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Celular, arte engajada e canções de amor

Afonso Machado

Celular, arte engajada e canções de amor

Afonso Machado

Sempre quando a cultura é tragada por furacões políticos e pelas tempestades sociais, é comum encontrarmos dentro da esquerda aqueles que defendem um único veredito: a arte deve tomar partido, deve ser tendenciosa, popular, comprometida etc. Sim, essa é uma conversa antiga que marcou com muita gritaria, safanões, palavras de ordem e cores de camisa os grandes debates estéticos do século passado. Perante os intensos conflitos políticos no Brasil de hoje, revisitar este debate é praticamente inevitável.

Os desafios da atuação artística nos dias que correm adquirem maior complexidade quando as questões de gênero também exigem temáticas engajadas , colocando em foco as identidades e as lutas dos negros, das mulheres, LGBTQIAPN+, populações indígenas e outros. Não vamos perder tempo aqui com aqueles espertalhões que dissociam gênero e classe: quem está a serviço do capital só pode trabalhar pela manutenção da opressão. O que interessa sempre são os artistas sinceros que respondem a novas necessidades, que exprimem com ousadia as mudanças psicológicas produzidas pelas transformações sociais. Mas quem disse que toda manifestação artística deve ser necessariamente politizada?

As lutas dos oprimidos, de todos os oprimidos, ecoam na arte de acordo com diferentes tons ideológicos. Quem presta atenção nos conflitos da história contemporânea não pode desconsiderar tais manifestações. Porém, será que é só isso? As necessidades e tarefas da arte, sua relevância histórica, se esgotam nas palavras de ordem? Seria alienação pintar cenas de um sonho? É muito antiquado escrever um poema de amor cortês? Qual é o crime em cantar uma descompromissada canção sobre o céu azul? Sem uma análise correta das relações dialéticas entre história e arte é impossível responder estas e outras perguntas altamente pertinentes.

Quando nos expressamos artisticamente sentimos as sugestões e as tensões do nosso tempo. O celular, as redes sociais, enfim a existência online: num mundo que conecta corações e eletriza os cérebros é revelada a extrema facilidade para fotografar, filmar e escrever. A abreviação da palavra escrita, os ícones, as câmeras, os microfones, os aplicativos... Esta realidade técnica e seus novos códigos moldam-se com as novas maneiras de exprimir sentimentos e ideias. Mediante a volumosa produção estética destes meios, fica difícil avaliar o que vai ficar e o que vai evaporar pelos poros documentais. Para todos os efeitos o seu entendimento crítico depende da reflexão sobre as suas raízes sociais, quer dizer, quem são os sujeitos que se expressam através destes meios. Imaginemos um cantor. Segundo o discurso militante clássico caberia a ele pronunciar-se sobre a luta de classes. Todavia, não se pode reduzir a importância das canções ao assunto que ela apresenta. Em arte o assunto não é o fundamental mas sim a elaboração da forma em que o assunto é expresso. É precisamente de acordo com a referida realidade técnica que a música exprime os humores, os amores, as ideias políticas, a imaginação, as lembranças pessoais. A individualidade e o contexto histórico interpenetram-se num complexo processo de transmissão de emoções. No Brasil de hoje, chacoalhado de cima a baixo por graves tensões políticas e sociais, haveria espaço para o lirismo?

Expressar artisticamente acontecimentos pessoais, com direito aos exageros passionais, contribui com o entendimento do social. E isso vale inclusive para a produção cultural de massa. Até os leitores de orelha dos manuais de sociologia, sabem que vivemos num mundo em que o monstruoso tempo de trabalho e a diversão de massa constituem o sol e a lua da população mundial. Durante as curtas e ingratas horas de descanso ocorre uma relação prazerosa com imagens, sons e palavras. Vídeos, memes, personagens fictícios e personagens históricos, séries, filmes, telenovelas, shows, jogos de futebol ou de videogame, inundam as cabeças exaustas em busca de fantasia e lazer. Ninguém pode negar que o patrimônio emocional e os afetos se desenvolvem em boa parte através deste processo sensorial.

Nos meandros estéticos desta produção cultural de massa as perenes questões humanas como a morte, o amor, o humor, o sonho, o fantástico, o mágico e a solidão não deixam de ser expressas. O lirismo em particular não só não desapareceu como ainda faz parte das necessidades afetivas das massas. Dores de cotovelo, declarações/desilusões amorosas e chororô são assuntos legítimos na canção popular. Se um militante procura censurar ou recriminar isso ele incorre sob o previsível erro de reprimir a individualidade em nome de uma abstrata coletividade(nem é preciso lembrar que os stalinistas foram mestres em disseminar este erro).

Certamente que toda esta produção musical/artística que se multiplica através dos moldes massificados não é isenta de crítica. Entre Romeu e Julieta , de Shakespeare, e as enjoativas comédias românticas existem nítidos desníveis poéticos. Entre Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, e as inúmeras canções melosas que pululam nos celulares, nota-se um abismo que separa o grave e o banal. Isto não se deve ao fato de que o teatro inglês do século XVI ou a literatura alemã do século XVIII sejam mais interessantes do que a vida das massas no século XXI. Neste quesito é preciso que o poeta, o cantor e o ator( que atuam nas antigas e nas novas mídias) aprendam com as tradições artísticas e literárias capazes de fornecer material estético consistente. A assimilação crítica deste material é de grande importância para o artista lidar com as representações dos sentimentos humanos no atual momento histórico.

Claro, devemos denunciar que as formas de entretenimento promovem em inúmeros casos o conformismo social e o elogio da sociedade capitalista. Mas essa crítica não pode servir de pretexto para impor qualquer espécie de temática ou forma estética “ progressista “. Não se pode fazer uso de alegações políticas para policiar a arte e cair no bom mocismo. As exigências históricas que a luta de classes colocam para a arte não tem nada a ver com padronização ou castração. Leon Trotski disse aos poetas e romancistas soviéticos para escreverem o que lhes der na telha. Este ainda é o melhor conselho. Dentro da arte revolucionária cabe muita coisa; e mesmo se não for revolucionária pode-se aprender um bocado com a arte.


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