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DEBATE - PSICANÁLISE E MARXISMO | A psicanálise em questão

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

sábado 12 de maio de 2018 | Edição do dia

(texto publicado originalmente na revista Ideas de Izquierda número 5 em 2014. Tradução de Fernando Pardal)
Ilustração: Sergio Cena

É inegável que Buenos Aires ainda continua sendo uma das principais “capitais da psicanálise”. Termos como “lapso”, “inconsciente”, “histeria” ou “repressão” saíram do divã e se tornaram patrimônio dos significantes culturais de uso estendido à vida cotidiana. No entanto, também é um fato que a psicanálise vem resignando de sua hegemonia teórico-clínica, desbancada por um leque de terapias breves e outras escolas psicológicas[1], como a terapia cognitiva e a neuropsicologia, que acompanham a crescente medicalização do sofrimento psíquico e do mal estar subjetivo.

Esta tendência a medicalizar a queixa, a angústia e inclusive a “hiperatividade” de crianças desobedientes apenas se aprofundou. A publicação da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V) acendeu as luzes de alarme em diversas associações de psiquiatras e psicólogos (começando pelo ex-editor do DSM-V, Allen Frances)[2] devido à ampliação do uso do rótulo de enfermidades mentais a um arco cada vez maior de comportamentos, aumentando exponencialmente as possibilidades de tratamento farmacológico, de duvidoso êxito terapêutico mas muito rentáveis para a indústria farmacêutica[3]. O imaginário do divã está sendo substituído pela fantasia da “pílula salvadora”.

Os psicanalistas responderam de diversas maneiras diante dessa crise. Para alguns basta reivindicar a herança autorizada de Freud e Lacan para seguir ocupando o lugar tradicional que historicamente têm entre as classes médias ilustradas das grandes cidades. Outros consideram uma revisão autocrítica que permita responder aos novos tempos e evitar cair em posições abertamente reacionárias[4]. A partir de uma perspectiva marxista, continua sendo necessário um exame crítico dos fundamentos teóricos da psicanálise como condição para resgatar o núcleo de verdade sobre a constituição subjetiva de seu envoltório mistificador.

De “método perigoso” a “polícia edipiana” dos bons costumes?

Em seu início, a psicanálise foi portadora de uma crítica à dupla moral da sociedade burguesa e à distribuição desigual da carga repressora: sobre as crianças e as mulheres e, posteriormente, sobre as classes populares.

Sem dúvida, para além do fato de que Freud nunca pretendeu elaborar uma teoria (nem uma prática) crítica da sociedade capitalista, suas descobertas científicas – notavelmente o inconsciente e o estatuto da sexualidade (infantil) – desnudaram o enorme custo subjetivo da repressão sexual, a quail, apesar das oscilações teóricas do próprio Freud, é lícito interpretar como proveniente de “fora” (ou de seu substituto psíquico, o superego), sobretudo se tomamos as formulações dos textos “sociológicos”, isto é, O Futuro de uma Ilusão (1927) e O mal estar na civilização (1930), cujas teses principais já estão antecipadas em A moral sexual “cultural” e a neurose moderna (1908). Isto valeu a Freud, apesar de ser um “conservador ilustrado” (Roudinesco), a condenação de muitos de seus colegas da Sociedade Médica e das diversas igrejas. E também atraiu a atenção de muitos marxistas, começando por Trotski que, como é conhecido, refletiu em várias oportunidades sobre a teoria freudiana e era um dos defensores do direito de exercer a prática analítica, que efetivamente se desenvolveu durante os primeiros anos do Estado operário revolucionário russo[5], e que depois foi proibida pelo estalinismo. Hoje, há mais de um século de sua fundação, ninguém diria que a terapia criada por Freud continua sendo um “método perigoso”, parafraseando o título do filme muito bom de Cronenberg. Sem dúvida foi metabolizado e, há tempos, é parte do “mainstream” cultural e ideológico, longe de toda pretensão contestatória. Se vemos o papel social atual da psicanálise, podemos afirmar sem medo de nos equivocarmos que nada resta desta exposição da hipocrisia moral da sociedade burguesa, ainda que no sintoma neurótico, que foi sua marca de origem no fim do século XIX. É evidente que à luz da nova explosão de diversas subjetividades que reclamam seus direitos e seu reconhecimento, uma teoria que sustenta como chave da constituição subjetiva uma lógica binária de diferenciação sexual – inclusive embasando a definição de bissexualidade constitucional freudiana – não pode ser considerada subversiva nem provocadora. No entanto há instituições que mantém a homossexualidade no estatuto marginal das perversões a que foi condenada após Freud resgatá-la do universo das “doenças” e que a pressão dos movimentos por direitos civis obrigou, no início da década de 1970, a retirar da lista de doenças mentais dos manuais de psiquiatria. Ainda que seja incrível, foi necessário esperar até 2003 para que a IPA desistisse de discriminar os psicanalistas homossexuais[6]. Fora do âmbito das instituições analíticas, as consequências sociais destas posições conservadoras são francamente reacionárias, como se pôde ver na oposição ativa de psicanalistas franceses à lei do matrimônio igualitário e da adoção de filhos para pais homoparentais, o que na prática os colocou no campo mais retrógrado da direita católica. Em um documento escandaloso, assinado por vários psicanalistas, é sustentado que ainda que a legislação sobre o matrimônio igualitário responda a uma demanda legítima de igualdade de direitos sociais, “desconhece a diferença existente entre a união heterossexual e a união homossexual quanto à procriação, à filiação biológica heterossexual e o direito da criança conhecer essa origem”. E mais adiante afirma que:

A diferença de sexos não é um assunto ideológico mas sim da realidade e da estruturação: ela provém da anatomia (código genético), e de um processo psico-afetivo (importância da função paterna no complexo de Édipo) que estrutura a criança, permite tornar-se homem ou mulher e desejar ao sexo oposto em um encontro que tornará possível a procriação. Para a posição homossexual, o desejo não está ligado à diferença mas sim ao mesmo sexo, o que torna impossível a procriação[7].

Em uma entrevista, a historiadora e psicanalista E. Roudinesco, que há muito tempo vem alertando sobre essa domesticação da psicanálise, faz um diagnóstico lapidar dessa situação. Segundo ela, os psicanalistas:

... não produzem trabalho teórico. Suas sociedades funcionam como as corporações profissionais. Condenam a homoparentalidade; a procriação assistida ou a onipotência materna contra a função paterna, isto é grave: os psicanalistas não devem se tornar policiais da boa conduta em nome do Complexo de Édipo. Fazem os diagnósticos na mídia e abandonam a questão política: majoritariamente, são estetas céticos desvinculados da sociedade[8].

À direita e à esquerda de Freud

Não há um questionamento nem uma explicação unidirecional sobre em que consistiria essa crise, ainda que as publicações dos últimos anos, como O livro negro da psicanálise (2004, A. V.) ou Freud. O crepúsculo de um ídolo (2010, M. Onfray) parecem seguir o movimento à direita do pêndulo no terreno da interpretação e o tratamento das doenças psíquicas. Esse tipo de crítica reproduz muitos dos velhos preconceitos e dogmas biologiscistas que, com uma pretensa linguagem “científica”, são o complemento ideal das terapias psicofarmacológicas. Como contrapartida dessa ofensiva, surgiram correntes críticas que tardiamente tentam colocar a psicanálise em sintonia com a enorme inversão ideológica da direita à esquerda que, com todos seus limites, notavelmente sua falta de perspectiva de classe, vem ocorrendo desde o surgimento do movimento altermundista e que, sobretudo a partir do eclodir da crise capitalista, restabeleceram o lugar do marxismo como crítica à sociedade de exploração. Alguns exemplos dessa tendência (minoritária) são os Estados Gerais da Psicanálise[9] ou as elaborações de S. Zizek procurando fazer uma síntese – sem êxito – entre o marxismo e a teoria lacaniana em uma ontologia do sujeito revolucionário[10]. Contudo, tudo indicaria que não conseguiram sacudir o conservadorismo teórico e institucional imposto pelos que se autorizam a administrar a herança de Freud e Lacan.

A partir do ponto de vista dos que se reivindicam marxistas, a delimitação com a crítica “pela direita”, ainda que necessária, não é suficiente por si mesma para fundamentar uma tomada de posição. É possível e desejável fazer uma crítica “pela esquerda” – marxista – à psicanálise atual? Por trás do notório fracasso do chamado “freudomarxismo” e o divórcio cada vez mais profundo das instituições analíticas em relação aos processos sociais e políticos em nome da “neutralidade”, segue vigente a necessidade de realizar, se não uma síntese, ao menos um diálogo entre psicanálise e marxismo? Ou o conservadorismo heteronormativo, como coloca D. Eribon[11], determina o caráter reacionário da psicanálise (principalmente lacaniana) e a torna irrecuperável para o questionamento das repressões impostas? Indubitavelmente, este segue sendo um terreno aberto à polêmica, começando pelo fato de que é tão pouco lítico falar de um campo unificado da psicanálise como do próprio marxismo.

Freud vs. Marx. Uma introdução à polêmica

Seria ilusório pretender dar em umas poucas páginas uma resposta acabada a controvérsias que têm mais de um século de existência. Mas toda crítica deve começar por um exame dos pressupostos teóricos que lavaram a psicanálise, não como clínica mas sim como teoria explicativa da subjetivação, a ver a realidade desde a ótica estreita do conflito interno do psiquismo, com um tipo de naturalização do predomínio masculino expressa em uma concepção falocêntrica da sexualidade, e a elevar a natureza humana genérica às características psíquicas que, sem dúvidas, têm profundos determinantes histórico-sociais. Isto implica, em primeiro lugar, colocar em discussão a pretensão da psicanálise como teoria construída sobre a “clínica do particular” e sua consequente neutralidade, explicitando concepções filosóficas, históricas e políticas que subsistem à teoria.

Como forma de adiantar futuras discussões, deixaremos colocada a principal divergência teórica entre a concepção anímica do social em Freud versus a concepção materialista em Marx. Para Freud, acima das condições materiais, que indubitavelmente reconhece muito mais do que seus seguidores, primam as determinações psíquicas. Em síntese a tese “materialista” de Freud é que efetivamente os homens, ao longo da evolução, descobriram que podiam melhorar sua situação frente às forças hostis da natureza por meio do trabalho, para o qual é necessário cooperação e, portanto, a vida social, que requer, em troca, limitar a vida sexual ao amor genital, heterossexual e monogâmico, o que produz neuróticos. Este sacríficio é maior para as grandes massas que para a minoria dominante.

Mas o nó, em certo sentido materialista, desta teoria é negado pela postulação de uma hostilidade primária, uma cota de agressão, que encontra sua expressão em paixões mais fortes que qualquer interesse racional. Isto leva Freud a polemizar com a versão vulgar do marxismo e do “comunismo” que adota como própria: a abolição da propriedade privada destruiria um instrumento da agressão mas não eliminaria o “mal” porque a hostilidade em que se sustenta é prévia à instauração da propriedade privada. Se desaparecesse a desigualdade social, no entanto ainda restaria a desigualdade sexual. E se a sexualidade fosse libertada de suas repressões e se dissolvesse um dos agentes dessa repressão, a família, persistiria a característica agressiva indestrutível, típico da natureza humana.

Este núcleo idealista da explicação freudiana sobre a constituição da sociedade e as diferenças de classe serve para justificar o existente em nome de um pessimismo ilustrado e limitar o campo de ação à clínica individual iluminada por estas concepções. A explicitação desdes fundamentos, por meio de um exercício em certo sentido “desconstrutivo”, está ausente da formação acadêmica e da reflexão atual, o que impede não apenas a compreensão das diversas teorias psicanalíticas, mas, sobretudo, o debate intelectual honesto.

Desenvolver esta crítica teoria (e prática) foi um dos propósitos da chamada “esquerda freudiana” surgida na década de 1920, cujos principais exponentes foram O. Fenichel, W. Reich e S. Bernfeld. Este objetivo fracassado foi retomado posteriormente por J. Bleger e o movimento Plataforma Internacional. Quiçá tenha chegado a hora de retomar este caminho.

Veja as respostas a esse artigo: A psicanálise não é o marxismo, mas...

Psicanálise e Marxismo. Passado e Presente

[1] Sobre este tema ver, por exemplo, E. Roudinesco, Por que a psicanálise?, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

[2] As discussões acerca do DSM-V datam do início do trabalho da quinta revisão do DSM, em 1999, e abarcam desde a validade dos diagnósticos padronizados baseados em critérios biomédicos até a modificação na pauta do conflito de interesses, que permitiu que o projeto fosse dirigido por psiquiatras que desempenharam papel de consultores de grandes laboratórios, como Eli Lilly. Pouco antes de sua publicação, o National Institute of Mental Health dos Estados Unidos anunciou que vai deixar de usar as categorias diagnósticas do DSM, ainda que a crítica está enfocada a partir de um ponto de vista reducionista. Entre as inumeráveis notas na imprensa especializada sobre este debate se encontram: “Lost in the forest”, I. Hacking, London Review of Books, Vol. 35, Nro. 15, 8-15 de agosto de 2013; “The Illusions of Psychiatry”, M. Angell, New York Review of Books, 14 de julho de 2011; “Psychiatric diagnosis. Thesis antithesis and synthesis”, The Economist, 14 de outubro de 2010.

[3] Segundo um estudo do INDEC, no último trimestre de 2012 o lucro sobre psicofarmacos na Argentina cresceu 37,5% em relação ao mesmo trimeste do ano anterior, o que representa uma soma de 913 milhões de pesos argentinos, encabeçando a lista de vendas de medicamentos. Um estudo minucioso do Observatório Argentino de Drogas, realizado em 2010, indica que 3.303.629 pessoas entre 12 e 65 anos de idade haviam consumido tranquilizantes ou ansiolíticos. Una mirada específica sobre el consumo de psicofármacos en Argentina 2012, disponível em http://www.observatorio.gov.ar/.

[4] Ver por exemplo, A. Badiou y E. Roudinesco, Jacques Lacan. Pasado-Presente, Bs. As., Edhasa, 2012.

[5] Sobre a relação de Trotski e outros dirigentes do bolchevismo russo com a psicanálise e seu desenvolvimento nos primeiros anos da União Soviética, ver, por exemplo: Trotsky y el psicoanálisis, J. Chemouni, Bs. As., Nueva Visión, 2007 (ainda que não compartilhemos as posições do autor sobre o regime soviético revolucionário) e Freud y los bolcheviques, M. Miller, Bs. As., Nueva Visión, 2005.

[6] Em uma entrevista a propósito da publicação de seu livro A família em desordem, E. Roudinesco recorda a posição homofóbica assumida por pelo menos dois terços dos psicanalistas no debate sobre o matrimônio igualitário e a lei de adoção no período 1997-99. Ver: “La homosexualidad va a banalizarse”, Actualidad Psicológica, junho de 2004.

[7] “Matrimonio homosexual, derecho del niño y función paterna”, documento publicado en Lacan Quotidien 281, janeiro de 2013, a pedido de Jean-Pierre Winter. Disponible en: www.eol.org.ar. A ampla circulação destas posições fez com que Jacques Allen Miller se diferenciasse publicamente assinando um manifesto publicado em Le Nouvel Observateur e rechaçasse a oposição ao matrimônio igualitário em nome da psicanálise. Ver: “Entrevista acerca del matrimonio para todos con Jacques Allen Miller”, 10 de janeiro de 2013, disponível en: www.eol.org.ar.

[8] Fuat-il brûler la psychoanalyse?”, Le Nouvel Observateur, 19 de abril de 2012.

[9] Convocatória lançada por René Major para debater amplamente a situação da psicanálise. A primeira reunião foi realizada em Paris entre 8 e 11 de julho de 2000.

[10] Oportunamente, criticamos a posição de Zizek que, procurando sintetizar teorias contrapostas em seus fundamentos, termina em um ecletismo com predomínio do lacanismo sobre o marxismo. Ver: “A propósito de una lectura de El espinoso sujeto. El centro ausente de la ontología política de Slavoj Zizek”; C. Cinatti, Estrategia Internacional 19, enero 2003.

[11] D. Eribon, Escapar del psicoanálisis, Barcelona, Ed. Bellaterra, 2009.




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