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Carolina Maria de Jesus: um retrato do Brasil entre despejos e desejos

Laura Sandoval

André Higa

Carolina Maria de Jesus: um retrato do Brasil entre despejos e desejos

Laura Sandoval

André Higa

Uma análise materialista da obra de Carolina Maria de Jesus sob a ótica de gênero, raça e classe, refletindo também como a literatura pode ser uma ferramenta para transformar a vida. Esse texto foi publicado na nova edição da revista Ideias de Esquerda, em sua edição especial de Feminismo e Marxismo, sendo uma síntese dos círculos de debates promovidos pela Faísca Revolucionária para a semana de recepção de caloures do curso de Letras na Universidade de São Paulo.

Carolina Maria de Jesus era poeta. Catadora de papel, mulher negra, favelada. Escrevia sobre a vida, não só a sua, mas refletia sobre a realidade daqueles mais explorados, miseráveis do mundo. Em sua obra, revela-se o que é propositalmente ignorado pela burguesia: a vida dos pobres urbanos, e, assim, abre a visão panorâmica dos despejos, da violência, da fome, da perseguição policial, das inseguranças maternas, mas também da revolta, dos sonhos e da aspiração libertária.

Em 1960, seu livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada é publicado, escancarando as contradições da formação social do Brasil e denunciando o projeto nacional-desenvolvimentista anunciado pela burguesia nacional. No cenário pós-Vargas, com uma industrialização crescente, a burguesia vendia a ilusão de um Brasil que se alçava para tornar-se plenamente desenvolvido através de reformas graduais de modernização. Na realidade, esse projeto sustentava uma posição de raça e classe. O “desenvolvimento” ocorria em base à exploração desenfreada de trabalhadores, bem como da manutenção da herança escravista. Dessa forma, a população negra era marginalizada, indo aos postos de trabalho mais precários e sendo jogada para as periferias. Assim, São Paulo, como centro econômico do país, torna-se a imagem clara da farsa capitalista: os subempregados, em maioria negros, obrigados a viver nas situações mais miseráveis, enquanto os burgueses lucravam em cima deles, vendendo a ilusão de progresso.

É essa a realidade que Carolina Maria de Jesus vai viver e absorver como inspiração para suas criações. Escrevendo da Favela do Canindé, a artista é categórica ao desmascarar a noção de modernização gradual vendida pela burguesia. Como seria possível um país em que “a fome é amarela e dói muito” estar nos trilhos do desenvolvimento? Porém, não é somente a forte imagem da fome atrelada à cor amarela que a poeta cria – sua frase completa é: “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”. A sobreposição de imagens para relacioná-las é um recurso estético muito admirado na poesia brasileira, em especial por conta do modernista Mário de Andrade. Carolina, bem como o poeta, utiliza esse recurso para falar das contradições dissonantes de São Paulo, porém, não de uma cidade desvairada e arlequinal, mas sim negra e faminta.

A fome e a escassez percorrem Quarto de Despejo. Sua obra reverbera por tantas outras mulheres negras, mães, faveladas que se encontravam na mesma situação de precariedade e marginalização. Carolina Maria de Jesus faz surgir à superfície o que o capitalismo quer esconder. Contrastando fortes denúncias das condições de vida dos oprimidos na sociedade, com momentos íntimos de desejos e sonhos, a autora revela sensível apreensão da realidade e suas contradições, e mais: sua ânsia por liberdade. A criação da poeta se constrói como um grande exercício humanizante, enxerga a realidade material e faz emergir em forma de arte uma percepção única, contada de modo igualmente único. Nessa realidade existem maus tratos, racismo, solidão, fome e morte; mas também amores, maternidade, percepção da natureza, vida. A combinação de todos esses elementos sensibiliza o leitor, tanto pela miséria que lhe aperta o coração quanto pela humanidade transmitida ao construir os sujeitos. Ora, o capitalismo é quem mantém tal condição miserável para a vida da maioria da população trabalhadora, e ainda mais cruelmente para os setores oprimidos dessa camada de explorados. Petrifica a vida, fragmenta e aliena as relações humanas. Carolina Maria de Jesus imerge seu leitor nessa realidade entre desejos e despejos em sua obra, levando-o a compreender sensivelmente as contradições da vida dos negros pobres e trabalhadores no Brasil, das mães que precisam lutar pela sobrevivência dos filhos, vidas conduzidas pela opressão e exploração. Em trechos como “E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro” novamente utiliza a sobreposição imagética para relacionar uma cor a uma condição, trançando poeticamente vida, pele e favela. Usa a cor preta, da pele da grande maioria dos pobres e trabalhadores precarizados e favelados, mas também da penumbrosa vida atravessada pelo sofrimento e pelo racismo. Com construções como essa, a poeta permite emergir conclusões nítidas da necessidade de rejeição de toda essa realidade ao trazer luz ao mundo de sonhos esmagados por essa sociedade. Mesmo sem expressar uma crítica aberta ao capitalismo, Carolina identifica e cria sobre esses pilares: o racismo e a miséria dos mais pobres. A escrita se torna afiada, denuncia as bases sociais do Brasil. Já dizia ela que: “Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo oprimido”.

Essa leitura de Carolina Maria de Jesus apresenta uma perspectiva complexa sobre sua obra, contra todos os setores reducionistas que separam forma e conteúdo. Entre esses, é comum maior interesse por sua biografia detalhada, do que por sua literatura, como se sua obra fosse um testemunho impresso de sua vida, e não uma criação artística. É preciso problematizar que considerem em sua obra um valor meramente documental, centrando a discussão na sua trajetória de vida. Essa concepção não valoriza sua qualidade artística. Os mais conservadores, colocam que, por não ter tido estudo, suas obras não têm valor estético. Outros, inclusive setores identitários dentro do movimento negro, caem em um determinismo social, no qual o valor da obra está mais por sua origem periférica do que em como Carolina reflete sobre a vida. Ao apagarem o conteúdo literário das obras, apaga-se Carolina enquanto poeta crítica. Nenhuma dessas formas de análise serve para capturar a sagacidade da artista ou explicar a emoção sentida por seus leitores. A autora possui fortes denúncias inspiradas na realidade, mas também possui estilo próprio para dizê-lo e construí-lo de maneira sensível.

Sendo assim, parece mais interessante ler Quarto de Despejo numa perspectiva que não separa forma e conteúdo, mas sim é capaz de reconhecer como sua própria estética reforça o contraste com as farsas desenvolvimentistas da burguesia, por exemplo, ao acompanhar os meses narrados na obra-diário. Diferente dos tempos lineares dos romances burgueses, a obra tem tempo cíclico. Os temas retornam e giram sobre si mesmos, não há um arco progressivo de desenvolvimento. Ao escrever um diário, narra-se a passagem do tempo cronológico, mas os dias se repetem e o tempo não avança. Assim, deixa escapar uma visão da realidade contrastante com o projeto desenvolvimentista do progresso nacional, prendendo o leitor no turbilhão da desigualdade. O racismo e os despejos não são superados pelo esforço individual ou pelos projetos modernizadores. Essa construção estética reforça o que já fica claro na obra: que a escravidão do negro, parte fundacional do capitalismo brasileiro, persiste. “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. Ela, então, liga a realidade de fome dos mais precarizados hoje, também negros, com a herança racista do último país na América Latina a abolir a escravidão. A fome se repete, os dias se repetem, a escravidão se repete. Para os burgueses, o Brasil progredia, para Carolina, repetia-se.

Por vezes, os dias são breves, com reflexões precisas, não há o que dizer a mais do que já disse nos dias anteriores. Em outros dias ela compõe crônicas sobre a vizinhança, que brilhantemente ultrapassam o caráter de relato, são profundas reflexões sobre as relações humanas. Sua linguagem, ao mesmo tempo, transgride a “norma padrão” do português, aproximando-se da fala, como também utiliza um riquíssimo vocabulário. O leitor não deve se enganar, pois a poeta era conhecida no Canindé por seu vocabulário rebuscado e sua dedicação para ler e escrever. O uso de termos antagônicos da “linguagem do dia a dia” e de conceitos enciclopédicos não é acidental, mas sim da formação consciente da estética própria da autora, bem como é também um atestado de sua condição, entre a miséria imposta e a riqueza de sua sensibilidade. As contradições que vemos na obra e na figura de Carolina Maria de Jesus são também as contradições da formação do Brasil.

Os leitores são sensibilizados por suas obras por reconhecerem também a manutenção de vários dos elementos que a autora retrata. O Brasil descrito por Carolina Maria de Jesus se mantém atual, atualizado por ataques como a Reforma Trabalhista, a terceirização irrestrita e respaldada pelo pagamento da dívida pública que só promete o avanço da precarização e da uberização. As atualizações do tempo presente reforçam as bases sociais racistas e patriarcais sob as quais o capitalismo se desenvolveu no Brasil. Porém, segue viva a poética de Carolina. Suas denúncias e reflexões, o sentir a vida, encarando de frente a opressão e trazendo toda força vital dos trabalhadores, negros e mulheres. O que pode-se apreender a partir disso? A obra de Carolina mostra que os oprimidos e explorados são mais do que os objetos maquinais, despejos que a burguesia tenta esconder. São sujeitos reflexivos, falam e agem, são contraditórios, mas humanos, em sua potencialidade criativa e sensível. Para defender essa humanidade, é preciso invariavelmente estar ao lado dos oprimidos, como a autora ensina.

A literatura é uma arma para as grandes reflexões humanas e compreensões sensíveis sobre a realidade. Por isso, é papel dos comunistas defenderem a liberdade e independência da arte como uma de suas bandeiras. Deve-se lutar contra o controle da arte ditada pelos interesses do mercado, do lucro e da burguesia, interesses de esconder as profundas contradições do capitalismo, assim como a criatividade e combatividade dos oprimidos e explorados, como tentam esconder as obras de Carolina. Os comunistas devem lutar contra todos os obstáculos à livre criação artística, ou seja, contra o capital e a exploração, mas também contra o patriarcado, o racismo e toda a opressão. Somente assim será possível defender a expressão humana, a possibilidade de novas formas estéticas e igualmente que surjam novas artistas capazes de traduzir em arte sua percepção da realidade, assim como fez Carolina a despeito das condições contrárias à preservação de sua arte até os dias de hoje. Com seu ódio e sua paixão condensados na literatura, existe também a vontade de se libertar de toda a miséria experienciada diariamente. Na luta contra o racismo e o patriarcado, se faz necessário uma revolução que abra as portas de um mundo sem classes. A revolução socialista trará o vislumbre da liberdade, iniciará o combate definitivo contra a exploração e opressão, trará o pão e as rosas. A revolução será carregada pelas mulheres, pelos negros. E a revolução também precisa de poesia, libertar a humanidade reprimida pelas classes dominantes. É preciso de poesia, e Carolina é poeta. Aqueles que se levantam pela liberdade da humanidade devem levar consigo as contribuições da artista.

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Laura Sandoval

Estudante da Letras - USP

André Higa

Estudante | Escola de Comunicação e Artes da USP
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