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SEMANÁRIO

Breve história do feminismo, desafios e tarefas das e dos marxistas hoje (Parte II)

Jéssica Antunes

Luiza Eineck

Ilustração: Alexandre Alves

Breve história do feminismo, desafios e tarefas das e dos marxistas hoje (Parte II)

Jéssica Antunes

Luiza Eineck

A Parte II deste artigo tem como objetivo dar sequência ao texto publicado anteriormente no semanário: Parte I, onde retratamos uma breve história do feminismo e o porquê de nosso feminismo ser socialista. A elaboração deste texto serviu de base para o grupo de estudos de feminismo e marxismo realizado em dezembro de 2020 no 1º Encontro Regional do Esquerda Diário e Pão e Rosas do Distrito Federal.

O cenário atual, desafios e tarefas dos revolucionários frente ao movimento feminista

Todos esses processos de luta de classes e radicalização de massas que atravessaram o mundo entre os anos 1960 e 1980 foram derrotados e desviados, com traições por parte das direções burguesas e também stalinistas. Além disso, por um lado, nos países centrais reformas foram feitas para dividir e conter setores da classe operária. Por outro, na periferia do capitalismo, esses processos foram enterrados com golpes militares.

Após esse processo, abre-se o período que vamos conhecer como neoliberalismo, que é importante para entender como chegou o movimento feminista até a crise atual que apresenta enormes possibilidades revolucionárias.

A base dessa nova ordem social foi a voraz fragmentação da classe trabalhadora, dividida em subclasses, como efetivos e terceirizados e trabalhadores sem nenhum direito. Os governos social-democratas recém eleitos implementaram todo tipo de ataques, varrendo as conquistas do período anterior. Isso levou a uma enorme derrota moral da classe trabalhadora, criando a ideia de que a revolução não seria mais possível e não teria passado de uma tentativa autoritária, usando o stalinismo para desacreditar os trabalhadores da possibilidade de transformar a realidade.

Ainda que de forma degradada, as demandas dos movimentos sociais e do feminismo foram sendo incorporadas na agenda pública e nas políticas de estado. Dessa forma, o capitalismo foi ficando mais rosa, mais LGBT, mais negro, cheio de ONGs e secretarias que resolveriam os problemas da mulher. A segunda onda do feminismo [1], na base da derrota geral do ascenso do qual fez parte, teve toda a radicalidade de sua alvorada engolida pelo sistema. Transitando “da rua ao palácio”, perdeu seu caráter subversivo de questionamento das bases do capitalismo, passando a legitimar as democracias capitalistas. Em síntese, o movimento feminista se encontrou também institucionalizado e fragmentado.

A ideia de emancipação se manteve, transitou da esfera social para a esfera individual e subjetiva de cada mulher. Enquanto o feminismo reivindicativo de igualdade de direitos se incorporava nos governos, nos organismos financeiros internacionais e nas ONGs, surge com força também o feminismo das diferenças, pautado nesse tremendo individualismo que propõe a criação de uma contracultura que não busca igualdade frente aos homens, mas um espaço próprio para cada identidade com valor próprio. As mulheres negras, latinas, indígenas, lésbicas que não se viam representadas no feminismo liberal, vencedor da segunda onda, predominantemente branco e de classe média, teriam a tarefa de se afirmar junto a seu grupo de identidade, resistir e se refugiar em verdadeiros guetos de identidades.

Esse momento que ficou conhecido como pós-feminismo [2] e levantou a utopia de uma emancipação e empoderamento individual baseado no consumo extremo e no reconhecimento social de todo tipo de identidade dentro do sistema, a partir da resistência e desconstrução do discurso dominante. No marco de um exponencial aumento da exploração, da opressão e da violência contra as mulheres, era colocado que o centro da luta estaria em cada mulher isoladamente desconstruir o discurso hetero-patriarcal dominante, transformando as representações e as palavras, as suas atitudes individuais e daqueles ao seu redor, se empoderar, ser a resistência e construir a mudança que quer ver no mundo.

Essas ideias tiveram enorme influência no movimento de mulheres e LGBTs, mas toda sua suposta subversão discursiva está por fora de transformar as bases materiais que sustentam materialmente todas as desigualdades. Por não levar em conta justamente as relações de produção que sustentam a sociedade tal como é, desigual e excludente, acabam reivindicando inclusão numa sociedade baseada na exclusão.

Essas diversas pequenas comunidades “contraculturais” das identidades se transformaram em nichos poderosos de mercado, que podemos ver na indústria da beleza, da moda e do entretenimento. Nesse sentido, podemos dizer que, quando a identidade é separada de uma análise das estruturas fundamentais da sociedade, acaba servindo a essas mesmas estruturas, ao mesmo sistema que as transforma em nicho de mercado como suposta inclusão e as usa como ferramenta de subordinação desses grupos, para justificar uma maior exploração e uma infinidade de injustiças.

Esse processo do movimento feminista está, em nossa análise, completamente vinculado ao avanço neoliberal e à perda da perspectiva de transformações revolucionárias.

Vimos até aqui que as mulheres têm delineado os contornos de um movimento amplo e diverso que, desde o fim do século XVIII, da revolução burguesa até aqui, percorre a história do capitalismo, proclamando — com distintas vozes — a resistência à opressão. Em alguns momentos da história, essa resistência avançou ao lado da luta de classes para ensaiar uma saída ao estado de coisas. Entrou em ação e não se limitou a impedir uma maior destruição, mas sim explorar saídas construtivas. Nesses momentos, as vítimas deixaram de ser objetos de compaixão para transformarem-se em sujeitos de suas próprias histórias.

Com a chegada de uma nova crise mundial em 2008, entramos em um novo momento onde as páginas da história podem ser preenchidas por grandes reviravoltas como essas que relatamos aqui. A suposta estabilidade da ordem neoliberal e da hegemonia norte-americana foi dinamitada por dentro.

Os primeiros anos dessa crise foram marcados pelos processos revolucionários na primavera árabe, imensas greves gerais na Grécia, manifestações massivas de jovens nos EUA, na Espanha, no Chile, na África do Sul e em diversos países. Hoje, chegando aos 13 anos de uma crise sem solução, atravessada pela pandemia do coronavírus, escancara-se a realidade do capitalismo, o aumento escandaloso da desigualdade social e da piora das condições de vida das grandes massas. As tendências são de crises de todas as ordens: políticas, econômicas e sociais.

Uma enorme polarização tomou a cena, trazendo fenômenos aberrantes característicos desses momentos, como o fortalecimento em diversas partes do globo de uma extrema direita nojenta, com Trump, Bolsonaro e Boris Johnson. Por outro lado, surgiram fenômenos de esquerda como o reaparecimento, ainda que distorcido, das ideias socialistas, porém apoiadas na figura de Sanders (PD), além da aparição de uma série de partidos de um novo reformismo, que ainda buscam convencer as massas da utopia de conquistar a igualdade e melhorias das condições de vida dentro desse sistema decadente.

Estamos vivendo uma explosão imparável de novos fenômenos de luta dos setores socialmente oprimidos e economicamente explorados, como foi o recente Black Lives Matter, que fez tremer os EUA e sacudiu o mundo, as greves que explodem por todos os continentes do globo e os processos de massas que se enfrentam com as reformas do capitalistas que querem descarregar a conta da crise em nossas costas, como foram os coletes amarelos na França, a luta chilena contra o regime pinochetista e a luta do povo boliviano contra o golpe.

Mais uma vez, no marco de um novo momento histórico, ressurgiu com enorme força o movimento o feminista. As mulheres se levantaram nos últimos anos contra os feminicídios, como no movimento “Nenhuma a Menos”, que tomou a América Latina, ou as brigadas de mulheres armadas na Índia contra os estupros coletivos, além da luta pelo direito ao aborto com a Maré Verde na Argentina, que agora vê na aprovação do parlamento um passo de suas conquistas. As mulheres foram também as primeiras a se levantarem contra a eleição de Trump nos EUA, as primeiras a realizarem marchas pelo #EleNão no Brasil contra Bolsonaro, protagonizaram greves gerais de mulheres nos últimos 8 de março, estiveram na linha de frente na Bolívia e no Chile, também nos enormes processos recentes no Líbano, na Índia e por todo o globo. Estamos vivendo, o que será conhecido como a terceira onda do feminismo.

Que rumo essa enorme onda pode tomar e que impactos isso pode ter para o conjunto dos explorados e oprimidos?

Desses processos, se fortalecem novas tendências, como o feminismo dos 99% [3], que aponta as mulheres pobres, imigrantes, lésbicas, negras, exploradas e oprimidas como as massas que se separam do 1% de mulheres que pertencem à classe dominante com as quais elas não têm sororidade. Porém, esse feminismo não apresenta uma estratégia para levar as massas de mulheres a derrubar esse 1% que as oprime e explora.

Esses novos processos do movimento de mulheres apontam para a ideia de que a transformação radical da sociedade, defendida pelo marxismo revolucionário, segue vigente, pois a promessa de incorporação e conquista progressiva de igualdade dentro desse sistema se mostrou uma mentira para a ampla maioria das mulheres nos 40 anos de neoliberalismo.

Vimos mulheres presidentes, dirigentes de grandes empresas e de poderosos exércitos que, ao olharem de cima do teto de cristal que o feminismo liberal conseguiu romper, encontram as mulheres mortas pela violência, pela extrema pobreza, pela fome e pelas guerras. O capitalismo, como colocamos anteriormente, não pode resolver duas questões: a exploração da maioria por um punhado de parasitas e o trabalho doméstico de reprodução feito gratuitamente pelas mulheres dentro dos lares. Nem a democracia burguesa mais democrática do mundo pode resolver esses dois problemas, o que torna vigente e indissociável a luta de classes unida a luta contra o patriarcado.

Frente à pandemia, as trabalhadoras italianas foram as primeiras a exigirem as armas para irem à luta na guerra contra o vírus que mata mais pelas condições de vida capitalista do que por sua própria capacidade de matar. O desinvestimento em áreas diretamente ligadas à reprodução da vida, como saúde, educação e assistência social, hoje, recai sobre as costas das mulheres trabalhadoras, ampla maioria em todas essas áreas, assim como as donas de casa são as que arcam com essas tarefas quando não se tem acesso a esses serviços [4].

"Mais uma vez, a mulher é, em essência, o elemento vivente no qual se entrecruzam todos os fios decisivos do trabalho econômico e cultural". – Leon Trotsky

O mundo como estávamos acostumados está em colapso. Cada dia que passa é mais clara a evidência de sua decadência, mas, ainda que esteja em plena crise, não podemos achar que o velho irá cair e simplesmente abrir espaço para o novo. Os regimes, os governos e os sistemas, assim como o patriarcado, não caem sozinhos, é preciso derrubá-los. Para isso, é necessário preparar-se com antecipação. Tempos extraordinários se aproximam. A pergunta é: deixaremos que as massas exploradas e oprimidas nos encontrem desprevenidas? Quais as lições que podemos tirar de todas as lutas da história do feminismo para enfrentar os desafios que estão colocados para as mulheres de hoje? Qual será os rumos desse enorme movimento de mulheres?

Há algumas propostas sobre a mesa. A proposta feminista populista de uma somatória de múltiplas resistências é utópica, pois não parte de compreender que o antagonismo de classe entre os explorados e exploradores é o fundamento e a fortaleza de toda opressão. Não oferecem nenhuma proposta para derrubar o patriarcado e o capitalismo. Igualmente, aquelas que nos propõem um feminismo que tem como inimigo os homens não fazem mais do que manter intactas as divisões de nossas forças e mantêm intactas as bases dessa sociedade.

A proposta feminista reformista de depositar nossa confiança em partidos que administram esse sistema de miséria com um discurso progressista ou naqueles que se propõem a ser os novos administradores não faz mais do que trabalhar para salvar um sistema condenado. Elas sugerem que temos que militar e doar a nossa energia para qualquer mal menor que surja por parte dos empresários ou de setores que se aliam com eles, que precisamos apostar em suas frentes amplas que misturam os aliados com os inimigos.

As reformistas nos chamam a acreditar que, pela via de eleger mulheres ou fazer movimentos de rua com o objetivo de pressionar as instituições do estado, vamos conquistar nossa demanda. Porém, apenas criam ilusões em judiciários e congressos, que sabemos que são responsáveis por essa crise. Em nossa opinião, elas nos propõe girar a roda da história para trás e cometer os mesmos erros que as feministas do passado cometeram ao achar que conquistas de igualdades perante a lei nos garantem igualdade perante a vida.

As lições da Revolução Francesa e da Revolução Russa até hoje nos mostram que a burguesia é inimiga da emancipação da mulher e, com ela, não há colaboração possível.

Nós, feministas socialistas e marxistas, acreditamos que as alavancas fundamentais da economia e da geração de riquezas seguem nas mãos das massas trabalhadoras, hoje, fragmentadas pela cor de pele, gênero, identidade sexual e outras múltiplas divisões criadas no mundo do trabalho. Paralisar os setores da produção e a circulação de mercadorias, bem como deter os serviços e as comunicações está nas mãos dessa classe, e acreditamos que, em torno dessa batalha, é que as mulheres precisam lutar, assim como os negros, saindo a luta como vanguarda para chacoalhar os demais trabalhadores a despertá-los para a lutar.

As mulheres assalariadas devem conquistar essa união sustentando as demandas de todos os setores oprimidos, reconhecendo as desigualdades nas próprias fileiras, para dirigi-las contra a ordem capitalista e seus pilares, o patriarcado e o racismo, na luta pelo poder. Confiando apenas nessa força imparável, será possível cumprir a tarefa mais apaixonante que existe: transformar a vida pela raiz.

Desde essa perspectiva, nós, mulheres socialistas, lutamos pela emancipação feminina. As lutadoras do passado, de diferentes épocas e países, têm em comum que nenhuma delas viveu em uma época onde, pela primeira vez na história, a metade da classe trabalhadora é composta por mulheres. Ainda assim, conseguiram, com a maioria das mulheres presas aos lares, realizar enormes feitos, greves, revoltas e revoluções. O que poderíamos fazer hoje com a classe trabalhadora tendo rosto de mulher?

O dilema atual é se as mulheres anticapitalistas vão se limitar a organizar resistências ocasionais e episódicas aos ataques da direita ou se vamos batalhar dentro do poderoso movimento feminista para nos armar com esse programa e com essa estratégia para vencer. O que está colocado hoje para o movimento feminista é um debate de estratégia, e nossa tarefa estratégica é batalhar para conduzir um setor dessa poderosa segunda onda para cumprir esse papel.

As que sempre foram escravas da história merecem que nossos esforços estejam voltados a preparar a vitória, e estamos convencidas de que, como disse Leon Trotsky, "todos aqueles que querem transformar a vida, precisam aprender a enxergá-la através dos olhos das mulheres". Acreditamos que é tarefa de todos aqueles que querem ser um revolucionário estudar e conhecer a história da luta das mulheres se não querem conhecer a história pela metade, além de batalhar pela consciência de cada companheiro para que aprenda a olhar a vida dessa forma, pelos olhos das mulheres. Tomar para si a tarefa de transmitir pacientemente para todas as jovens e trabalhadoras que despertam para a luta feminista a tradição de um feminismo socialista e revolucionário.

Trotsky também disse que aqueles que mais bravamente lutam pelo novo são os que mais sofrem com o velho, acreditamos que essa máxima se provará verdadeira mais uma vez. E essas somos nós, as mulheres, em especial as mulheres negras. A força de todas essas mulheres que lutaram durante os séculos, fizeram história, entregaram suas vidas e foram pioneiras, presas e mortas, vive hoje nas lições que elas deixaram para luta das mulheres jovens e trabalhadoras.

Hoje, temos à nossa frente o desafio de nos organizarmos unicamente ao lado da classe trabalhadora e tomar em nossas mãos o futuro da humanidade, batalhando para, em meio a uma crise histórica, conquistar uma vida plena de sentido. Milhares de mulheres anônimas se levantaram e se atreveram a fazer isso no passado, o Pão e Rosas internacionalmente tem a confiança de que mais uma vez estamos convocadas a ocupar a vanguarda e nos atrever mais uma vez.


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Jéssica Antunes

Luiza Eineck

Estudante de Serviço Social na UnB
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