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Belo Horizonte: planejamento pra quem?

Silas Pereira

Belo Horizonte: planejamento pra quem?

Silas Pereira

entre rios e as réguas de suas elites

O Brasil está entre os países do mundo mais atingidos por inundações e enchentes, apresentando 94 registros de desastres cadastrados no período de 1960 a 2008, com 5.720 mortes e mais de 15 milhões de pessoas afetadas¹, sendo em sua maioria pessoas negras e pobres. As inundações e enchentes ocasionadas primordialmente pelo excesso de precipitação e pela alta vazão dos leitos dos rios, córregos e das galerias de esgoto, recebem influência de diversos fatores. Mas é nos ambientes urbanos que esse quadro se agudiza mais, seja pelas ações humanas que intensificam esses fenômenos da natureza ou pela desigualdade acentuada combinada com a intensa urbanização da população nas últimas décadas. Entender o processo de construção de Belo Horizonte e sua região metropolitana é importante para que compreendamos porque nessa época do ano catástrofes ambientais assolam a cidade, sobretudo as populações menos favorecidas. Como também demonstra que estas são tragédias capitalistas anunciadas.

A CONCEPÇÃO DE BELO HORIZONTE

Legenda: Planta geral da cidade de Belo Horizonte (1895)

No final do século XIX foi deliberado uma comissão para planejar e executar a construção da nova capital de Minas Gerais. O projeto dirigido pelo engenheiro Aarão Reis foi inspirado em modelos europeus e norte-americanos - perímetro da Avenida do Contorno - determinando funções específicas para as áreas planejadas. Foi escolhido para receber o projeto uma área já habitada e abundante em recursos hídricos: o antigo arraial de Curral del Rei. Ele foi completamente destruído, com a transferência de seus habitantes para outro local evidenciando o caráter excludente e segregacionista dos primeiros passos da futura cidade.
Os trabalhadores escalados para a construção, respondendo os anseios da “elite” embebedada com as novas ideias republicanas, foram os pioneiros na formação da primeira favela da capital que ainda não tinha sido inaugurada. Eram vistos como “temporários” e, portanto, não estavam nos cadernos do engenheiro. Importante notar que o projeto da cidade se concretizou em um período importante da história logo após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. Portanto, esses trabalhadores convocados para a construção da cidade eram, em grande parte, negros escravizados. Sendo assim, se formou uma periferia majoritariamente negra após a inauguração da cidade². E em seguida estabeleceu um processo de intensa remoção racista dos trabalhadores das áreas consideradas importantes, para se construir uma cidade modernizada para suas elites.

Após a inauguração o governo criou a primeira Área Operária e consequentemente iniciou a primeira remoção de favelas. Tal área prontamente se tornou insuficiente para receber os trabalhadores que então chegavam à cidade. A população mais pobre, trabalhadora e negra foi empurrada para a periferia, que foi sendo ocupada desordenadamente. A valorização das áreas centrais com o passar do tempo os obrigavam a se transferir para áreas mais afastadas e sem infraestrutura.

Como os córregos e rios da cidade ficavam no campo de batalha? De acordo com as ideias dominantes do espírito governante da época da fundação, os espaços públicos destinavam-se muito mais a ideia passagem do que de permanência. A ordem liberal impunha que as ruas seriam amplas e específicas para movimentação e circulação, uma espécie de arquitetura da visibilidade.
Segundo Richard Sennett (1989) citado por Passos (2016, p. 341)³ por ser um espaço amplo, aberto e público, acabaria por produzir um isolamento, pois todos estariam visíveis a todos, o que tornaria a liberdade do espaço um conflito com a liberdade do corpo. O individualismo das grandes cidades veio “amortecer” o corpo moderno, não permitindo que ele criasse vínculos. Os córregos e rios nesse contexto, como um espaço público e aberto, seria desprovido de seu estado “selvagem” e humanizado sob esses preceitos. Por que não um espaço de convivência humana para se nadar ou pescar? Porque não se deve criar vínculos e nem se permanecer. Uma maneira de transformar os rios que tem um caminho mais sinuoso e lento é a canalização que acelera o fluxo d’água. Outra maneira de deixar menos atraente é uma rede de esgoto nada eficiente que canaliza toda a poluição para seus ribeirões.
Toda essa empreitada da organização do espaço público tinham o objetivo de alienar, os corpos individuais se tornaram desligados dos lugares que passaram a transitar, perdendo ainda a noção de destino compartilhado e se tornarem desencorajados a se organizarem em grupos. Nesse contexto, as cidades planejadas funcionam como isolante do espaço com o objetivo de o separar e impedir a aglomeração e privilegiando o corpo que se move. Em BH isso é muito sentido no plano xadrez das ruas e uma preocupação constante com as perspectivas monumentais baseada nas ideias haussmanianas⁴.

Mapas conceituais dos caminhos dos córregos da região centro-sul de Belo Horizonte.

Impor materialmente esses preceitos às águas também significou degradação do meio ambiente resultando na perda de defesas naturais, por sua vez aumentando a vulnerabilidade de comunidades humanas às catástrofes ambientais. O discurso hegemônico difundido as camadas mais populares, afligidas das doenças e outros problemas advindos da poluição e contaminação, foi a suposta solução ao “problema das águas”: a canalização e/ou tamponamento. Aplicado ao longo de todo o século passado essas modificações fazem com que os córregos corram mais rápido e não dispersem no seu caminho o excesso de água que outrora era absorvido pelas áreas de várzea nos caminhos mais curvos. Essa rapidez com que desce os fluxos causa estragos consideráveis e aumenta a quantidade de inundações, já que a impermeabilização impede que essa água seja absorvida pelo solo. Essa invisibilização das águas cobrou um preço alto, principalmente a quem habita as regiões marginalizadas ao lado dos flumes. Entre os anos de 1928 a 2012, a capital mineira registrou mais de 200 inundações⁵ e a perspectiva é de que elas se intensifiquem devido à crise climática global.

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Canalização do Córrego do Barroca na Rua Mato Grosso em 1928. Fonte: curraldelrei.blogspot.com

A METRÓPOLE


Belo Horizonte 1950

O contexto político-econômico nacional iniciado após 1930 se caracterizava pela priorização das bases industriais em substituição ao modelo agrário-exportador. Em Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek (na prefeitura de 1940-1945) inaugurou um novo período no que se refere ao planejamento urbano e às obras públicas e de infraestrutura na cidade. No seu plano definiu a criação das Cidades Industrial e Universitária e o lançamento de novos bairros, como a Pampulha e a Cidade Jardim; além de investimentos massivos no sistema viário. Aliás começa no espírito “modernizador” os anseios de transformar as cidades brasileiras nos modelos americanos de suburbanização da vida e transporte individualizado por automóveis em grandes avenidas. Indispensável notar que essa política de priorizar o transporte automobilístico é responsável, até hoje, por milhares de problemas urbanos.

Plano da Cidade Industrial, novamente rios canalizados e quadras retas impostas sobre o solo.

Imagem de satélite da atual cidade industrial, onde em laranja os aglomerados.

Tais medidas possibilitaram a continuidade e a aceleração do processo de expansão da cidade, que foi marcado pela generalização da dispersão de loteamentos para além da região central. Um ponto de atração significativo foi a consolidação da Cidade Industrial em Contagem, que foi o primeiro distrito deste tipo planejado no Brasil e só se estabiliza devido a promoção da infraestrutura necessária na década de 50. Nesse período também houve um aumento significativo do número de migrações para as proximidades da Cidade Industrial, assim como o aumento do número de parcelamentos do solo no entorno e nos municípios próximos (Betim e Ibirité). Nas décadas seguintes também se estimulou a instalação de indústrias em outras regiões fora da Cidade Industrial, no início dos anos 1970 a Prefeitura Municipal de Betim contraiu empréstimo para adquirir os terrenos que seriam doados tanto à Fiat Automóveis (inaugurada em 1976) quanto à Krupp. Também em Betim tem a instalação da refinaria Gabriel Passos (Regap – 1967), todos esses grandes equipamentos se converteram em polos de atração. A população do município cresceu com taxas superiores à população do estado e da região metropolitana, e não contaram com o apoio dos governos deixando em vulnerabilidade a população emergente. A disputa pelo solo era tão intensa que ao garantir as melhores parcelas restavam apenas as áreas de manancial e de proteção ambientais, caracterizadas pelo baixo valor imobiliário dos terrenos devido às restrições de uso impostas pela legislação ambiental, que são ocupadas pelos destituídos e recém chegados. Ou seja, empresas multinacionais angariam fatias enormes do solo dadas de presente enquanto para maioria local é relegado às áreas de sobras impróprias e caindo na marginalidade.

Vista aérea da fábrica de cimento Itaú e ao fundo a Cidade Industrial Juventino Dias em 1970. Fonte: contagemnotempo.com.br

Essa concretização do eixo oeste da Região Metropolitana de Belo Horizonte como polo industrial do estado foi baseada (não só, mas também) na exploração dos recursos hídricos locais. Como a criação da Cemig (Companhia de Energia de Minas Gerais) em 1952 para o abastecimento energético do parque industrial com base em hidroelétricas, a canalização de vários rios e cursos d’água e sua poluição com as flexibilizações ambientais aos industriais. Mas também décadas de políticas ineficientes dado o crescimento populacional desenfreado com pessoas sendo obrigadas a morar em áreas de várzea e sem infraestrutura. Por consequência tem um aumento da impermeabilização dos solos, que por sua vez, interfere diretamente no escoamento pluvial, modificando a drenagem natural dos leitos dos rios anteriormente existentes e na recarga do lençol freático. Este tipo de impacto tem influência direta nas áreas mais baixas das cidades causando inundações e enchentes. Em 1990 estimava-se que eram mais de 180 mil os moradores nas áreas de risco, suscetíveis de deslizamentos e soterramentos em Belo Horizonte.

Um exemplo das tragédias causadas pela lógica devastadora sistemática é em 1992 na Vila Barraginha. Trinta e seis pessoas morreram em um desmoronamento em Contagem, no dia 18 de março de 1992 uma avalanche de lama engoliu cerca de 150 barracos. A combinação de chuva com o terreno argiloso no coração do parque industrial desmascarou da pior maneira a forma que reside parte da população mais pobre e trabalhadora. Quase 28 anos depois a Vila ainda sofre com o descaso do poder público burguês diante dos problemas estruturais.

Foto após o desastre em 1992.

Atualmente Minas Gerais lida com os mesmos eventos: desastres em épocas chuvosas. Belo Horizonte, Contagem, Betim e outras cidades da região metropolitana são palco de destruição e desespero para centenas de famílias com a intensificação da chuva.

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O que leva à reflexão de como mudar esse quadro - tendo em vista que historicamente as centenas de obras pontuais promovidas por governos diversos não chegam nem perto de resolver a questão das águas - para que milhões de pessoas no país inteiro não tenham que conviver com a miséria de não saber se terá um teto sobre a cabeça quando o tempo fecha.
Ocupar o local do rio e degradar a natureza em volta provoca as enchentes, é um produto da urbanização, entretanto, no capitalismo a tendência do desenvolvimento desigual define cor e classe aos atingidos por esse fenômeno. A poluição da água, as enchentes e inundações, os deslizamentos, ao contrário do que parece, não são problemas estritamente técnicos, são problemas políticos. Quando envolve vidas e um bem comum, como a água, se transformam em questões tocante a uma coletividade. No caso do saneamento, a empresa que atua como poluidor se apropria privadamente de um bem comum, o que é um problema político. Existe tecnologia para que as águas urbanas sejam tratadas como integrante vivo do cotidiano, no entanto, conveniente ao lucro são assolados com a mortandade.
No Brasil tem mais de 6 milhões de imóveis desocupados, ainda assim o país atingiu a maior marca do déficit habitacional em 10 anos. Esses imóveis servem apenas à especulação imobiliária que cumpre um papel criminoso à população e as cidades há décadas, sendo o poder público incapaz de fazer valer a função socioambiental da propriedade privada. Lei que deveria condicionar a decisão da sociedade os interesses de determinada propriedade. E ano após ano a realidade dramática impõe necessidades que assistencialismo ou medidas paliativas eleitoreiras mal fazem cócegas.
Portanto, para que de fato cumpra essa função é necessário a disponibilização imediata dos imóveis e terrenos - que estão nas mãos de grandes capitalistas como empreiteiras e que servem apenas ao lucro infligindo diretamente sobre o direito à moradia, a serviço das demandas das famílias afetadas e desabrigadas pelas tragédias.
O governo não oferece e não dispõe de mecanismos eficientes que sejam capazes de atender às demandas das comunidades atingidas. Se torna necessário a construção de um plano de emergência contra enchentes e desastres ambientais. Que democraticamente ampare, em primeiro lugar, e em seguida vislumbre uma nova relação com as águas urbanas.
As respostas apresentadas aos impasses estruturais advindos das chuvas devem também passar por um indispensável plano de obras públicas. Por uma batalha pela reforma urbana a serviço da população e não dos capitalistas, que não se agarre a mero reformismo, mas na possibilidade de atuar radicalmente. Que sejam levadas à frente com base na taxação de grandes fortunas dos banqueiros e grandes empresários, no confisco de bens dos grandes donos de empresas que causam danos socioambientais. Para que os interesses da população sejam de fato concretizados é preciso que as coletividades tenham o direito de definir a produção do espaço!

Frente a tudo isso, todas essas ideias são um exercício necessário para uma saída que supere a destruição causada pelas elites favorecidas pelo capitalismo. No caminho de pensar em um programa que caminhe pela superação do sistema conforme hoje cada vez mais se torna evidente sua barbárie. Um sistema que utiliza a propriedade privada dos meios de produção social para submeter bilhões à miséria, a catástrofes e à destruição iminente do planeta.

NOTAS
1 - ANA, Agência Nacional de Águas. Hidrologia: Sala de Situação: fique por dentro. Capacitação para gestão das águas, [S. l.], p. —. Disponível em: https://capacitacao.ead.unesp.br/dspace/bitstream/ana/126/1/_Apostila_do_Curso_-_Sala_de_Situa%C3%A7%C3%A3o_fique_por_dentro.pdf.

2 - QUEIROZ, Ana Maria Martins. Belo Horizonte para quem?: Versões territoriais negras para um espaço planejadamente branco. GeoTextos, [S. l.], v. 11, n. 1, p. 13-35, 1 jul. 2015.

3 - PASSOS, Daniela. A Formação Do Espaço Urbano Da Cidade De Belo Horizonte: Um Estudo De Caso À Luz De Comparações Com As Cidades De São Paulo E Rio De Janeiro. MEDIAÇÕES, Londrina, v. 21, n. 2, p. 332-358, 10 fev. 2016.

4 - No século 19, George-Eugène Haussmann foi incumbido de levar à frente em Paris uma reforma urbana pela afirmação de uma nova ordem espacial. Instrumento burguês para desmantelamento de qualquer articulação socioespacial como as desenvolvidas durante a Comuna de Paris em 1871.

5 - WERNECK, Gustavo. A BH das 200 enchentes. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. —, 7 jan. 2012. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/01/07/interna_gerais,271132/a-bh-das-200-enchentes.shtml. Acesso em: 26 jan. 2020.


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