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A rebeldia não se tornou de direita

Fernando Scolnik

A rebeldia não se tornou de direita

Fernando Scolnik

Uma guinada à direita do regime, uma eterna crise econômica que ameaça piorar durante uma corrida por dólares e ameaças de mais ajustes, e uma casta escandalosa. Um sistema de partidos com falhas em relação à sua própria base social. Razões para entender por que a voz de Myriam Bregman ressoou tão forte.

Quando se observa a política apenas através dos movimentos de sua superestrutura, o risco de erro está presente logo ao dobrar a esquina. O perigo é sempre estabelecer uma correspondência mecânica entre o que acontece nesse terreno das instituições e dos partidos, e os movimentos no plano das ideias e das relações de força entre as classes.

Esse problema pode estar acontecendo na Argentina, por exemplo, entre a não comprovada identidade entre resultados eleitorais e aceitação de planos de ajuste mais severos, o que ainda precisa ser comprovado pela realidade, cujos resultados não estão escritos de antemão. A rebelião em Jujuy há alguns meses antecipou essa tendência, até os conflitos atuais que estão avisando que algo não está certo. Em um momento de corrida por dólares, sobre a base de uma inflação altíssima e a uma situação social delicada. São prelúdios das novas lutas que estão por vir.

Mas se tivermos que retroceder no tempo para escolher uma data que explique o desalinhamentos desta crise orgânica que está ocorrendo - o atrito entre o peronismo e sua base progressista -, provavelmente teríamos que voltar a 2 de julho de 2022, para recapitular um dos pontos de viragem na história que explica alguns dos desencantos do cenário atual. No futuro, quando recapitular a história da extinta Frente de Todos, possivelmente elegerão esse dia como um ponto de inflexão. Naquela ocasião, Cristina Kirchner fazia um discurso em Ensenada, sem saber que enquanto ela falava, o país já estava em chamas. Martín Guzmán havia renunciado ao Ministério da Economia em um tuíte explosivo.

A mudança que se gestou naquele dia não foi apenas conjuntural. As semanas de desordem política e caos econômico que se seguiram - embora tenham sido gestadas muito antes - colocaram o kirchnerismo à prova, confrontando sua retórica com seus atos. Até então, no discurso da corrente política associada à vice-presidente, os responsáveis pelos maus resultados do governo eram Alberto Fernández e seu ministro, Martín Guzmán, a quem criticavam por implementar planos de ajuste. No entanto, naquela hora crítica, o kirchnerismo demonstrou que, depois de fazer um aceno à esquerda, estava girando à direita. A história é conhecida: após um breve interregno com Silvina Batakis, o peronismo oficialista deu os braços para alçar Sergio Massa não apenas como superministro da Economia, mas como presidente de fato, deixando Alberto Fernández em um papel decorativo. Desde então, o homem de Tigre desfruta de uma margem de manobra que seu antecessor invejaria: ele conta com o apoio completamente acrítico de Cristina Kirchner, apesar de estar aplicando de forma ainda mais rigorosa os planos de ajuste do FMI.

As consequências dessa mudança, como mencionado, vão além da conjuntura e têm implicações na reconfiguração do regime político, para a qual recorreremos a uma analogia, sempre imperfeita. Nos últimos anos, algumas correntes da Ciência Política norte-americana têm usado o conceito de polarização assimétrica para se referir a uma especificidade de seu país: um conflito acentuado entre o Partido Democrata e o Partido Republicano, com a particularidade de que este último se moveu fortemente para a direita (com Donald Trump à frente), sem que isso tenha correspondência em uma mudança equivalente para a esquerda no primeiro, que permaneceu ao centro.

Ressalvando as diferenças, algo desse esquema conceitual pode ser usado para pensar a Argentina atual, na qual o antigo regime político bipartidário entre o macrismo e o kirchnerismo está morrendo, para dar lugar a algo novo que ainda não terminou de nascer, e nessa transição oferece fenômenos aberrantes. A direita argentina se radicalizou - com o surgimento de Javier Milei e a vitória da ala direita da Juntos por el Cambio nas primárias - enquanto o peronismo perde peso relativo - e gradualmente abandona suas antigas bandeiras - a centro-esquerda kirchnerista, que validou uma candidatura como a de Sergio Massa.

Mas os movimentos da superestrutura, como mencionado, não expressam mecanicamente o que acontece na base da sociedade. Não apenas devido à natureza confusa e contraditória do fenômeno emergente - Javier Milei - mas também porque, nesse movimento para a direita, o peronismo encontra atritos entre representantes e representados: o apelo para votar em Sergio Massa é um campo de batalha de debates com eleitores convocados a votar em alguém que não representa os valores que lhes foram apresentados no discurso ao longo dos anos: um discurso nacional e popular, uma melhor distribuição de renda, uma política de direitos humanos ou o empoderamento do movimento das mulheres. Todas as promessas que entram em conflito com aqueles que, até poucos anos atrás, eram considerados traidores. A necessidade de candidatar Juan Grabois nas primárias (que agora está pedindo votos para Massa) já era expressão das tensões que existem nesses movimentos e da necessidade de tentar administrar gradualmente a guinada para a direita, com saídas temporárias.

Como se isso não bastasse, nos últimos dias, Sergio Massa convocou um governo de unidade nacional não apenas para direitistas repressores como o governador de Jujuy, Gerardo Morales, mas também para membros do PRO ou de La Libertad Avanza, de Javier Milei.

Como se isso não fosse suficiente, um escândalo de ostentação explicitamente neomenemista [1], a luxuosa viagem de Martín Insaurralde à Europa, terminou sendo uma provocação para qualquer valor minimamente progressista: é o contraste entre uma taxa de pobreza de 40,1% em crescimento e a vida ostensiva de um dos principais funcionários do governador de Buenos Aires, Axel Kicillof. Tudo isso, acrescido das revelações sobre o papel do peronismo que apoiou as candidaturas dos libertários em diferentes distritos.

Nessas fissuras de um regime que se move para a direita, e especialmente em um peronismo que está se movendo para um neomenemismo com apoio kirchnerista sem ter derrotado culturalmente os setores de sua própria base social que têm valores progressistas, a voz de Myriam Bregman emergiu com força. Bastou um debate com uma audiência massiva (o que não aconteceu nas primárias) para demonstrar, embrionariamente, o alcance que as ideias de esquerda podem ter diante da crise. Uma esquerda que alguns estão apenas conhecendo, mas que muitos outros também conhecem por sua coerência, suas lutas, seus valores e por sempre ter estado do mesmo lado.

Enquanto as três principais candidaturas defendem seguirmos sob a influência do FMI em um momento em que a pobreza, a inflação e novas crises cambiais estão aumentando ameaçadoramente, ou promovem privatizações de recursos naturais, seu papel no debate presidencial aumentou a moral de milhões que esperavam que alguém dissesse o que precisava ser dito. Porque contra os promotores em tempo integral da resignação, a enorme repercussão de sua participação demonstrou que não é apenas a Frente de Esquerda, mas também há milhões de pessoas esperando por uma voz clara, sem especulações ou mesquinharias, para enfrentar a direita e as políticas de ajuste. Que não se sentem convocados e convocadas a votar com entusiasmo em um projeto que nos levou à situação atual.

Na reta final das eleições vão te chamar novamente para abaixar suas bandeiras e seus princípios em nome do mal menor, e até tentarão fazer você acreditar que outubro é um segundo turno. Mas não deixe que te calem. Vote com convicção e rebeldia, porque a batalha está apenas começando e os planos de mais ajustes, desvalorizações e reformas estruturais estarão na ordem do dia. Levantar com orgulho nossas bandeiras é a melhor preparação para o que está por vir. Uma forte expressão eleitoral abre o caminho para a resistência que terá que ser redobrada e para uma perspectiva de mudança na história.


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FOOTNOTES

[1Carlos Menem, presidente entre 1989 e 1999, ficou famoso pelo luxo oriundo dos pactos de privatização, sua base partidária ia do peronismo à direita, o fim de seu mandato se deu sobre uma enorme crise econômica e grande explosão social entre 1999 e 2001
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Fernando Scolnik

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