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BBB, racismo e capitalismo

Renato Shakur

BBB, racismo e capitalismo

Renato Shakur

Capitalismo, racismo e as teorias raciais

As teorias raciais surgiram no século XIX junto com o termo raça. As diferenças biológicas que os naturalistas estabeleciam desde as bases do Iluminismo para classificar os povos do Novo Mundo foram profundamente alteradas com a emergência das discussões sobre raça. Até então se tinha bastante vigente a ideia do “bom selvagem”, arraigada em preconceitos e pseudocientificismo, os colonizadores europeus viam os povos americanos, principalmente, mas, sobretudo o mundo, desde essa ótica: apesar de não serem europeus/civilizados e portanto portadores de uma inferioridade humana natural, desde seus traços biológicos com profundas ligações aos aspectos geográficos e culturais de cada povo, havia a possibilidade de resistir à essa natureza inata e suas tendências. Isto é, a interpretação rousseauniana sobre a “perfectibilidade” humana estabelecia, dentro de uma margem muito pequena imposta pelo colonialismo, que o “bom selvagem” teria uma capacidade inerente a todos os homens superar natureza imposta a todos os homens que no caso dele significado superar a condição de incivilizados.

O desenvolvimento do capitalismo mostrou que essas ideias ficaram ultrapassadas. Evolucionistas burgueses passaram então a desenvolver novas formas de reflexão sobre a origem da humanidade, porque a anterior não dava a base teórica suficiente para poder escravizar os negros africanos, já que os homens teriam a capacidade de superar seus estágios naturais de atraso moral e cultural. O poligenismo surge, em meados do século XIX, como uma primeira tentativa de realocar as ideias vigentes às necessidades econômicas. Esta tese afirmava que a humanidade deriva de diversas matrizes e não apenas de uma como a tese monogenista, que definia apenas uma origem da humanidade desde as escrituras bíblicas. Através de leis biológicas e naturais, o poligenismo estabeleceu que esses diversos centros de criação da humanidade na verdade partiam de diferenças raciais, fortalecendo uma interpretação biológica do comportamento humano [1].

Essas diferenças raciais não eram apenas classificatórias, diziam respeito à capacidade humana, ou seja, se no século anterior os homens tinham a capacidade de se transformar - com uma margem bem pequena para tal acontecimento, perseguindo uma ideia de povo civilizado europeu - agora isso não poderia mais ocorrer. Suas diferenças não eram mais naturais, elas advinham de sua raça, de sua forma humana específica e a partir dela derivavam degenerações e incapacidades incorrigíveis. Não à toa as teorias racistas como a antropometria e frenologia que media o tamanho do crânio e calculava a proporção do cérebro para definir a capacidade humana foram criadas. Além da antropologia criminal que definiu a criminalidade desde aspectos hereditários e físicos. O pano de fundo dessas mudanças nas teorias evolucionista e biológicas foi correlata ao desenvolvimento do capitalismo. Como explica o historiador Eric Williams:

“Com a população reduzida da Europa no século XVI, não haveria como produzir a quantidade necessária de trabalhadores livres para uma produção em larga escala de cana de açúcar, tabaco e algodão no Novo Mundo. Por isso, foi necessária a escravidão; e, para conseguir escravos os europeus recorreram primeiro aos aborígenes e depois à África” [2].

As teorias raciais do século XIX criaram o ambiente perfeito para a escravização dos negros africanos já que os primeiros anos de colonização europeia nas Américas havia exterminado as populações indígenas. Até meados do século XIX a escravidão negra não se justificativa por critérios raciais. Os trabalhadores do campo na Europa não dariam conta da demanda econômica da exploração de matérias primas em larga escala. Segundo Williams, o assalariamento era mais lucrativo sempre que não houvesse mão de obra escrava em abundância; as teorias raciais definiram os povos negros moralmente incapazes e propensos ao crime por conta de suas características físicas. A escravidão africana não apenas foi chave para exploração e para que a burguesia em ascendência pudesse comercializar ainda mais seus produtos em novos mercados como as Índias. Williams demonstrou também como o próprio tráfico de escravos foi uma fonte de lucros bastante importante para os burgueses darem os primeiros passos em direção à revolução industrial inglesa, as famílias envolvidas no tráfico de escravos foram as que mais lucraram com a revolução industrial. O racismo surgiu como a principal forma de explorar matérias primas nas Américas, acumular capital e o desenvolvimento da indústria inglesa, através da mão de obra escrava africana.

Na África antes do tráfico, se tinha uma escravidão bastante diferente, ou seja, não era estabelecia através de diferenças raciais, inclusive senhor e escravos tinham a mesma cor. O historiador Felipe de Alencastro remarca muito bem as diferenças entre a escravidão pós século XIX e a anterior no continente africano. Esta última era feita através de razias (incursões a territórios de povos inimigos para roubar escravos) e guerras. O escravo trabalhava junto aos povos africanos vencedores, sem distinção nenhuma entre os camponeses. Numa guerra ou numa incursão podia-se contar nos dedos de uma mão a quantidade de escravos obtida [3]. O tráfico atlântico e o capitalismo conferiram ao negro africano escravizado um valor no mercado e o número de escravizados não se contava mais em poucas unidades, mas aos milhões.

O militante trotskista George Breitman, também observou que não existia preconceito racial em sociedades pré capitalistas. Segundo ele, “o preconceito contra o negro surgiu das necessidades do capitalismo, é um produto dele, pertence a ele e somente morrerá quando esse sistema perecer” [4]. O tamanho de nossas bocas, a cor de nossa pele, a textura de nosso cabelo, mas também o tamanho dos crânios, a religião, cultura e os territórios de onde vinham nossos antepassados, tudo isso foi usado para estigmatizar, inferiorizar e, principalmente, lucrar. O racismo foi criado para escravizar povos africanos para trabalharem nas lavouras nas Américas, o tráfico de escravos foi uma fonte de acumulação de capital inestimável para burguesia. A criação das teorias raciais e do próprio termo raça coincidiu propositalmente com o desenvolvimento do capitalismo. Para acabar com a opressão racial é necessário destruir o capitalismo.

“Nossos Blacks não estão em jogo!”

Nas últimas semanas no programa Big Brother Brasil da rede Globo vimos mais uma vez cenas de racismo. Um dos participantes, Rodolffo, fez na visão dele uma “piada” de muito mal gosto comparando uma peruca de cabelo que seria de um homem das cavernas ao cabelo black power do participante João Luiz. Ou seja, comparou o cabelo crespo de João a um cabelo aparentemente sujo, todo emaranhado, muito longe de qualquer estereótipo de beleza no capitalismo. Não se trata de uma opinião pessoal, um comentário inapropriado ou uma gafe. Isso é racismo! Ele teve uma atitude racista e bem no momento que pôde pedir ao menos desculpas para o João, insistiu que era apenas uma “brincadeira” e que seu cabelo parecia de fato com a peruca do homem das cavernas. Depois tentou se justificar dizendo que aquilo não era racismo porque seu pai é negro (sic).

O cabelo black power é um símbolo de resistência. Na luta por direitos civis na década de 1960, entre os militantes de organizações marxistas como o Partido dos Panteras Negras, as militantes do coletivo Combahee River e os militantes do D.R.U.M. (Dakota Revolutionary Union Movement), usavam o cabelo black power expressando o orgulho racial na luta contra a opressão, exploração e por direitos políticos e sociais. Na década de 1970 no Brasil, os cabelos blacks power se perpetuavam nas periferias e favelas nos bailes black cariocas, os militantes das entidades negras e organizações como MNU também levantavam seus blacks contra a ditadura. Sem sombra de dúvida o cabelo crespo não se parece em nada com o cabelo de um homem neandertal, sua história se liga as histórias de milhões de negros que se dedicaram a luta contra o racismo, a opressão, os supremacistas brancos, o imperialismo, o capitalismo e a ditadura militar. Quando assumimos nosso cabelo crespo, carregamos nas costas um pouco dessas histórias.

João sabe disso. Quando reivindica a identidade negra com seu cabelo natural, crespo, quer falar para milhões de pessoas algo que é muito difícil dizer no capitalismo: que ama sua raça, ama sua cor e tem orgulho de ser negro! Numa sociedade como a nossa isso fica ainda mais difícil. Foram anos de escravidão onde organizaram nossos fenótipos através de critérios racistas para explorar as massas trabalhadoras negras e destina a elas um condição de precariedade e miséria. As consequências disso se podem sentir até hoje. Não à toa João quando ouviu aquela ofensa racista prontamente quis se abrir com outra participante negra, Camila de Lucas, e dizer que aquilo remeteu a outras memórias e experiências racistas que são tão difíceis de acessar. Aquele insulto tocou sua pele e feriu sua alma. Coisas como essa nos fazem reviver histórias que preferimos esquecer. Por isso João chorou, com toda certeza junto a milhões negros e negras que estão com esse grito entalado na garganta para dizer aos quatro cantos do mundo que vão lutar contra o racismo e tem orgulho de ser negro. Um choro de tristeza, raiva, impotência, mas também de basta! Não vamos mais aceitar “piadas” com nossos cabelos e cor de pele. Algo tão naturalizado num país profundamente racista e onde ainda permanece a ideologia da democracia racial, um país supostamente sem racismo por ser miscigenado e onde o passado escravista é uma página virada em nossa história.

João quando quis abrir a todos participantes do programa, inclusive a Rodolfo, num “jogo” que é transmitido ao vivo chamado “jogo da discórdia”, quis gritar junto a milhões de trabalhadores e jovens negros que passam por esse tipo situação na escola, nos locais de trabalho, supermecados, bancos, etc. que não vão mais aceitar nenhum insulto ou comentário racistas com seus cabelos ou tom de pele. Aqueles que compartilham desse sentimento e atitude do João expressam algo profundamente progressista não só porque não ficam mais calados frente aqueles que nos tratam com racismo, mas também porque identificam até mesmo nas palavras marcas profundas de séculos de escravidão e exploração; questionam pela esquerda o mito da democracia racial. Um setor de massas que também é inspirado pelo black lives matter, não tem mais medo de reivindicar sua identidade e ama sua cor.

A Globo é antirracista?

O racismo é parte fundamental de um engrenagem de manutenção da exploração em favor de uma classe parasitária que não trabalha, apenas lucra com o suor dos trabalhadores, a burguesia. O racismo como estrutura de uma sociedade dividida em classes, tem uma origem histórica, na acumulação do capital, no desenvolvimento das teorias raciais e da própria burguesia enquanto classe dominante. Tem também um desenvolvimento escravista e uma dimensão econômica que destinou aos negros um lugar de opressão e exploração. Qualquer saída individualizante para o racismo não pode combater essa estrutura. Em torno do caso de racismo do Rodolfo surgiu um debate bastante importante sobre como combater o racismo. O que só pode se dar através de uma luta antiracista e anticapitalista. Certamente aqueles que acham que o racismo sofrido por João não passa de “mimimi” ou foi um “exagero” nada tem a contribuir a luta antirracista e num país de Bolsonaro, Sergio Camargo, militares e golpistas de todos os tipos, se alinham a certas ideias da extrema direita que tentam deslegitimar a militância antirracista e negar o preconceito racial.

A cultura do cancelamento expressa algo muito sensível, são centenas de milhares de pessoas nas redes que sofrem junto a João, brancos e negros que acham inadmissível essa fala racista. Mas uma luta que não questiona a estrutura que mantém o racismo não consegue dar uma resposta de fundo aos milhões de trabalhadores negros que sofrem com o racismo diariamente, estão desempregados ou em sub empregos, compõe uma massa carcerária onde 41,5% [5] segue sem julgamento, recebem salários inferiores aos homens brancos, que morrem mais pela covid, pela mãos da polícia, etc. A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância no Rio de Janeiro abriu uma investigação contra Rodolfo, por crime de preconceito racial [6]. Muito menos a polícia pode dar essa resposta, uma instituição que promove o encerramento da juventude negra, a perseguição e criminalização do funk e números absurdos de violência policial e assassinatos contra a população negra.

Nas redes e no próprio programa, se levantou uma ideia bastante importante e que remonta uma luta histórica do movimento negro por uma educação antiracista. Não podemos afirmar que caso Rodolfo tivesse recebido uma educação antirracista ou pesquisado na internet a história dos negros, não teria sido racista a ponto de ridicularizar o cabelo de João. Fato é que pelo mesmo motivo de não reconhecer que aquela atitude é uma atitude racista em pleno século XXI, onde ele tem acesso a internet e pós black lives matter onde o mundo inteiro presenciou um movimento histórico nos EUA contra o racismo, também diz muito sobre ele. A educação antirracista certamente é importante, mas enquanto estiver descolada de uma luta anticapitalista é parcial, não pode se enfrentar contra o que estrutura o racismo. Há a necessidade de combater o sistema capitalista de conjunto.

A própria Globo através do Tiago Leifert, âncora do programa BBB21, tenta se apresentar como uma “saída” para as questões que envolvem o racismo, promovendo a representatividade negra em seus programas, quadro de funcionários e incorporando em sua programação o debate racial e antirracista. Mas é claro, ela o faz de uma maneira que deixe de fora todo o conteúdo subversivo, anticapitalista e revolucionário da questão negra. Isso porque, a Globo quando utiliza o discurso antirracista tem a intenção de se diferenciar do Bolsonaro nas pautas culturais, enquanto convergem junto a todo regime do golpe nos ataques aos direitos dos trabalhadores. Ela tenta também canalizar através de uma representatividade sem conteúdo de classe um sentimento de massas que se expressam de forma política e ideológica entre milhões de brasileiros através da identidade negra, mas que ainda não se expressa numa militância ativa fora das redes.

A Globo filmes lançou nos últimos anos o documentário da Marielle Franco, tentando se colocar como parte do legado que luta pelos direitos humanos. Pura mentira, a Globo é uma entusiasta ferrenha da guerra às drogas que encarcera e assassina a juventude negra nas favelas e transmitiu de forma “hollywoodiana” a implementação das UPP’s no Rio que teve um saldo nada positivo de mais repressão policial a trabalhadores, o assassinato de Amarildo e aumento das áreas dominadas pelas milícias. São inúmeros os âncoras e as âncoras negras, podcasts que tratam da temática racial, coletivo negro de funcionários e diretores, series como policial negro da BOPE, tudo para dar uma saída ao racismo por dentro do regime do golpe. Isso é parte da necessidade legítima de setores de massas se verem representados, porque somos mais da metade da população e de questionar profundamente o racismo. Mas a Globo assim o faz também desde uma estratégia que não ajuda a mudar o quadro geral da exploração dos trabalhadores e trabalhadoras negras. Pós black lives matter essa preocupação redobrou, justamente porque a luta negra nos EUA impactou o mundo inteiro e não seria diferente no país mais negro fora da África.

O oportunismo da Globo na temática racial fica escancarado quando o próprio Tiago Leifert em seguida de João ter chorado em rede nacional relatando o racismo que sofreu, dá continuidade ao programa dizendo “isso é BBB”, “isso é fogo no parquinho”. Não teve o mínimo de sensibilidade em um momento difícil para o João; fica claro que para o Tiago Leifert e a Globo racismo é entretenimento, é apenas um jogo onde os participantes brigam e se chateiam. Houve um rechaço grande nas redes, principalmente no twitter, a postura de Tiago. Logo no próximo programa ele tentou se relocalizar com um discurso que foi reivindicado por setores do movimento negro sem nem ao menos levantar os limites da Globo apresentar um conteúdo daquele tipo.

Tiago Leifert fez uma fala bastante sensível à dor de João, porque viu que tratar o racismo de uma forma indiferente como fez no dia anterior, separa a Globo desse sentimento ligado à identidade negra e suas expressões antirracistas. Nessa fala, lembrou da trajetória do movimento pelos direitos civis nos EUA, sem tocar sequer nas experiências socialistas e marxistas na luta pela libertação negra que combatiam numa luta só o racismo e o capitalismo. Falou positivamente do cabelo black power e como sua reivindicação tem no aspecto subjetivo do orgulho racial uma importância profunda para a população negra. Reivindicações que não expressam quanto a Globo se importa com tais debates, mas justamente para Tiago e a Globo se relocalizarem frente ao rechaço que receberam, precisam dialogar com o peso que tem o identitarismo em setores de massa e também precisam dialogar com a importância da reivindicação do cabelo black power e da história negra por conta de setores de vanguarda darem um peso importante para esse debate. Mesmo assim, o oportunismo da Globo não deixou de aparecer. Tiago Leifert disse que nesse caso do racismo com o cabelo do João “não existe certo e errado”, que não via maldade no que Rodolfo fez, que “nós brancos precisamos nos informar” e nem chegou a tocar na palavra racismo.

Certamente a Globo não pode dar nenhuma saída para o racismo estrutural, como parte fundamental do capitalismo, o racismo não pode acabar se não cair todo esse sistema que destina aos negros desde sua origem um lugar de miséria e exploração. Na verdade, ela se apoia em um concepção da luta antirracista liberal para canalizar através da representatividade a luta antirracista que em ultima instância só serve a manutenção do sistema capitalista. Parafraseando C.L.R. James, militante negro e marxista que militou durante anos no trotskismo, podemos apontar um prognóstico pro futuro, onde não seremos mais hostilizados por nosso cabelo e nossa cor, não morreremos mais pelas balas da polícia em um mundo sem exploração. Segundo ele, os negros desempenharam uma papel fundamental na transição do feudalismo para o capitalismo, “somente desse ponto de vista correto seremos capazes de valorizar (e nos preparar para) o papel ainda maior que [os negros] necessariamente desempenharão na transformação do capitalismo em socialismo” [7].


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FOOTNOTES

[1Lilia Schwarcz. “O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930)”, p.65.

[2Eric Williams. “Capitalismo e escravidão”. p. 33

[3Felipe de Alencastro. “O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul”.

[4George Breitman. “Quando surgiu o preconceito contra o negro”, p.55

[7C.L.R. James. “A revolução e o Negro”. p. 24.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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