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ESCRAVIDÃO | Esgoto a céu aberto

No Brasil existe um problema que vem se expressando sistematicamente nos últimos anos, mas podemos dizer que é um problema estrutural: o esgoto a céu aberto. Não é sempre que nos deparamos, mas as vezes você capta uma imagem na TV, no jornal, em alguma entidade da internet. Dessa vez a exibição do problema se deu em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.

terça-feira 28 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

Se o leitor não está a par, o problema não é de saneamento básico, que por sinal acomete em pleno século XXI aproximadamente metade da população do país. O problema é do que chamam de “trabalho análogo a escravidão”, ocorrido nas vinícolas de Aurora, Garibaldi e Salton, em que encontraram 208 trabalhadores, a maioria nordestinos advindos da Bahia, em uma situação deplorável de exploração, que incluía jornadas que iam das 4h às 21h, com uso de torturas com choques e spray de pimenta para forçar os empregados ao trabalho.

A situação é revoltante, e coloca algumas questões para pensar sobre o trabalho no Brasil. A primeira é que não é um caso isolado (dados de 2022 apontam 2575 resgatados). Desgraçadamente nos deparamos vira e mexe nos canteiros e cantinhos do Brasil com situações similares. A escravidão assalariada no Brasil é combinada com formas mais diretas da sua herança colonial.

O segundo ponto ainda no âmbito do trabalho é que as empresas a princípio se eximiram falando que elas só contrataram empresas terceirizadas para a carga e descarga de uvas e não sabiam das condições de trabalho. Atenção que isso é chamativo de uma lógica mais geral: o trabalho sujo fica com a terceirização. É sempre assim, o mais precário, com menos direitos e benefícios, instável no trabalho, rotativo, é o terceirizado, ou a trabalhadora terceirizada. Não está na hora de rever essa questão e tornar as e os trabalhadores efetivos? Para que perpetuar essa praga da terceirização então, se chega a esse ponto? Efetivação de todas e todos os trabalhadores, ponto.

A terceira questão é que coloca um alerta, não só do antes, mas do que está por vir. Já ouviram falar da uberização do trabalho? Entregadores de aplicativos, serviços contratados pelo smartphone. Ora como MEI, Pessoa jurídica, ou algum jeitinho brasileiro de burlar a legislação trabalhista. Não se pode fingir que não está vendo. A nova modalidade de exploração começou já com entregadores jovens nas bicicletas trabalhando embaixo de sol e chuva, por vezes 10h, 12h....15h por dia, sem direitos trabalhistas, e na verdade sem qualquer direito, nem de usar o banheiro, sejamos claros. Trabalho decente, para usar os termos da OIT, é que não é, né? Solução: garantir alguma coisa, um pouquinho de benefícios?

É melhor os que defendem os debaixo se expressar com mais coragem, se não, não muda a lógica. Ao invés de regulamentar a uberização, como fizeram com a terceirização, por que já não bater o pé exigindo todos os direitos para entregadores, terceirizados, pejotizados, meizados e outras formas de precarização? Chega de sopa de letrinhas, legislação trabalhista não deveria ser privilégio, é direito. Nós não estamos pedindo nada, apenas o básico de um salário fixo, férias, décimo terceiro, benefícios. É pedir muito, empresariado herdeiro dos fazendeiros do período colonial?

Mas se existe trabalho é porque existe capital. E essas figuras entram em cena a partir de sujeitos e personalidade concretas. Já falamos dos trabalhadores, e os patrões? Ah, assumem manifestações distintas em distintos lugares do mundo, mas sempre com a mesma sanha exploradora. No Brasil são específicos, os personagens decidiram encarnar o esgoto. Estou exagerando?

A CIC (Centro da Indústria e Comércio de Bento Gonçalves), ilustre entidade porta-voz das vinícolas envolvidas, em sua declaração depois de eximir-se com um “não sabíamos que a terceirização era tão cruel” (essas palavras são minhas para expressar as ideias deles), disse o seguinte – agora atenção que a citação é textual: “Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado: a falta de mão de obra. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.

Pode parecer difícil de assimilar essas ideias porque não é fácil conviver com o esgoto, mas o que eles querem dizer é que não tem mão de obra disposta a passar pela enorme espoliação laboral das vinícolas porque existe bolsa família no Brasil (assistencialismo), que incentiva a inatividade das pessoas. O que dizer sobre isso?
Da pra esperar porque o segundo exemplo é pior que a encomenda. Em um vídeo que circula no Twitter, um vereador do RS vai além na sua mentalidade escravista e racista, e diz que o problema foi contratar baianos, já que a única cultura que eles tem é “viver na praia tocando tambor”. Tem muitas outras barbaridades ditas por ele, mas como consegue expressar raiva pelo povo nordestino e negro, sua cultura e lazer, e tudo que seja criativo e não seja povo pobre sendo explorado, em tão poucas palavras? Que raiva que causa um samba de nordestinos em uma praia.

Conclusões: o esgoto segue um problema no Brasil. Se encontra em distintos setores empresarias, banqueiros, do agronegócio brasileiro. Sim, lamento dizer a você que achou que eleições resolvem esses problemas de reforma urbana e rural. Não resolvem. As vezes ele se demonstra em sua podridão em plena luz do dia, mas nós sabemos também que nas saletas empresarias, quando ninguém está vendo, as forças do capital mantém a sua sanha escravocrata.

Por isso é fundamental punir essas alas podres do esgoto a céu aberto, nacionalizar essas empresas e indenizar todos os trabalhadores envolvidos.
E estudar um pouco de história. Recomendo um livro chamado Jacobinos Negros, de CLR James. Conta a heroica vitória do povo haitiano contra os exércitos napoleônicos que levou a grande revolução de escravizados. A classe dominante brasileira se conformou com medo dessa revolução, medo dos nossos quilombos, de um Toussaint L’Ouverture daqui.

Bem, quem semeia o vento, colhe a tempestade...




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