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Eleições Argentina | Ganhou a direita de Milei: enfrentar nas ruas os novos ajustes e ataques que virão

A extrema direita de Milei somou os votos da direita de Macri e Bullrich e capitalizou o descontentamento com um governo que abertamente não cumpriu suas promessas e aplicou duros planos de ajuste, piorando a situação econômica e social. Porém o mandato de Milei será com muitas contradições e debilidades. É preciso se preparar desde hoje — que começa uma transição incerta — para enfrentar seus planos com a imensa força social que tem a classe trabalhadora se organiza junto às mulheres e à juventude combativa.

Fernando ScolnikBuenos Aires | @FernandoScolnik

segunda-feira 20 de novembro de 2023 | Edição do dia

Com os resultados deste domingo, a fórmula Javier Milei-Victoria Villarruel se impôs na votação, vencendo Sérgio Massa-Augustin Rossi por 55,78 % contra 44,21 % até a hora de publicar esta nota, com 95,31 % dos votos escrutinados..

Respeitando as eleições gerais de outubro, os candidatos ganhadores cresceram capitalizando em sua maioria os votos que havia conseguido Patrícia Bullrich, que, junto a Maurício Macri, havia manifestado seu apoio aos candidatos de “La Libertad Avanza”. Também capitalizou uma parte importante dos votos que havia obtido Juan Schiaretti.

Desde essa noite se abre uma inédita transição na Argentina diante da ascensão da direita liberal que ingressará na Casa Rosada no dia 10 de dezembro.

Pela primeira vez desde 1983, um espaço político que postula a impunidade para os genocidas e nega os 30.000 desaparecidos ascende ao poder. Não só isso: se trata também de candidaturas que reivindicaram o menemismo — a etapa mais neoliberal da história nacional —, e que defendem uma dolarização da economia, abertura comercial irrestrita, privatizações, reformas estruturais, ataques contra os direitos das mulheres e discriminação contra distintas minorias. Tal espaço político só pôde ganhar votos irritados contra um governo de ajuste, crise social e uma inflação histórica para os parâmetros das últimas três décadas. O peronismo abriu espaço para a direita. Voltaremos nisso.

Porém, estamos diante de uma nova história que está . A possibilidade de pôr em prática ideias reacionárias — ou em que proporção poderão fazê-lo — conquistou um importante ponto de apoio na direitização que expressou o processo eleitoral terminado neste domingo — e, claro, o acesso ao Poder Executivo Nacional —, mas também é certo que “La Libertad Avanza” não tem um cheque em branco. O próximo mandato se encontrará desde o começo com as contradições de um governo que assumirá atormentado por debilidades institucionais (como não ter maioria própria no Congresso Nacional ou não ter governadores nem prefeitos), estará cruzado por distintas resistências, pela falta de equivalência mecânica entre votos e consensos, pelas apostas de derrotar seus planos nas ruas e por quase a metade do país que votou veementemente contra ele. Voltaremos a esse assunto de vital importância mais abaixo.

Antes, é preciso discutir como esse sucesso foi possível. O velho regime político rachado — polarizado durante anos entre o macrismo e o kirchnerismo, cada qual com seus respectivos aliados —, acaba de receber seu golpe mais duro. De forma vertiginosa, uma nova direita — à direita da direita — surgiu, ascendeu e derrotou a estrutura de bicoalizão argentina em poucos anos. É um fenômeno que tem pontos de contato — ainda que não idênticos — com outros que tiveram lugar na arena internacional nos últimos anos.

Não só isso: Javier Milei e Victoria Villarruel triunfaram não só contra quase todos os partidos políticos tradicionais (somente apoiados por um setor do PRO e um setor da UCR nas eleições), se não também contra a maior parte do empresariado (muitos simpatizam com seu programa, mas temem a “governabilidade”), contra as preferências do atual governo dos Estados Unidos, os sindicatos ev movimentos sociais, de mulheres, direitos humanos e os setores da Igreja alinhados com o Papa Francisco, todos atores que — em sua maioria — manifestaram seu apoio a Sergio Massa para o segundo turno de forma mais ou menos explícita de acordo com o caso.

Dito de outro modo: semelhante triunfo na contramão de tantos atores só pode se explicar pelo fato de que nestas eleições se impôs uma força em rechaço ao estado atual da situação acima do medo do desconhecido.

Esse descontentamento tem bases verificáveis. O fracasso dos últimos dois governos se pode comprovar em números. Desde que o FMI voltou à Argentina em 2018, a pobreza aumentou drasticamente dos 27,3% aos 40,1% na última pesquisa. As políticas do FMI aplicadas primeiro por Macri, depois por Martín Guzmán e agora por Sérgio Massa (com apoio de Cristina Kirchner), são uma máquina de gerar pobreza. Os salários de todos os trabalhadores despencaram, com especial gravidade para os sem carteira assinada, que perderam 46,7% do seu poder aquisitivo desde 2016. No entanto, a situação da classe trabalhadora é desigual, e isso se expressou também na fragmentação dos apoios políticos a um ou outro lado nas eleições.

Se foi o macrismo quem iniciou este caminho (com apoio de governadores, deputados e senadores peronistas), também é certo que a Frente de Todos, uma vez no governo, violou todas as suas promessas e continuou os planos de ajuste (Massa cortou $1.255.312 milhões do orçamento inicial para 2023). A inflação castiga duramente os setores populares e médios. De acordo com um informe do Centro Cifra, durante os últimos dois governos ao redor de USD 101.000 milhões passaram dos bolsos da classe trabalhadora aos grandes patrões (a maior parte dessa transferência se deu durante o governo atual). Governaram para os ricos. Essa é a base material do enorme descontentamento com o regime político dos últimos anos.

Nesses marcos, a extrema direita de Javier Milei e Victoria Villarruel soube explorar o descontentamento com demagogia. Ainda que, claro, uma parte importante de sua base eleitoral é genuinamente de direita, com valores reacionários, também é certo que apelaram ao voto de outros setores vendendo “espelhos coloridos”, como as propostas de seu plano econômico, que, se aplicado, não fará mais do que agravar enormemente a realidade das penúrias populares e gerar um choque entre as expectativas e a realidade que será fonte de múltiplos fenômenos políticos e da luta de classes no próximo período. Por outro lado, cabe ressaltar que foi impossível para o peronismo ganhar a eleição defendendo a política de um estado presente no contexto de deterioração contínua e eterna de quase todas as variáveis econômicas e sociais, assim como a deterioração dos serviços públicos como a educação, saúde que só se sustentam graças aos seus trabalhadores e trabalhadoras apesar dos cortes permanentes. O medo das bandeiras direitistas de La Libertad Avanza e de suas propostas econômicas que são um salto ao desconhecido não alçaram frente a tanto descontentamento com a situação atual, nem tampouco a defesa em abstrato de 40 anos de democracia que deixaram muitas promessas frustradas.

Por sua batalha cultural, La Libertad Avanza teve importantes aliados, alguns dos quais quiseram derrotá-lo nas eleições, mas que contribuíram para criar o monstro desde muito antes. Desde os grandes empresários que o promoveram (como Eduardo Eurnekian, por mais que agora tenha se distanciado), até o peronismo que especulou quanto a dividir a base eleitoral de Juntos por el Cambio. Mais ainda: como denunciaram inclusive desde suas próprias fileiras (Juan Grabois ou Sérgio Berni), o peronismo até mesmo contribuiu para a organização dos nomes da chapa de Javier Milei e lhe facilitou o financiamento. Mais adiante no tempo, Maurício Macri encontrou no candidato liberal um bom instrumento para aproveitar as lutas internas da direita e foi junto de Patrícia Bullrich, com um plano A (a candidata “falcão” de JxC se gabava em outubro) e um plano B (o apoio a Milei nas eleições depois da derrota de sua candidata).

Ainda assim, tudo isso não teria sido possível sem a inestimável colaboração das burocracias sindicais e dos movimentos sociais que deixaram avançar o empobrecimento, os planos de ajuste e entrega com passividade quase absoluta e cumplicidade com o governo da Frente de Todos. Sobre essa base de pouquíssima ação coletiva ou luta de classes, se criou um terreno mais propício para o avanço das ideias individualistas e de progresso pessoal, separando das lutas sociais e de soluções coletivas. Não tem nada que tenha feito mais o jogo da direita do que essas burocracias.

Visto desde outro ângulo: cada vez que a rebeldia tentou se expressar pela esquerda, o governo peronista e a direita estiveram ali para enfrentá-la. A exemplo disso, as lutas das famílias sem-teto como em Guernica (reprimidas pelo ministro Sergio Berni de Axel Kicillof) ou a repressão da enorme rebelião do povo de jujuy contra o autoritarismo de Gerardo Morales, aliado de Sergio Massa (recordemos que o atual Ministro da Economia não condenou nenhuma só vez os ataques de seu amigo radical nessa província, pelo contrário: o chamou para ser parte do governo de unidade nacional).

Sintetizando, Javier Milei não chegou sozinho até aqui. Sobre a base de um enorme empobrecimento gerado pelos últimos dois governos, contou também com grandes aliados no poder para sua batalha cultural.

A esquerda, pelo contrário, nunca duvidou quanto a se enfrentar com essas novas direitas. Em condições muito desiguais contra o poder político e econômico, este espaço esteve sempre do lado das lutas operárias e populares, contra a repressão, as cumplicidades e os planos de ajuste que abriram o caminho para a direita e o silenciamento de alguns por não denunciar o atual oficialismo. O caminho do mal menor se demonstrou desastroso e somente permitiu o avanço da direita. A esquerda, a Frente de Izquierda de los Trabajadores (FIT), sempre esteve do mesmo lado, coerente com suas lutas e princípios. Também no terreno eleitoral denunciamos a direita, como se pôde ver na enorme repercussão das intervenções de Myriam Bergman nos debates presidenciais.

Agora começa uma nova etapa em que voltaremos a nos encontrar junto de milhões nas ruas enfrentando os planos da direita no poder. Não temos nenhum medo da direita de Milei. Como dissemos no começo, seu governo nasce atormentado por debilidades: não terá maioria própria no Congresso Nacional, não tem governadores nem prefeitos próprios, não conta com lideranças próprias em sindicatos nem movimentos sociais. Além disso: sua votação, ao expressar setores de direita mas também setores que votaram contra algo, não é nenhum cheque em branco para que possa aplicar seu programa. O que, inclusive, não quer dizer que o que vem será fácil, nem muito menos. Começa um novo período para o qual é necessário preparar-se a partir das conclusões tiradas da etapa que está terminando.

Nessa transição que começa essa noite começará também a surgir questões concretas, como qual vai ser realmente o programa que quer aplicar Milei ou qual vai ser sua relação com o macrismo (sera uma espécie de cogoverno?). Qual a fundo está disposto a pisar no acelerados em condições atormentadas por dificuldades em seu plano?

Nesses terrenos ainda persistem muitas incógnitas. Também resta ver como se localizarão a direção peronista e dos sindicatos, sempre acomodada aos novos tempos. Mas algumas coisas são seguras: os novos ataques às condições de vida das grandes massas estatal na ordem do dia, no mínimo, com maior desvalorização e ajuste fiscal, sobre a base de uma situação social já muito complicada por anos de ajustes. É o momento de redobrar a organização em lugares de trabalho, estudo e nos bairros, de enfrentar as burocracias cúmplices traidoras e de discutir um programa contra o ajuste e a favor das liberdades democráticas. Antes que comece o ascenso de Milei ao poder, as organizações sindicais devem deixar a passividade que fez crescer a direita e convocar assembleias, medidas e estado de alerta para começar novos planos de luta.

A direita ganhou as eleições, mas a classe trabalhadora com suas famílias e aliados no movimento de mulheres, na juventude e nos direitos humanos são uma imensa força social que se põe em movimento. Não há tempo a perder.




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