualizamos aspectos fundamentais da realidade, tomando a geopolítica, a economia mundial e a luta de classes (os três fatores que interagem, para Trótski, na definição do equilíbrio instável do capitalismo), pensando o avanço dos grupos da FT, sua intervenção na realidade e a batalha pela reconstrução da IV Internacional. Como viemos definindo, abriu-se um período em que as tendências profundas da época imperialista de crises, guerras e revoluções (Lênin) estão mais uma vez em primeiro plano, com a Guerra da Ucrânia, o contexto de competição entre potências e as divisões em blocos rivais, as consequências vivas da Grande Recessão de 2008 e a entrada em cena da luta de classes com muita força no primeiro semestre de 2023. Vamos desenvolver cada um desses aspectos abaixo.

1. “Politização” de uma economia mundial instável e a divisão dos blocos

Há muitas incertezas na economia global. Os impactos de longo alcance da Guerra da Ucrânia, a inflação e os altos custos de energia e alimentos enfraqueceram ainda mais uma economia global que já estava sofrendo com os desafios econômicos persistentes da pandemia. A maioria das previsões econômicas dos últimos meses refletiu esse sentimento. O FMI rebaixou sua previsão de crescimento global para 2023 para 2,7%, com perspectivas econômicas negativas para os Estados Unidos (1,0%, abaixo dos 2,3% em abril de 2022) e para a China (de 5,1% para 4,4%). Em seu conjunto, a economia mundial não resolveu os problemas herdados pela Grande Recessão, e agravados pela pandemia, no contexto da exaustão (ou crise profunda) da globalização neoliberal.

Essa exaustão dos traços marcantes da globalização turbinada nos 1990 está integrada à reincorporação, no cenário mundial, da competição entre as potências, imersa na disputa entre Washington e Pequim. Se fôssemos resumir o enquadramento da economia mundial nesse momento de revitalização das tendências de época (segundo Lênin, “crises, guerras e revoluções”), diríamos que se baseia 1) na “politização da economia”, ou seja, a determinação do comércio pelo critério da segurança nacional, 2) no de-risking (“redução de riscos”), que implica a tentativa tortuosa de remodelar as cadeias de valor de um país dentro do círculo de aliados geopolíticos, e 3) nas tendências ao protecionismo nas grandes potências. Naturalmente, é muito difícil que todas essas tendências sejam levadas até o final, pelo grau de integração e interdependência que marca a economia mundial há décadas, e que torna muito complexo que, por exemplo, Estados Unidos e China diminuam a sua dependência mútua. Entretanto, há movimentos mais sólidos para construir uma série de “barreiras de segurança” dentro dessa velha arquitetura, o que a modifica profundamente. Depois de décadas de favorecimento do consenso globalizador, com o livre fluxo de capitais e insumos que alavancou o ciclo neoliberal, os Estados Unidos, a China e as grandes potências passam a utilizar políticas de Estado para prevenir que as cadeias de valor e suprimento coloquem em risco o seu próprio país, ou que ajudem o adversário. A secretária do Tesouro norte-americano, Janet Yellen, viajou à Índia e ao Vietnã para convencer seus governos a se afastarem da dependência produtiva chinesa. A China impôs controles de exportação de metais críticos, como o gálio e o germânio, em retaliação às medidas da União Europeia contra produtos chineses. Tudo isso informa um mundo muito mais arredio aos velhos trâmites comerciais. Como escreve o economista marxista Michael Roberts, a globalização, no que diz respeito aos fluxos comerciais e financeiros sem obstáculos, está terminada, e aumentam as tendências à fragmentação do antigo metabolismo econômico capitalista.

Fruto disso, não se deram na realidade as expectativas, criadas depois da revogação da Covid-zero na China, de ressurgimento do comércio mundial. Com a consequência, mais grave, de que os países com maior destaque no impulso do crescimento mundial, como a China, vivem uma encruzilhada. Aliada aos efeitos letárgicos da Guerra da Ucrânia, a nova situação crítica da economia chinesa começa a indicar que o mundo não poderá contar da mesma maneira que nos últimos 40 anos com esse motor global.

A China já vinha atravessando um novo momento de crescimento fraco e em desaceleração. Mas novos indícios negativos da crise agravaram o cenário. De abril a junho o PIB cresceu apenas 0,8%, menos do que o esperado pela desativação da política restritiva da Covid-zero (embora em termos anuais o crescimento tenha sido de 6,3%). As vendas no varejo da China cresceram pouco, 3,1% no trimestre, desacelerando acentuadamente em relação aos 12,7% em maio, mostrando que as famílias decidiram poupar mais e não gastar, o que ameaça desatar problemas de deflação (queda nos preços por baixo consumo). As exportações chinesas declinaram por três meses consecutivos, e o mercado imobiliário - que representa 25% do PIB chinês - continua golpeado pela política de Xi Jinping de restringir crédito e endividamento das empresas (depois da crise da Evergrande, a maior incorporadora imobiliária estatal do país, Country Garden [1] , deixou de pagar quase 8 bilhões de dólares aos acionistas). O desemprego na juventude urbana supera as proporções habituais: entre jovens de 16 a 24 anos, chega a 21,3%. Tudo isso ocorre enquanto o Partido Comunista Chinês tenta fazer a transição de uma economia impulsionada por investimentos em infraestrutura e exportações dirigidos pelo Estado para uma economia liderada pelos gastos de consumidores domésticos. O problema é que o mercado consumidor interno da China dependeu, até agora, da saúde do setor imobiliário: a maior parte da poupança das famílias chinesas se encontra em imóveis, e a riqueza familiar é transmitida de geração em geração através dos ativos imobiliários. A queda dos preços dos imóveis faz com que as famílias tenham mais receio em gastar (investir em casas ou apartamentos), por medo de esgotar sua riqueza atual em ativos que perderão rapidamente o seu valor. O estouro da bolha imobiliária no Japão, na década de 1990, levou a três décadas de declínio, e embora o caso chinês tenha muitas particularidades que afastem, por ora, um cenário dessa natureza, esse problema sobrevoa o imaginário do governo. Isso fez com que Xi Jinping refizesse, em agosto, a promessa do 20º Congresso do PCCh, de tornar o setor privado “maior, melhor e mais forte” e garantir melhores condições para os investimentos capitalistas estrangeiros na China, a fim de atrair novos capitais, o que é difícil sem medidas de estímulo estatal para retirar parte do marasmo econômico chinês.

Essa situação diminui o impacto da parcial recuperação da economia norte-americana, que registrou crescimento de 2,4% do PIB no segundo trimestre. O governo Biden e o Federal Reserve conseguiram (com massivas injeções para salvar os bancos privados e os lucros dos acionistas) deter a tendência de quebras bancárias que se expressaram com o colapso do Silicon Valley, do Signature Bank e do First Republic Bank. Mas a alta das taxas de juros, e a persistência da inflação, seguem golpeando os segmentos mais empobrecidos da classe trabalhadora.

A China, que foi responsável por 40% do crescimento do PIB mundial desde 2013 (22% dos EUA, e só 9% da União Europeia), está deixando de atuar como o motor pujante contracíclico da economia. E isso se dá por motivos estruturais. A China transita de uma economia orientada à exportação com manufaturas de baixo valor agregado para uma economia baseada em alta tecnologia e com maior importância do setor de serviços, o que resulta numa queda da taxa de crescimento comparado com as últimas quatro décadas. Além disso, outra dificuldade é que a China está obrigada a projetar para fora de suas fronteiras o desenvolvimento de seu poderio capitalista, se quiser continuar a crescer, e isso significa chocar-se com os Estados Unidos na luta por nichos de acumulação e investimento. Esse é o núcleo da principal disputa geopolítica hoje, que tem fundamentos estruturais de época, e o establishment bipartidário norte-americano veio tomando medidas drásticas para conter o crescimento chinês. Trump havia imposto tarifas generalizadas sobre as importações chinesas. Biden deu continuidade a essa política, acrescentando proibições de investimento em setores-chave da indústria de alta tecnologia na China, como a de semicondutores. Biden intensificou essa campanha ao assinar uma ordem executiva impedindo o investimento em setores que podem reforçar as Forças Armadas da China.

Desse ponto de vista, as medidas de contenção dos Estados Unidos, ao atacar a estratégia de “catching up” (absorção de tecnologia estrangeira para alcançar a fronteira tecnológica) e a fonte da riqueza baseada no comércio internacional, agravam os efeitos do desequilíbrio interno chinês. Entretanto, não há opinião unânime sobre o sucesso que os Estados Unidos possa conseguir em sua política, e revistas como a The Economist escrevem que Biden está fracassando em seu intento. Isso porque, consideradas as coisas, a dependência dos Estados Unidos em relação à China permanece intacta. Os Estados Unidos podem estar redirecionando sua demanda da China para outros países. Mas a produção nesses lugares agora depende mais do que nunca de insumos chineses. Por exemplo, os países do Sudeste asiático (Indonésia, Filipinas, Vietnã, entre outros) que viram suas exportações aos EUA aumentarem, passaram a importar muito mais insumos intermediários da China. As exportações chinesas de peças de automóveis para o México - outro país que se beneficiou da política de “redução dos riscos” de Biden - dobraram nos últimos cinco anos. Uma pesquisa publicada pelo FMI revela que, mesmo nos setores de manufatura avançada, onde os Estados Unidos estão mais interessados em se afastar da China, os países que mais se infiltraram no mercado norte-americano são aqueles com os vínculos industriais mais próximos da China. As cadeias de suprimentos se tornaram mais complexas, e o comércio ficou mais caro. Mas o domínio da China não parece ter diminuído. As novas regras dos Estados Unidos puderam redirecionar de alguma maneira sua dependência para terceiros, mas não podem livrar toda a cadeia de suprimentos da influência chinesa. O principal efeito parece ser, portanto, não a separação dos mecanismos produtivos interligados entre China e EUA, e sim a lenta divisão da economia mundial em blocos, e o decrescimento da formação de riqueza nos países líderes do comércio mundial. A divisão em blocos aprimora os efeitos negativos da Grande Recessão.

Esse panorama, com efeitos desaceleradores que são estruturais, para além das dificuldades na conjuntura, tem um impacto especial sobre países exportadores de matérias-primas, como na América Latina. Afeta, por exemplo, a perspectiva econômica do Brasil e a política do governo Lula. Isso é sentido especialmente pelo complexo agroexportador. A pauta exportadora do Brasil para a China é composta por cinco itens principais: soja, minério de ferro, petróleo, proteína animal e milho. Esses cinco itens respondem por mais de 80% das exportações brasileiras para a China. Do êxito da venda/exportação desses itens ao mercado chinês depende, em boa medida, a saúde do complexo do agronegócio brasileiro, fundamento da economia capitalista nacional, atrasada e dependente. A desaceleração da China afeta desigualmente esses elementos, em função das particularidades na utilização de cada uma das commodities [2] : enquanto a exportação de milho e soja permanece relativamente estável, a venda de proteína animal e petróleo sofre mais danos, e a de minério de ferro decai. Disso se deriva um cenário potencialmente arriscado adiante. Por isso, a visita de Lula a Xi Jinping com uma comissão de empresários da agropecuária e da indústria teve como objetivo assegurar laços estratégicos de fornecimento de matérias-primas que, de alguma maneira, resistissem aos solavancos no gigante asiático.

Esse fator da crise chinesa, o mais importante para as perspectivas da economia global, também influencia o panorama econômico na América Latina, que é ainda pior que a média global. A agência de análise econômica Deloitte prevê crescimento de apenas 1,7% na região. O endividamento dos governos latinoamericanos reduz as margens para saídas de injeção financeira por parte dos Estados, com a dívida pública atingindo mais de 70% em 2022. Diante das dificuldades com a economia chinesa, a propaganda imperialista é que a América Latina pode ingressar em um novo ciclo de enriquecimento mediante a exploração e exportação de minérios estratégicos [3] para a chamada “economia verde”. Isso empurra os governos da região, inclusive os ditos “progressistas”, a um programa neo-extrativista que preserva a subalternização das economias à espoliação das grandes potências, assim como incrementa a destruição ambiental. Lula quer explorar petróleo na bacia do Amazonas , para tentar aumentar a produção e suprir as cotas exportadoras que a União Europeia quer deixar de receber da Rússia, gerando atritos com países como Colômbia e Equador. O governo golpista peruano busca entregar o cobre e o cobalto às empresas imperialistas. O mais emblemático sintoma do “progressismo extrativista” se encontra no cobiçado triângulo do lítio, que envolve a Bolívia (21% das reservas globais), a Argentina (20%) e o Chile (11%). Quase a metade das reservas mundiais de lítio se encontra nessa zona andina. Alberto Fernández, Luís Arce e Gabriel Boric competem por quem entrega com mais rapidez os títulos de propriedade dos depósitos de lítio às empresas vinculadas aos Estados Unidos e à China, que lutam por garantir a parte de leão desses campos de extração. É um programa compartilhado com a extrema direita, como expressa Javier Milei na Argentina, que defende a privatização da petrolífera YPF , a entrega da bacia de Vaca Muerta (segunda maior reserva mundial de gás de xisto), e dos depósitos andinos de lítio.

Um ponto fundamental da luta política contra o lulismo, o peronismo-kirchnerismo e demais formações políticas “pós-neoliberais” na América Latina é atacar o novo ciclo de submissão às potências através do extrativismo e da destruição ambiental capitalista, que é enfrentado pelos trabalhadores e povos originários, como no levante de Jujuy (em que o PTS teve um papel destacado), os protestos em Potosí na Bolívia, ou as manifestações do povo mapuche no Chile.

As tendências à fragmentação econômica vão adotando expressão organizada a partir do surgimento dos blocos geopolíticos rivais. Depois de muitos anos amargando a quase irrelevância, o bloco dos BRICS (conformado originalmente em 2009 por Brasil, Rússia, Índia, China, agregando a África do Sul em 2011) chamou a atenção do mundo na sua recente 15º cúpula em Joanesburgo . Na ocasião, sob os auspícios da China [4] , o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa (que conferiu a Xi Jinping a honorária “Ordem da África do Sul”) anunciou a expansão do bloco, com a entrada de mais seis nações a partir de 2024: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Como a superpotência mais poderosa do bloco, a China dominou as decisões centrais, em muito maior medida que até aqui, inaugurando a espécie de liderança não-oficial dos BRICS (embora haja maleabilidade nas orientações nacionais de cada membro). Apesar da maior heterogeneidade e das contradições internas do bloco, o objetivo de Xi é usá-lo para revigorar o conceito da “geopolítica Sul-Sul” que se estabelece como um contraponto ao G7 (grupo que inclui Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França, Japão, Canadá e Itália) e à ordem internacional dominada por Washington [5] . Segundo Moritz Rudolf, do Paul Tsai Center nos EUA, “o foco de Pequim é criar um contrapeso para o G7, e o fortalecimento do clube dos BRICS é uma ferramenta valiosa na busca pela liderança chinesa”. Os BRICS representam hoje 24% do PIB global [6], 16% das exportações mundiais e 15% das importações mundiais de bens e serviços, o que aumentará (ainda que pouco) com o ingresso das outras seis economias. De acordo com James Kynge, do Financial Times, “o grupo ampliado dos BRICS representa o bloco mais influente que o mundo em desenvolvimento já produziu. Há uma sensação de que, depois de décadas aceitando as regras do Ocidente, a era do "sul global" está chegando”.

Lula aceitou a pressão chinesa pela expansão, colocando em troca a exigência de que o Partido Comunista interviesse publicamente pela admissão brasileira no Conselho de Segurança da ONU, algo sem muita relevância. Ainda que analistas como William Waack tenham razão em dizer que a China se impôs ao Brasil com a recompensa de uma ilusão na ONU, Lula tem um crédito político a aproveitar: com a nova importância dos BRICS, Lula se encontra em posição forte para negociar com seus aliados latino-americanos, africanos e asiáticos, sendo reconhecido como um dos líderes principais do “Sul Global”. Isso já se expressa com a Argentina, que ingressou com agradecimentos ao Brasil, e poderá acontecer com a Venezuela. Havíamos escrito que a inclinação de Lula ao “multilateralismo benigno” do capitalismo chinês está inscrita na dinâmica da “dupla dependência” do Brasil no campo mundial, ou seja, na debilidade estrutural que força o Estado brasileiro a servir dois amos, Estados Unidos e China [7] , sem romper com ninguém e aproveitando, mediante reforço da submissão, para extrair o possível nas negociações com ambos os adversários. Haddad e Lula disseram que os BRICS não serão “rivais do G7, nem um bloco anti-ocidental”, tratando de pacificar o imperialismo norte-americano e as potências imperialistas europeias com as quais quer selar acordos pelo Mercosul. De fato, Lula esteve com Biden em relação amistosa durante o G20. Mas, com a nova configuração dos BRICS sob liderança chinesa, o Brasil se encontra no interior de uma dinâmica de rivalidade direta entre Washington e Pequim, que terá de lidar no marco da sua política de “não alinhamento automático”.

Trata-se de uma localização nova para a América Latina. Naturalmente, não temos a entrada generalizada do subcontinente nos BRICS (apenas Brasil e Argentina, por ora, estariam no bloco), e a velha sina da múltipla dependência e do atraso das economias capitalistas regionais persiste. Entretanto, com a participação prevista de Brasil e Argentina tanto no G20 quanto nos BRICS, duas das principais economias latino-americanas participam, como membros geopoliticamente frágeis, de organismos que expressam hoje a competição entre as potências. Esse novo momento vem impregnado de contradições. Por exemplo, a Argentina, que foi admitida como novo membro, passa por eleições presidenciais. Javier Milei, representante da extrema direita, liderou os resultados nas eleições prévias de agosto. É um dos favoritos para chegar ao segundo turno, e é contrário ao Mercosul, prometeu implodir as relações com governos como o de Lula, e afirmou que “não teria relações com a China”. Para além das extravagâncias retóricas, uma Argentina sob Milei seria uma persona non grata no interior dos BRICS.

Enquanto a China estava ocupada nos BRICS, os Estados Unidos alentava o seu próprio novo bloco na Ásia-Pacífico, sendo Biden o anfitrião de uma cúpula em Camp David com os líderes do Japão e da Coreia do Sul, que concordaram em intensificar a cooperação com mísseis balísticos e estabelecer uma linha direta militar com o Pentágono. Mas onde Biden buscou mostrar sua força foi na Cúpula do G20 na Índia, que se seguiu aos BRICS. Xi Jinping e Vladimir Putin não participaram da reunião, aprofundando o sentido de “fissura” geopolítica. Biden aproveitou o momento para reunir muitos dos mesmos países envolvidos nos BRICS (como Brasil, Índia e África do Sul, assim como os ingressantes Argentina, Arábia Saudita e Emirados Árabes) para marcar a mensagem de “um só mundo” dirigido pelos Estados Unidos e aliados, contra a visão multipolar da China. Criticado por não estabelecer acordos econômicos com os ditos países emergentes, seduzidos pelas propostas chinesas, Biden estabeleceu uma Aliança Global de Biocombustíveis, e o chamado Corredor Econômico Índia-Oriente Médio-Europa, com a Índia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, além de França, Alemanha e Itália. Apesar desses avanços, o documento final da cúpula do G20 na Índia foi, do ponto de vista dos Estados Unidos, um retrocesso diante do conquistado na cúpula do G20 em Bali, na Indonésia , em dezembro de 2022. Ali, Biden havia conseguido, a contrapelo de muitos envolvidos, que o comunicado comum criticasse literalmente a “agressão” da Rússia na Ucrânia. No atual comunicado, foi retirada qualquer referência nominal à Rússia e qualquer condenação a Putin, uma postura sustentada por Modi, Lula, Ramaphosa, Salman e outros mandatários do chamado “Sul Global”. Essa foi a condição para que os Estados Unidos preservasse a moral de um aliado próximo (Índia) e para que o G20 não se mostrasse totalmente fraturado diante do triunfo chinês na África do Sul. Analistas já comentam que o G20 “se torna mais raso mesmo à medida em que se expande” (do ponto de vista de Washington, que não obstante precisa manter as rédeas sobre esses países).

Nesse contexto geopolítico, portanto, quanto maior a expansividade dos blocos, menos “exclusivos” eles se mostram. Trata-se de uma característica da etapa, ou seja, os blocos se convertem em “uniões de divergências” de acordo com os interesses particulares estratégicos de cada Estado, manobrando entre as dependências cruzadas que os atravessam. Não apenas os BRICS, mas o G20 também se mostrou divisivo em temas centrais, como a Guerra da Ucrânia, sendo parte das tendências à desagregação e à desordem mundial.

Esses distintos nacionalismos reunidos em cúpulas antagônicas, que poderiam ser sintetizados na ideia de “blocos das divergências”, é fruto da estrutura globalizante construída paulatinamente durante as últimas décadas, que com as restaurações capitalistas e suas contrarrevoluções democráticas foi capaz de rejuntar o mundo num tecido único das cadeias de valor neoliberais. Não é simples desentranhar esse emaranhado produtivo e as múltiplas dependências de cada país para, subitamente, dividir o mundo em blocos coesos. Essa é a principal dificuldade de Washington, mas também de Pequim. A etapa neoliberal incubou as contradições atuais, em especial o impulso à China capitalista que passou de ser um pacífico refúgio de investimentos produtivos para se converter em adversário estratégico dos Estados Unidos. Mas também impôs às potências em disputa uma série de cálculos cuidadosos para tentar evitar choques decisivos para os quais não estão ainda preparadas [8] . Os ritmos são decisivos para as definições políticas dos marxistas, e explicam porque não nos encontramos em uma “guerra imperialista” na Ucrânia (como define Jorge Altamira), ou em preparativos mais contundentes para uma eventual guerra dessa natureza. Ou seja, ao mesmo tempo em que as características de época (crises, guerras e revoluções) indubitavelmente se reatualizam com a Guerra da Ucrânia, as contratendências ao desenvolvimento dessas características devem ser levadas em conta, para que não se subestime a nova configuração, mais lenta e tortuosa, com que a etapa neoliberal em crise enquadrou o desenvolvimento dos dois fatores históricos fundamentais hoje: por um lado, o declínio hegemônico dos EUA, e por outro, a tortuosa ascensão da potência chinesa. Diante disso, o que é crucial é a batalha pela independência de classe e a construção de organizações revolucionárias a nível mundial.

Pela importância internacional da questão, assim como para nossa luta política no Brasil, apresentamos algumas das principais contradições do grupo. Em primeiro lugar, não existe um princípio coeso que fundamenta o objetivo dos BRICS. Xi Jinping e Vladimir Putin pressionam o bloco a atuar como uma oposição mais ou menos direta ao bloco liderado pelos Estados Unidos (G7) , e a China concebe que, quanto maior o PIB reunido nos BRICS, melhor sua posição na competição com as principais economias ocidentais para abocanhar nichos de acumulação. Já Brasil, Índia e África do Sul não subscrevem essa versão, não querem criar um opositor ao Ocidente, e inscrevem os BRICS dentro de sua estratégia de “não alinhamento automático”. As linhas divisórias são nebulosas.

Em segundo lugar, a expansão aumenta o caráter heterogêneo dos BRICS. Arábia Saudita e Irã concluíram um processo de reinício de relações diplomáticas com a mediação ativa da China, não dos Estados Unidos, mas o país saudita tem relações diretas com Washington, enquanto o Irã se aproximou de Pequim. A Índia participa do Quad, a arquitetura de segurança anti-chinesa na Ásia-Pacífico, dirigida pelos Estados Unidos, e tem inúmeros conflitos de fronteira com a China. O Egito depende estruturalmente dos Estados Unidos e se inscreve na estratégia de segurança de Washington, mas seu maior parceiro comercial é a China, caso também da Etiópia. Os Emirados Árabes tem uma relação histórica com os EUA, mas junto com a Índia se abstiveram da votação contra a Rússia na ONU em função da invasão da Ucrânia. A Argentina tem laços de dependência permanentes com o FMI, embora estreite cada vez mais relações com a China e use o renminbi para pagamentos de sua dívida externa. Em todos esses casos, as dependências cruzadas compõem um mosaico muito contraditório de países, sem uma linha unificada de ação, como os EUA conseguiram, ao menos temporariamente pela Guerra da Ucrânia, com a OTAN.

Em terceiro lugar, o uso das moedas dos países-membros nas negociações dos BRICS pode aumentar, mas o yuan está longe de competir com o dólar. Cerca de metade de todos os empréstimos internacionais, títulos de dívida internacional e faturas comerciais são denominados em dólares americanos, enquanto 60% das reservas globais de câmbio são em dólares. O yuan chinês continua a ter ganhos graduais e a participação do renminbi no volume de negócios global de câmbio aumentou de menos de 1% há 20 anos para mais de 7% atualmente. No entanto, a moeda chinesa ainda representa apenas 3% das reservas cambiais globais.

Em quarto lugar, ainda que o desafio dos BRICS seja limitado, claramente se inscreve em uma nova etapa, em que a luta pela partilha da mais-valia se intensificou. Michael Roberts afirma que “o bloco imperialista liderado pelos Estados Unidos segue sendo dominante, mas seu domínio está sendo questionado como nunca antes”. Essa sensação de conflito entre blocos aumentou desde a Guerra da Ucrânia, o que incrementa a ilusão, promovida pelo progressismo reformista e por diversos setores da tradição stalinista como o PCB (oficial, maioria do CC) e o próprio Jones Manoel (que assimila em grande medida as posições de Domenico Losurdo) , de que apoiar a China é o caminho para lutar contra os EUA.

Nossa luta política contra essas vertentes é muito importante, sem perder nunca o ângulo do anti-imperialismo. Em outras palavras, o desafio limitado que o clube dos BRICS pode representar para as grandes potências imperialistas não o torna um aliado dos povos oprimidos. Está composto por Estados capitalistas agressivos, com regimes bonapartistas e exploradores, que não representam nenhuma alternativa de "hegemonia positiva" na ordem internacional (muito menos um “auxílio a projetos revolucionários”, como diz Jones Manoel). É necessário romper com o imperialismo e suas instituições, mas sem substituir essa servidão por uma integração subordinada em blocos alternativos impulsionados pela China capitalista, que atua nas mesmas formas de pilhagem econômica. Somos socialistas revolucionários, e batalhamos pela destruição dos Estados capitalistas em todos os países dos BRICS, e na América Latina é impensável o aniquilamento da fragmentação regional por fora da instauração de uma Federação de Repúblicas Socialistas que expulse o imperialismo e sirva de alavanca para a revolução internacional.

2. Guerra da Ucrânia e disputa EUA-China

Todos esses fatores se retroalimentam. As consequências da guerra na Ucrânia, em particular o impacto das sanções econômicas; a inflação; e a crescente fragmentação ou tendência a blocos regionais como resultado da crise da globalização e das cadeias de suprimentos; acima de tudo, a disputa entre os Estados Unidos e a China: esses ingredientes se combinam para reatualizar os aspectos potencialmente mais disruptivos na economia.

O impasse da guerra segue firme, com a incapacidade do exército ucraniano ganhar terreno depois de meses da anunciada contra-ofensiva de verão. O novo componente na conjuntura foi a morte de Evguêni Prigozhin, o senhor da guerra líder do grupo Wagner, exatos dois meses depois de ter encabeçado uma insurreição militar - que foi cancelada a último minuto antes de chegar a Moscou - contra o governo Putin. O avião particular de Prigozhin, com outros sete líderes do Wagner, caiu em região próxima de Moscou. Não há muita dúvida de que não se tratou de um acidente, e sim de um assassinato comandado por Putin, que anunciou a morte do mercenário como “um homem de talento que cometeu erros”. O resultado imediato é a consolidação da autoridade e do poder pessoal bonapartista de Putin na Rússia, severamente abalado depois do motim, quando o Kremlin negociou a saída impune de Prigozhin para a Bielorrússia em troca do desarmamento dos soldados Wagner. Da mesma maneira, coloca na defensiva os planos da oposição de desafiar Putin pelas dificuldades que veio passando na Guerra da Ucrânia. Mais que nunca, o grupo Wagner fica nas mãos de Putin, que provavelmente alistará seus membros como soldados regulares do Exército, na região imediata do conflito, e na África - em que os mercenários representam os interesses de Moscou junto a inúmeras ditaduras, cometendo crimes de guerra nas zonas de confronto - delegará a direção a um preposto ligado ao seu governo. Sobre a Guerra da Ucrânia em si, o resultado da morte de Prigozhin significa que Zelensky não contará com a possível instabilidade interna russa para avançar em seus objetivos militares, sendo parte da estratégia de Putin aguardar o esgotamento da paciência ocidental pelo impasse, ou mesmo a possível eleição de Donald Trump em 2024, que tem posições filo-russas e prometeu “acabar com o conflito rapidamente”.

Como havíamos avançado na Conferência da FT , do ponto de vista tático se veio configurando uma “guerra de desgaste”, em que os bandos buscam deteriorar a moral alheia com a destruição gradual de forças e material bélico; do ponto de vista estratégico, os Estados Unidos busca esgotar a Rússia usando as tropas ucranianas, a fim de debilitar progressivamente o principal aliado da China em seu desafio geopolítico. Não retomaremos as definições objetivas, que permanecem atualizadas. O importante para pensar as perspectivas é que, com a consolidação de Putin e a reunificação do exército russo, após o expurgo de generais que participaram do motim (como Sergei Suróvikin, um dos principais comandantes da guerra), os cálculos da OTAN devem mudar, sendo menos provável uma derrota russa por desequilíbrios políticos domésticos (embora o exército russo tenha demonstrado todas as dificuldades para impor-se no terreno contra o armamento ocidental). Por ora, a política norte-americana continua a ser de apoio financeiro e militar à Ucrânia, incluindo o envio de caças F-16 da Noruega e dos países Bálticos, e das criminosas “bombas de fragmentação” que o Pentágono utilizou na Guerra do Vietnã. Entretanto, a instabilidade política nos EUA com a aproximação das eleições presidenciais pode alterar o panorama, e como escreve o The Wall Street Journal, levar a condução da guerra para um ano eleitoral é um risco para Biden , que já começa a tentar despejar na Ucrânia a responsabilidade pela falta de avanços, diante da política de Trump, protecionista e de não envolvimento em conflitos internacionais (em chave de extrema direita).

Efetivamente, a Guerra da Ucrânia fez explodir exponencialmente os gastos militares das grandes potências, ao patamar recorde de 2022, no valor total de US$ 2,240 trilhões (ver gráfico abaixo). Segundo os dados do SIPRI, os EUA gastou US$ 880 bilhões em defesa (incluindo envio de armamento à Ucrânia), e a China aumento seu orçamento de guerra pelo 28º ano consecutivo, atingindo quase US$ 300 bilhões. A região do mundo em que os gastos de defesa mais aumentaram foi a Europa, com os enormes custos do conflito para Rússia e Ucrânia, e o programa de rearmamento imperialista de países como Alemanha (100 bilhões de euros às Forças Armadas), França, Inglaterra e Espanha. Trata-se de um combate frontal nosso contra a remilitarização das potências e também da China, o que golpeia em cheio a fábula da “ascensão pacífica” (de que falaremos abaixo). Para além do incrível montante de armamento sendo produzido, as mesmas potências que falam em “preservar a paz” levam adiante exercícios militares de natureza histórica. China e Rússia trabalham em conjunto em exercícios navais no Mar do Japão, enquanto a OTAN prometeu realizar em 2024 os maiores exercícios militares desde a Guerra Fria , com 40 mil soldados através da Alemanha, da Polônia e do Báltico.

Para pensar a política marxista, é necessário definir a natureza de classe do conflito (seus fundamentos sociais) e quais os interesses das classes dominantes que, direta ou indiretamente, utilizam a guerra para avançar seus interesses estatais particulares. Indispensável para isso é partir da afirmação do general prussiano Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”, assimilada criticamente por todos os grandes teóricos marxistas do século XX, como Lênin e Trótski. Qual a política prévia das potências, continuada pela guerra por cada uma delas? A política dos EUA e das potências imperialistas ocidentais, que está sendo continuada na guerra na Ucrânia, é a política imperialista de “cercar” a Rússia por meio da expansão da OTAN para o Leste, sem chegar a um confronto militar direto, usando as tropas ucranianas como “bucha de canhão”. A política que Putin continua através da invasão da Ucrânia é a de recriar um status de potência militar para a Rússia, apoiando-se na opressão nacional dos povos vizinhos, uma herança do tsarismo e do stalinismo. Já a política que a China sustenta dentro da Guerra da Ucrânia, através da Rússia, é o questionamento à ordem global unipolar hegemonizada por Washington, em busca de melhor posicionar seu agressivo capitalismo dentro do atual sistema de Estados, em especial na Ásia, em que militariza o Mar do Sul da China, assedia Taiwan e avança sobre as nações da Ásia Central previamente influenciadas pela Rússia. Nossa política na FT desde o início do conflito é de oposição total a esta guerra reacionária, exigindo a imediata retirada das tropas russas da Ucrânia, a expulsão da OTAN da Europa do Leste, denunciando a política de rearmamento imperialista, e defendendo a unidade da classe trabalhadora internacional por uma política independente na Ucrânia, que enfrente a ocupação russa e a dominação imperialista lutando por uma Ucrânia operária e socialista. É por isso que, contra qualquer posicionamento por trás de um dos “campos” reacionários em disputa e contra as ilusões em uma solução de “paz” capitalista, seja ela vinda da Europa, da China ou de qualquer outra potência, a questão é formar um polo contra a guerra na Ucrânia com uma política independente dos trabalhadores. Dentro da estratégia que propunha Lênin diante dessa natureza de conflagração militar, é útil lembrar as balizas que estabelecia em agosto de 1915, em seu “O socialismo e a guerra”: “Em tempos de guerra reacionária, uma classe revolucionária não pode deixar de desejar a derrota de seu governo, e não pode deixar de ver que os fracassos militares de ‘seu’ governo facilitam a sua derrubada”. Embora de abrangência substancialmente distinta da Primeira Guerra Mundial, o decisivo é a qualidade real do conflito: na Ucrânia, uma posição de independência de classe, e que defenda a única verdadeira luta pela soberania do povo ucraniano, depende da derrota de todos os bandos (incluindo Zelensky), na forma de uma Ucrânia operária e socialista, que seja o ponto de partida para uma Federação de Repúblicas Socialistas em toda a Europa.

Nós do MRT já havíamos debatido frontalmente múltiplas vezes contra a posição morenista de organizações como o PSTU e a CST , cuja política se termina se enquadrando no “campo” da OTAN e do imperialismo norte-americano. Também fizemos polêmica contra as duas alas do PCB em crise, quer seja a vinculada à Rússia (ala majoritária do CC) ou a que tem esperanças na China como Jones Manoel em especial. Com efeito, o debate crítico à tese da “multilateralidade benigna” encabeçada pelo capitalismo chinês, como suposto contraponto ao imperialismo norte-americano, se torna uma questão cada vez mais importante para incluirmos na nossa luta de tendências, e por isso é importante esclarecer.

Há uma corrente de pensamento - informada pelas teses de Giovanni Arrighi em seu livro Adam Smith em Pequim, e outros autores do chamado "sistema-mundo", como Immanuel Wallerstein - que considera que o crescimento da China seria benéfico para o mundo, e a oposição de uma espécie de "ordem multipolar" à unipolaridade do domínio dos Estados Unidos seria a melhor maneira de diminuir as tendências militaristas e enfrentar o imperialismo norte-americano (no caso de Arrighi, sob o argumento de que a China teve uma tradição milenar "antimilitarista", e que poderia emergir pacificamente como novo hegemon, sem impor sua vontade pela força). Para além de suas diferenças internas, identificam essa ideia geral sob a tese da “multilateralidade benigna”. Trata-se de uma visão alimentada pelo progressismo reformista e pelo stalinismo, que enxerga o mundo através do prisma exclusivo e restrito da geopolítica (eliminando a luta de classes como fator decisivo que determina a geopolítica e a economia), e que tem sustentação teórica na substituição da luta de classes pela luta entre Estados como motor da história. Essa concepção mais geral de pensar a política internacional pelo ângulo da geopolítica da tradição stalinista perpassa inclusive a concepção daquelas correntes que não exaltam a China e Rússia como Estados benignos e caracterizam como imperialista, como é o caso da UP.

Nossa militância precisa estar bem armada sobre esse tema, em seus fundamentos essenciais. O modelo de exploração capitalista chinês não possui qualquer relação com “experimentos socialistas”. Para além de suas empresas privadas cada vez mais poderosas (que se enriquecem na década de Xi Jinping), a atuação dos grandes monopólios de Estado da China se dá segundo as leis de mercado do capitalismo global. Não se poderia imaginar no século XXI a exploração do trabalho em diversos segmentos da produção energética, agrícola e mineral sem a participação do capital chinês, como se pode ver nos acordos financeiros e comerciais que realiza em troca de acesso privilegiado à pilhagem de matérias-primas, como lítio, cobre e petróleo; nos intercâmbios de créditos por direitos de exploração de recursos na África e na América Latina; e na sua incipiente vocação política de buscar ser um fator nas decisões internas em alguns países da periferia capitalista (como com Irã e Arábia Saudita, com o Afeganistão, com o Zimbábue, a África do Sul, etc.), através de projetos como a Nova Rota da Seda, que para alguns autores, como Nadège Rolland, é utilizado pela China como forma de explorar o trabalho de países de capitalismo atrasado da mesma maneira como o Ocidente havia explorado o trabalho chinês nas últimas quatro décadas, transformando continentes como a África em plataformas de mão de obra barata. Por exemplo, a Congo Dongfang International Mining (CDM), associada à chinesa Zhejiang Huayou Cobalt, exporta 90% do cromo da República Democrática do Congo, material essencial para a fabricação de telefones celulares, GPS e satélites. Cerca de 100.000 mineiros, 40% são crianças, trabalham sob o comando de capatazes chineses em condições de superexploração. Organismos de direitos trabalhistas denunciaram o tráfico de trabalhadores de Taiwan, da Malásia, da própria China e de outros países do sudeste asiático, para trabalhar em países preferenciais das obras da Nova Rota da Seda, como o Camboja [9] . Ao contrário de representar uma “continuidade da luta anticolonial”, como escreve Domenico Losurdo, a ascensão da China replica muitas das características marcantes da exploração colonial das potências ocidentais. Tudo isso confere traços imperialistas cada vez mais marcantes ao capital chinês, que passou da condição de receptor virtual unilateral de investimento dos monopólios imperialistas para a condição de competidor por nichos de acumulação de capital a nível global. Trata-se de uma continuidade da política do Partido Comunista que restaurou o capitalismo na China.

Tudo isso tem expressão no terreno militar, e na expansão das tendências militaristas do contexto internacional. A modernização de suas Forças Armadas, dentro da disputa industrial-tecnológica com os Estados Unidos, gera tensões cada vez maiores, e resulta num movimento de “militarização compartilhada” do Mar do Sul da China, em que as provocações de Washington buscando converter Taiwan numa espécie de “protetorado” são respondidas por movimentos crescentemente agressivos do governo chinês. Enquanto os Estados Unidos realiza os maiores exercícios militares conjuntos com as Filipinas, a China realiza junto à Rússia exercícios navais de grande escala, desde o Mar do Japão até o Golfo de Omã (incorporando o Irã). O desenvolvimento de mísseis hipersônicos e a produção do terceiro porta-aviões (com paridade tecnológica aos Estados Unidos) confere pouca credibilidade à ideia da “ascensão pacífica” de Arrighi. Dentro da voragem pela preeminência das potências na região da Ásia-Pacífico, a China buscará traduzir seu poderio econômico em presença militar. O poder projetado pela China não tem nada a ver com “uma integração global não-militarista”, e denota tendências à luta por hegemonia no horizonte histórico, diante de cujo fortalecimento qualquer paralelo mecânico com “tradições dinásticas não hegemônicas” são anti-históricas e, portanto, anti-científicas.

A China aprimorou sua parceria política e econômica com a Rússia, a quem apoia indiretamente na Guerra da Ucrânia (o que torna ainda mais difícil o argumento do “antimilitarismo chinês”). O comércio total da China com a Rússia nos primeiros sete meses deste ano aumentou 36% em relação ao mesmo período do ano anterior, chegando a US$ 134 bilhões. Mesmo partindo de um patamar baixo, o investimento chinês na Rússia aumentou 150% em 2022. Com uma economia 10 vezes maior que a da Rússia , a China aproveita as sanções econômicas para comprar petróleo e gás natural a preços mais baixos (aumento de 45% e 54% respectivamente em 2022). Na África, a China e a Rússia disputam presença no continente contra as potências imperialistas como a França, Reino Unido e Estados Unidos, como vemos em Níger e nos países do “corredor do golpe” (Mali, Burkina Faso, Chade, Sudão, etc.). O último encontro de Xi Jinping com Putin, em maio, selou uma relação estratégica que, em meio a contradições, possui o objetivo de frear o cerco oriental dos Estados Unidos na Ásia.

Essa imagem projeta a falsa impressão de que estaríamos diante de um bloco “anti-imperialista” em formação, agora sustentado nos BRICS. Efetivamente, a China não busca destruir as instituições de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial e a ONU), mas reformá-las, aumentando seu peso e o de seus aliados dentre deles. Embora questione a ordenação dos Estados herdada da globalização neoliberal, a China não é um fator disruptivo dessa mesma ordem. Quer simplesmente melhorar sua posição dentro dela. É uma importante batalha política e ideológica dos marxistas revolucionários construir um pólo classista e internacionalista proletário no movimento de massas que rejeite categoricamente essa noção. A luta contra o imperialismo dos Estados Unidos – assim como contra a Alemanha, a França, a Inglaterra e demais potências europeias – não pode ser feita situando-se no “campo” da China (ou da Rússia). Uma política de independência de classe deve unificar a classe trabalhadora e os povos oprimidos contra o conjunto dos blocos de Estados capitalistas.

3. Luta de classes e a batalha política para o avanço da FT

Em uma nota sobre o internacionalismo de Lênin, Trótski diz que: "Nenhuma questão importante pode ser confinada em uma estrutura nacional. Em sua apreciação dos fatores e forças internacionais, Lênin era mais livre do que as pessoas imbuídas de preconceitos nacionais." Trótski completa esse pensamento com a ideia de que "o mundo era para Lênin um único campo de batalha no qual os diferentes povos e classes travam uma guerra gigantesca entre si". Partindo desse campo de batalha mundial, é que nós do MRT organizamos a nossa atuação no Brasil em conexão íntima com a intervenção internacional da FT, na batalha pela reconstrução da IV Internacional.

Do ponto de vista da política internacional, como escreve Josefina Martínez , a última década viu o fracasso da hipótese "populista de esquerda" ou neorreformista, e a experiência de formações políticas de ultradireita, inspiradas em Donald Trump, que tiveram destino heterogêneo. O Podemos teve péssimos resultados nas últimas eleições regionais, o que culminou na aposentadoria de Pablo Iglesias. Depois de ter se apresentado com um discurso “nem de direita, nem de esquerda” e propagandeado uma suposta política anti-casta, a deriva do Podemos resultou em sua integração ao regime político como uma nova casta de esquerda: jurou fidelidade à monarquia, recusou-se a defender o direito do povo catalão à autodeterminação e acabou co-governando com o PSOE, um pilar do regime político do imperialismo espanhol. Na Grécia, o Syriza perdeu as eleições nacionais para a direita tradicional do Nova Democracia, em janeiro de 2023, ficando 23% atrás e diminuindo consideravelmente sua presença parlamentar. Se a chegada do Syriza ao poder em 2015 havia elevado esperanças sobre um "governo de esquerda antineoliberal", a sua rápida passagem à aplicação dos ajustes impostos pela Alemanha e o Banco Central Europeu fez girar o cenário à direita, desviando o ascenso de 2012 e tornando irreconhecível a situação frente a uma década atrás. Teve participação central nisso o Partido Comunista Grego, que como explicamos aqui , participou diretamente através da burocracia sindical da PAME na contenção da possibilidade da frente única operária que poderia derrotar os ajustes e levar adiante o massivo voto rechaço da população ao plano da Troika, auxiliando a recomposição do regime (algo que contrasta com seu discurso político "radical"). Setores da esquerda brasileira, como o MES e o Resistência, cederam a toda a campanha de embelezamento do Podemos-Syriza, sem qualquer balanço sério. Em Portugal, o Bloco de Esquerda, depois de apoiar "por fora" um governo do Partido Socialista social-liberal, acabou retrocedendo eleitoralmente, enquanto a extrema direita do partido Chega! crescia.

Em todas as suas experiências, o neorreformismo mostrou o equívoco da "hipótese populista" de autores como Chantal Mouffe. Ao contrário de construir uma "linha divisória entre o povo e as oligarquias", reduzindo o conteúdo anti-establishment a um discurso afastado da luta de classes e da independência do Estado, essas experiências neorreformistas se integraram à casta política, favorecendo a recomposição de regimes políticos e adotando medidas em favor do sistema burguês existente. O DSA norte-americano não escapa dessa definição, embora não tenha tido experiência de governo como o Syriza e o Podemos. Colaborou para o desvio da insatisfação de setores de vanguarda da Geração U, da juventude e do movimento de mulheres para o interior do bipartidarismo imperialista (obstaculizando a construção de partido socialista independente, inclusive sendo parte integrante do Partido Democrata). As formações políticas que se inspiram no neorreformismo, como o NPA na França (em crise paralisante após a divisão interna, e cuja direção majoritária fica cada vez mais agarrada a Jean-Luc Mélenchon) e o PSOL no Brasil (ainda pior que o NPA, por ser parte do governo Lula-Alckmin e apoiar ajustes neoliberais como o Arcabouço Fiscal), contribuem para a reciclagem do ecossistema dos regimes burgueses em crise.

Nesse contexto, nos últimos anos, o descontentamento foi capitalizado pela extrema direita de forma reacionária. As formações populistas, nacionalistas e xenófobas de direita surgiram em meio a um clima de crise social, de declínio dos partidos tradicionais e de colapso nas condições de vida de grandes setores da população. Seus discursos, com uma retórica mais ou menos radical contra o establishment e a "casta política", encontram eco nos setores descontentes, buscando canalizar o descontentamento dos "perdedores da globalização", sejam eles da classe média ou trabalhadora, para canais reacionários. Temos de avaliar o crescimento de Milei na Argentina em base a isso, assim como a possibilidade de Trump concorrer com força nos Estados Unidos (embora já se tenha feito uma experiência com sua política, e esteja envolvido em múltiplos inquéritos judiciais).

Como em outros países, a subordinação das forças de esquerda neorreformistas aos governos social-liberais abriu caminho para a direita. Esse fracasso da “hipótese populista de esquerda”, com a catástrofe dos neorreformismos, tentou ser instrumentalizado por alas do stalinismo, que em alguns países (com situações políticas heterogêneas) passaram a desenvolver um discurso “radical”, sempre dentro de derivações da tradição stalinista de colaboração com os regimes políticos constituídos e contra os direitos sociais dos setores oprimidos (como o próprio PC Grego, a UP no Brasil, o PCTE espanhol, etc.). Vimos no Brasil e no mundo os muitos limites que esse momento teve. Ao mesmo tempo, esse fim de ciclo da “hipótese populista de esquerda” não implica o desaparecimento de ilusões ou esperanças em setores importantes sobre os quais atuamos e que queremos influenciar para as ideias do trotskismo. Toda a esquerda que capitulou ao Syriza e ao Podemos (que agora está com Mélenchon) busca esconder qualquer balanço autocrítico. Como fizemos na FT com inúmeros materiais de balanço de cada um desses processos, buscamos discutir amplamente o resultado desses fenômenos a fim de conquistar influência, tirar conclusões e generalizações teóricas que nos ajudem a forjar uma tradição na esquerda que não queira repetir esses desastres.

A luta de classes foi uma presença forte no primeiro semestre de 2023, fruto das consequências da Guerra da Ucrânia e da alta da inflação, na Europa, e das consequências do extrativismo e das políticas de caráter golpista das burguesias, como na América Latina. A França foi o coração da luta de classes mundial nesse momento, com a luta contra a reforma da previdência (em que nossos camaradas do Révolution Permanente desempenharam um papel bastante destacado, e puderam capitalizar em construção de partido com a crise do NPA), tendo posteriormente se aberto a rebelião dos bairros populares e jovens mais precarizados em repúdio ao assassinato policial de Nähel. Mas não apenas a França exibiu processos de luta; a Europa viveu uma primavera de greves de descontentamento. Na Inglaterra, vimos a maior onda grevística em mais de 50 anos, tendo na vanguarda os trabalhadores do setor de transportes (como os ferroviários) e os trabalhadores da saúde, que através de sua greve venceram um novo contrato coletivo arrancado da administração do National Health System (NHS), sob a tutela dos Conservadores britânicos. Na Grécia, houve múltiplas jornadas de paralisação nacional do movimento operário em repúdio aos efeitos da privatização no setor ferroviário. Na Alemanha, os trabalhadores ferroviários encabeçaram a maior greve do setor de transportes e do serviço público desde o início da década de 1990, assim como em Portugal professores, ferroviários e setores da saúde também orquestraram uma greve histórica. Esses combates evidenciaram os setores mais golpeados pela pandemia, que viram sua função essencial na economia. Na América Latina vimos a grande luta, esgotada finalmente pela impotência do movimento, dos povos originários e trabalhadores rurais contra o golpe de Estado de Dina Boluarte.

Essas são mostras de que a luta de classes é um fator latente da situação, independentemente do relativo refluxo. Especialmente na Europa e nos Estados Unidos, vemos uma maior centralidade da classe operária nos processos de luta, em que setores do movimento de massa tendem a se radicalizar diante do endurecimento dos governos capitalistas e das classes dominantes. Nos Estados Unidos, apesar da conjuntura política começar a saturar-se pelo início da campanha presidencial - decisiva para os planos do imperialismo norte-americano diante da possibilidade de retorno de Trump à Casa Branca - os trabalhadores deixam a sua marca. Os operários automotrizes da Ford, da General Motors e da Stellantis (as maiores empresas automotrizes de Detroit) votaram greve, estando a base de 150 mil trabalhadores representados pelo sindicato UAW (United Auto Workers), numa das greves mais importantes das últimas décadas, que pode ter impacto decisivo sobre o panorama político (obrigando Biden a se posicionar abertamente, uma vez que depende dos votos operários do Meio-Oeste). Os trabalhadores de Hollywood fizeram a mais forte greve em 60 anos, e os motoristas e trabalhadores dos galpões da multinacional logística UPS (que representa 6% do PIB nacional) obtiveram a proposta de um novo contrato coletivo com melhorias depois de ameaçarem fazer uma greve que seria sentida em todo o mundo.

Isso reflete a gradual recomposição da subjetividade da classe trabalhadora norte-americana, em especial a nova geração de jovens sem perspectiva de bons empregos (a Geração U, que batalha por seus direitos de sindicalização na Amazon, na Starbucks, etc.), mas também de trabalhadores que não pertencem especificamente a essa faixa etária, que possuem mais de 30 anos e que foram inspirados pelos processos de juventude e a batalha do Black Lives Matter em 2020. O maior obstáculo segue sendo o Partido Democrata, que rapidamente conseguiu absorver em sua estrutura a direção sindical formada logo após o êxito da sindicalização dos trabalhadores da Amazon em Nova York, e que conseguiu conter rupturas à esquerda no governo Biden pela relativa melhoria econômica e pela integração completa de Bernie Sanders, Ocasio-Cortez e vários membros do Squad ao governo (cumpre aí um importante trabalho auxiliar a direção do DSA, a maior organização de esquerda reformista nos EUA, integrada aos Democratas).

Mas há setores descontentes com esse caminho, que estão fazendo uma experiência gradual com o governo Biden, e que passam a vislumbrar (a nível de uma pequena vanguarda) a possibilidade de organizar-se de maneira independente. É o que nossos companheiros do Left Voice identificaram através dos contatos com algumas regionais do DSA, como o chamado Red Caucus em Rhode Island, que propôs abertamente um partido socialista dos trabalhadores separado dos Democratas. Ou seja, abre-se uma possibilidade de diálogo dos trotskistas com grupos críticos no interior do DSA sobre a nossa perspectiva de construção de uma organização socialista dos trabalhadores, que defenda um projeto revolucionário e anti-imperialista, totalmente independente do Partido Democrata, algo que sintetizamos no Manifesto do Left Voice , referendado no seu I Congresso. Buscamos aproveitar esse momento para discutir audazmente esse projeto político com setores de vanguarda, junto à atuação no movimento operário, tentando aproveitar tanto o fenômeno ideológico do socialismo (que continua nos EUA, e que buscará ser canalizado por alternativas reformistas como Cornell West) e o fenômeno no movimento operário através da Geração U.

Nosso internacionalismo não é, como dizia Trótski, meramente contemplativo, de apoio “moral” às lutas em todos mundo, e sim um internacionalismo de combate, fundado cientificamente na necessidade de abolir as fronteiras nacionais para reunificar as forças produtivas de todo o mundo, sem o qual é impossível reorganizar a sociedade sobre novas bases. Para isso, é indispensável o desenvolvimento de correntes e partidos revolucionários a nível nacional, e a reconstrução de um partido mundial da revolução socialista, que para nós é a IV Internacional. Por isso, sempre debatemos, em diálogo e luta política com outras tendências oriundas do centrismo e também dos movimentos sociais em que se agrupa a vanguarda dos trabalhadores e da juventude, as possibilidades a explorar a fim de avançar nessa construção, fundindo o marxismo revolucionário com o melhor que possa dar esses processos de intervenção na luta de classes. A atuação concreta dos trotskistas na luta de classes é decisiva para esse desenlace. Do ponto de vista da atuação da FT, o primeiro semestre, que nos possibilitou atuar na luta de classes no Peru, contra o golpe de Estado de Dina Boluarte (com o envio de delegações de vários grupos da FT), ficou marcado pela grande intervenção do nosso grupo irmão na França, o Révolution Permanente, na batalha contra a reforma da previdência de Macron. A energia da FT foi dedicada a pensar junto com os camaradas da França como avançar a construção de partido e de frações revolucionárias no movimento de massas. Fizemos inúmeros debates, artigos, entrevistas, para aproveitar ao máximo esse momento no Brasil e na seções nacionais da nossa agrupação internacional. Na sessão virtual da Conferência da FT, havíamos enfatizado a discussão da França como centro de gravidade da luta de classes mundial, debatendo na ocasião o importante avanço do Révolution Permanente, o grupo mais dinâmico em crescimento militante da FT hoje, conquistando um espaço novo na extrema esquerda francesa. Discutimos como, a partir das tarefas preparatórias de acumulação inicial de quadros e dirigentes, melhoramos as condições para aproveitar de maneira inédita, na história da extrema esquerda francesa, a crise do mandelismo (NPA) e da Lutte Ouvrière (Luta Operária) para erguer as bandeiras do nosso trotskismo, o da auto-organização e da hegemonia operária. A situação conjuntural da luta de classes na França mudou de lá para cá, com a derrota da luta contra a reforma da previdência. Mas, como esclarecemos, passamos por uma longa etapa de elementos pré-revolucionários na França, o que habilita a hipótese de batalhar por um partido revolucionário dos trabalhadores, em base à experiência concreta da vanguarda operária e estudantil com o Estado, o neorreformismo mélenchonista e a própria crise do NPA. Devemos acompanhar com atenção a evolução do RP, que acabou de passar por uma muito exitosa Escola de Verão (com mais de 750 jovens e trabalhadores, incluindo muitos companheiros interessados em agrupar-se partidariamente com o RP), que foi o maior evento dessa natureza na extrema esquerda francesa.

O RP provou durante a luta contra a reforma da previdência que grupos com algumas centenas de militantes, e com uma política correta, podem desempenhar um papel em reorganizar a vanguarda e dar saltos de influência política e de construção. Com efeito, o avanço de nossos grupos europeus da FT, com as Escolas de Verão que na França, Alemanha e Estado espanhol conseguiram reunir mais de 1000 jovens e trabalhadores, expressa que há uma vanguarda nova interessada em conhecer e militar politicamente com as ideias da revolução, o que começa a permitir cavar um espaço significativo no novo mapa da extrema esquerda de países imperialistas centrais.

Agora, o processo político mais importante que atravessa a FT está na Argentina, com a batalha eleitoral nacional. Na Argentina, temos no PTS a organização mais numerosa e com maior experiência na FT, e estamos passando por um importante processo das eleições presidenciais, com o fenômeno de Milei nas primárias e o desafio de opor uma força anticapitalista e socialista ao sentido do “mal menor” que o peronismo tenta instalar (e que já conquista a simpatia de organizações da esquerda reformista no Brasil). Myriam Bregman e Nicolás del Caño representarão toda a esquerda nas eleições presidenciais, depois de vencer por 70% a 30% a chapa do PO-MST dentro da FITU. Será a única força política que combaterá o ajuste e a repressão, e se enfrentará decisivamente cestabiontra a extrema direita de Milei.

Como está discutido em vários materiais que publicamos, em entrevistas como aqui e aqui , Milei surpreendeu as expectativas com seu resultado, venceu em 16 províncias, liderando individualmente os votos conquistados com 7 milhões (ainda que no marco de um “triplo empate” quando se leva em consideração a votação nas coalizões políticas principais da burguesia). Como escreveu Fernando Rosso em ElDiplo, os resultados expressam um mal-estar pelas péssimas condições sociais dos últimos anos (seja no governo de Cristina Kirchner, seja no governo Macri, e agora Alberto Fernández); um questionamento às falsas promessas do Estado “de bem-estar” (que não existe para a esmagadora maioria da população, destituída de direitos sociais e trabalhistas, especialmente a juventude); um repúdio à ótica do “neoliberalismo progressista”, ou seja, um discurso de direitos sociais, de um lado, e ajuste econômico antipopular, de outro; a conexão de uma visão de mundo individualista e meritocrática que se identifica com a forma como os “autônomos” vivem (auto-exploração sem direitos para poder sobreviver); e uma eleição corrida à direita pelos grandes meios de imprensa, que construíram paulatinamente a figura de Milei. Tudo isso se combina para vermos os resultados do mal-estar social. Ou seja, existe apoio ideológico de uma fração mais à direita, e ilusões de outra fração de votantes, mas há de fato uma alta carga de “partidismo negativo” (“voto contra o outro, mais do que a favor de alguém”) combinando um componente de “voto rechaço” ao desastre econômico legado pelas duas coalizões principais (peronismo-kirchnerismo, e o macrismo), e também ilusões sobre as falsas soluções liberais à inflação, ao desemprego e aos problemas mais sentidos da população.

Por isso, seu voto não é homogêneo, nem tem identidade exclusivamente ideológica. Esse é um limite para o ultraliberalismo de Milei, já que boa parte de seus votantes na juventude precária, ou em setores empobrecidos, não tem como objetivo piorar os serviços públicos, as condições de trabalho, etc. Milei é parte de uma extrema direita populista eleitoral, que não constitui um fenômeno de “bandas fascistas” (ou neofascistas, como quer Arcary); ou seja, há elementos protofascistas no interior de seu movimento, mas esse não é a característica fundante da sua atividade. Do ponto de vista dos fenômenos internacionais, há muitos pontos de contato com Trump e Bolsonaro, mas as semelhanças se inscrevem no marco das importantes divergências nos fundamentos que os explicam. Bolsonaro é inseparável do enorme operativo político-judicial da Lava Jato e do golpe institucional de 2016, a manipulação autoritária das eleições de 2018, a proscrição e a prisão arbitrária de Lula, no marco de uma muito forte campanha da grande imprensa contra a esquerda e o comunismo. Milei emerge não fruto de um golpe institucional, e sim como alternativa eleitoral diante do fracasso do establishment da “hegemonia impossível” das duas coalizões. Bolsonaro emergiu fruto do derretimento da direita tradicional (PSDB), enquanto Milei emerge com uma direita tradicional muito forte (Juntos por el Cambio). Além disso, Milei não tem as relações de Bolsonaro com as Forças Armadas, que na Argentina são muito desprestigiadas pelo papel na ditadura e a luta da esquerda. Trump, por sua vez, assumiu o controle de um dos maiores partidos consolidados do imperialismo, o Partido Republicano, enquanto Milei não possui uma estrutura partidária consolidada, nem está por dentro de formações que compõem o Juntos por el Cambio (direita liberal) ou o peronismo (Unión por la Pátria). Os maiores perdedores foram as duas coalizões tradicionais, em primeiro lugar Sérgio Massa, mas também a direita de Patricia Bullrich, todos perdendo base eleitoral para Milei.

Por outro lado, há um dado importante por parte daquela base votante que rechaçou pela esquerda toda a ideologia ultraliberal de Milei e o ajuste econômico de Massa. Tomando os votos da Frente de Esquerda, os da esquerda que ficou de fora das eleições gerais, e os votos em Juan Grabois (figura reformista “de esquerda” que Cristina Kirchner colocou para disputar as internas do Unión por la Patria com Massa, a fim de conter a perda de votantes pela esquerda), temos quase 10% dos votos. Isso dá ⅓ dos votos em Milei, metade dos votos de Massa, mais da metade dos votos de Bullrich. Há nisso uma contratendência pela esquerda ao panorama político de direitização, cujos resultados estão em aberto. É muito importante frisar a “manobra Grabois” por parte do kirchnerismo. Grabois, uma espécie de “neorreformismo” dentro do kirchnerismo, foi colocado na disputa interna do peronismo pelo receio que tinham de não poder conter a sangria de votos que poderia ter migrado para a Frente de Esquerda, em função do rechaço a Massa, um ajustador neoliberal ligado aos Estados Unidos e que pactuou a subordinação ao FMI. Grabois não estará nas eleições gerais. Isso abre um terreno importante de disputa para a FITU, apostando no rechaço à política peronista que abre caminho a Milei. O panorama mais provável é que a enorme pressão pelo “mal menor anti-Milei” contenha a sangria de votos, mas não está descartado que haja um aumento da influência política da FITU, como também reconhecem analistas como Breno Altman.

É nessas condições que estamos realizando uma luta preparatória fundamental para aumentar a influência política da esquerda revolucionária sobre setores de massas, não só através de uma grande agitação política "desde cima", em que dezenas de dirigentes nacionais e provinciais do PTS, que foram protagonistas de muitas lutas e experiências, atuam como tribunos do povo buscando influenciar os setores mais avançados com aspectos de nosso programa e estratégia, com uma política hegemônica, mas avançando em uma construção partidária orientada para as estruturas estratégicas da classe trabalhadora e do movimento estudantil, com as assembleias do PTS e os agrupamentos, para, como um todo, ampliar nossa capacidade de articular "volumes de forças" na luta de classes. Queremos aproveitar cada oportunidade na realidade para ir destacando consignas específicas que golpeiem o imaginário, como a questão do aumento emergencial para assalariados e aposentados diante da inflação, abrir os registros contábeis das grandes empresas alimentícias e supermercados para acabar com a especulação dos preços (ligado à expropriação dessas empresas), abolição dos aumentos nas tarifas básicas de serviços, a redução da jornada de trabalho a 6h sem redução salarial, a consigna democrático-radical de que todo política receba o mesmo salário de uma professora; tudo isso encadeado com um programa operário de emergência que levanta a necessidade de que as centrais sindicais (CGT e CTA) construam de imediato um plano de luta nas ruas e uma paralisação nacional para enfrentar a crise.

4. Conclusão

É desse ponto de vista que buscamos intervir em um cenário mais convulsivo internacionalmente. Aprofundam-se as tendências que indicam que entramos num período de fim da ilusão de um “mundo globalizado harmonicista”, em que haveria disputas de interesses que poderiam contornar os marcos principais de época (crises, guerras e grandes processos de luta que podem dar origem a processos revolucionários). As crises já se acumulam em muitos âmbitos para além do econômico, envolvendo a geopolítica e inclusive a importante crise ambiental. A velha visão que prognosticava a ausência de conflitos armados pelos “interesses capitalistas compartilhados” naufragou com a invasão à Ucrânia. Ainda que longe de ser uma espécie de “terceira guerra mundial” não declarada, ou “guerra inter-imperialista por procuração”, a guerra na Ucrânia já recoloca no horizonte os distintos militarismos e os objetivos armamentistas de cada potência, prognosticando tensões muito mais graves do que aquelas que vimos até então. As principais coordenadas da política global não caminharão de maneira evolutiva: as contradições entre as distintas partes da economia, entre os Estados nacionais e entre as classes sociais se moverão por giros mais frequentes e bruscos, por fora do “evolutivismo” sobre o qual teorizam distintos ideólogos da burguesia.

O internacionalismo de combate dos marxistas está vinculado à compreensão desses fatores estratégicos da política mundial, do acirramento das contradições mundiais, para qualificar a batalha pela reconstrução de partidos revolucionários a nível nacional e internacional. O objetivo de impedir a barbárie da decadência capitalista exige um programa anti-imperialista e contra os bonapartismos capitalistas capaz de unificar as fileiras dos trabalhadores a nível internacional. Trótski afirmava que “na época atual, em uma medida muito maior que anteriormente, a orientação nacional do proletariado pode e deve emanar da orientação mundial, e não o contrário”. É com essa perspectiva que nós da Fração Trotskista estamos nos preparando para intervir no panorama mundial muito mais conflituoso e complexo, como parte da batalha pela reconstrução da IV Internacional como contraponto ao mito de que o destino da classe trabalhadora e dos povos oprimidos poderia se beneficiar da multipolaridade dos Estados capitalistas em conflito.


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FOOTNOTES

[1Trata-se da mais importante empresa do ramo imobiliário na China, muito maior que a Evergrande, cuja crise já havia sido o estopim da decadência do motor da construção civil na China.

[2O consumo de proteína animal cresce em sociedades que se percebem como mais ricas, que é o caso da China; a desaceleração econômica chinesa, entretanto, com seus efeitos de empobrecimento, pode diminuir a demanda desse item (que impacta a Argentina também). Soja e milho são importados para fins de criação animal na China, especialmente suínos: nesse quesito, é possível que não haja tantos efeitos negativos, porque o governo chinês é obrigado a garantir a sustentação do consumo alimentar básico da população mais pobre, e deverá seguir importando (Brasil compete nesse terreno com Estados Unidos e Argentina). Quanto ao petróleo, existe um desequilíbrio mundial em função da Guerra da Ucrânia, com a modificação dos padrões estabelecidos de oferta e demanda entre os países: embora a demanda chinesa tenha permanecido, a estrutura de oferta mudou. A China passou a importar muito mais petróleo a preços reduzidos da Rússia, que precisou incrementar as vendas à China para compensar relativamente as perdas com as sanções ocidentais. Já o minério de ferro exportado pelo Brasil à China tinha como destino justamente as aparentemente inesgotáveis obras de construção imobiliária e também as iniciativas governamentais de infraestrutura, que são mineral-intensivas. A indústria imobiliária, como dissemos, está em crise, o que impacta negativamente nas exportações minerais. Por outro lado, as vendas brasileiras poderiam seguir sendo beneficiadas do ponto de vista das obras de infraestrutura que o governo Xi Jinping pode ser obrigado a mobilizar, a fim de impulsionar com investimento estatal a lentidão da recuperação econômica (a Vale é indispensável para a China, junto às australianas BHP e Rio Tinto, as três principais empresas que controlam o ramo da mineração mundial).

[3Segundo o The Economist , a América Latina detém mais de um quinto das reservas mundiais de cinco metais essenciais. Já domina a extração de cobre, onipresente em tecnologias verdes, e possui quase 60% dos recursos mundiais conhecidos de lítio, que é usado em todos os principais tipos de baterias de veículos elétricos. Também é rica em prata, estanho e níquel.

[4O plano de expansão havia começado durante a presidência chinesa dos BRICS, e Xi Jinping parece especialmente interessado no crescimento numérico do bloco, assim como nas relações de subordinação econômica e geopolítica sobre cada um dos membros, independentemente da coesão geral nas escolhas. O fato dos BRICS passarem de cinco para 11 países "atende às expectativas da comunidade internacional e serve aos interesses comuns dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento", disse Xi.

[5Na Ásia, a China dirige a Organização de Segurança de Xangai, um grupo específico, com objetivos semelhantes: Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão.

[6O G7 representa apenas 9,8% da população mundial e 29,8% do produto interno bruto global, calculado pela paridade do poder de compra (PPP). O novo grupo BRICS, por outro lado, será responsável por 47% da população mundial e 37% de seu PIB, em termos de PPP.

[7Em termos mais gerais, o Brasil depende dos Estados Unidos para importação de insumos de alta tecnologia, inclusive no ramo do agronegócio, para incrementar sua produção industrial doméstica; depende da China, seu principal parceiro comercial, para a sustentação do robusto superávit comercial e para o escoamento das principais matérias-primas agrícolas e minerais exportadas. Ver “A nova política externa de Lula não é tão nova e é a continuação da política interna de conciliação de classes”.

[8No caso dos EUA, devem contemplar com cuidado os ritmos com que levam adiante os choques com a China, mesmo com a agressividade dos vetos no comércio de semicondutores e empresas de alta tecnologia, etc. A necessidade de negociar uma posição rebaixada no G20, ou de enviar os principais funcionários de Estado à China para estabelecer certa estabilidade na relação, é mostra das preocupações de Biden e do imperialismo norte-americano. Ter clareza disso é chave para escapar de visões catastrofistas.

[9Muitos são recrutados por capitalistas privados e empresas de terceirização sob falsas promessas, deparando-se em sua chegada com a terrível condição de encarceramento nos complexos administrados por capitalistas chineses.
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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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