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AMÉRICA LATINA | A hegemonia débil do “populismo”

quinta-feira 21 de maio de 2015 | 01:16

Decifrar a fisionomia da “hegemonia débil” dos governos pós-neoliberais ou dos “populismos”, em tempos nos quais mostram pouca capacidade de “resistência” ao avanço das direitas, torna-se importante não apenas para entender a crise por que passam estes projetos esgotadas as condições que permitiram seu auge; mas também porque podemos dizer que na América Latina estamos assistindo a um lento, contraditório e desigual processo de emergência dos assalariados.

Introdução

A “hegemonia”, as “revoluções passivas” e a “vontade coletiva nacional-popular” (em menor medida a do “Estado integral”) foram algumas das principais temáticas gramscianas com as quais um destacado setor da intelectualidade da esquerda latino-americana tentou pensar a história do nosso subcontinente, extrair conclusões das derrotas dos processos revolucionários dos anos 1970 e estabelecer as chaves de uma concepção de tipo “gradualista” que bem sintetizou José Aricó quando definia o marxismo de cunho gramsciano como “o ponto de partida para pensar a transformação democrática da sociedade” [1].

Com a imposição de uma democracia com fortes compromissos com os regimes ditatoriais que a precederam, e que na medida em que se impunha o neoliberalismo foi-se constituindo como uma democracia degradada, oligárquica e de “casta”, as crises no Equador, na Bolívia e na Argentina, e as expectativas de uma via “social-democrata” para a América Latina, que já nos anos 1990 haviam se tornado minoritárias, foram substituídas por uma reivindicação dos chamados “populismos”, ou o que denominamos governos “pós-neoliberais”.

Nesse sentido, o longo caminho que vem de José Aricó a Ernesto Laclau na realidade não é tão longo nem contraditório. Quem sabe não seja despropositado afirmar que muito do predicado por Laclau já estava dito, com outra linguagem, por Aricó. Como tampouco seria demais assinalar que a ideia de uma “hegemonia” representada por uma posição política predominante na sociedade a partir da confluência de distintos sujeitos sociais contingentes, como forma de acender ao poder do Estado dentro da democracia burguesa, está na base das díspares direções em que se moveram Aricó e Laclau dos anos 1980 em diante, tanto como das atuais reivindicações do “populismo” na velha Europa.

Diferente do que pensam os setores acadêmicos que reivindicam os gramscianos argentinos por suas análises sobre as “transições à democracia” [2], a utilização da categoria “hegemonia” como um termo que permite sair do “essencialismo de classe” resultou na formação de teorias e práticas que propugnavam uma “hegemonia débil” cuja verdadeira fortaleza terminava residindo no Estado (capitalista).

Desta forma se passava, para utilizar uma expressão de Massimo Modonesi, do reconhecimento das revoluções passivas “como processo” à reivindicação das revoluções passivas “como projeto”, contra o defendido pelo próprio Gramsci em seu Caderno 15, quando assinalava que a revolução passiva não deveria ser tomada como programa, mas como “critério de interpretação em ausência de outros elementos ativos dominantes” (C15, §62) [3].

A categoria “nacional-popular” viria como o adereço de uma interpretação na qual uma teoria “aclassista” da hegemonia servia como fundamento para a adoção da “revolução passiva” como programa.

Hegemonia burguesa e proletária

Contra este tipo de interpretações – especialmente em suas análises sobre o papel dos moderados piemonteses na experiência da unificação italiana de meados do século XIX – Gramsci assinala no Caderno 15 uma diferença essencial entre as formas “expansivas” da hegemonia que expressaram os jacobinos e a “ditadura sem hegemonia” mediante a qual o Estado piemontês havia assumido as demandas sociais do Partido de Ação. Enquanto os jacobinos haviam criado, nos termos de Gramsci, uma “vontade coletiva nacional-popular”, os moderados do Risorgimento haviam feito da falta de tal criação a pedra angular da unificação italiana.

A hegemonia proletária, que, segundo a conceitualização de Gramsci continua em outras condições a “revolução permanente” dos jacobinos por seu caráter “expansivo”, se caracteriza não pelo “essencialismo” de classe, mas pela sua intenção de diminuir a distância entre “dirigentes e dirigidos”, para dotar de “uma forma moderna e atual o humanismo laico tradicional que deve ser a base ética do novo tipo de Estado” (C11, §70) (cabe assinalar, de passagem, a importância de relacionar as reflexões políticas e filosóficas de Gramsci). Para isso concebe um período de “guerra de posição” como contraponto da “revolução passiva” que os grupos dominantes põem em marcha por cima, “até o ponto em que a guerra de posições volte a se converter em guerra de manobras” (C15, §11), no qual se abre o momento político-militar, exemplificado por Gramsci com a guerra de liberação de um povo oprimido contra uma potência opressora e cujo equivalente de classe é a guerra civil (C13, §17).

Levando em conta estes elementos, a operação teórica de opor a “hegemonia” entendida em chave “nacional-popular” ao poder de classe resulta altamente questionável, já que nas próprias análises de Gramsci, não obstante certos deslizes que marcamos e criticamos em outro lugar [4], a hegemonia “se é ético-política não pode não ser também econômica, não pode não ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exercita no núcleo decisivo da atividade econômica” (C13, §18).

Esta temática, cuja abordagem tem uma história própria na América Latina, ressurgiu a partir da análise e balanço das experiências dos governos “progressistas” ou “pós-neoliberais” da região. Balanço no qual nos referenciamos em “Fim de ciclo”, de Caracas a Buenos Aires, de Eduardo Molina, publicado no número anterior de Ideas de Izquierda. Nesse artigo, podemos ler:

“A categoria gramsciana ‘revolução passiva’ é empregada por diversos estudiosos para interpretar estas reformas. Contudo, Gramsci a utilizou para analisar os processos na Europa do século XIX, nos quais, para evitar uma reedição da Revolução de 1848, cumpriam ‘por cima’ tarefas históricas como a unidade nacional na Alemanha e na Itália, mediante os métodos reacionários de um Bismarck ou um Cavour, chanceleres de viés monarquistas.

“Na época imperialista essa possibilidade está esgotada porque encarar seriamente as tarefas democrático-estruturais como a liberação nacional entra em contradição com as bases da ordem capitalista nos países dependentes. Nenhum dos governos pós-neoliberais se propôs a romper com o capital imperialista, realizar uma profunda reforma agrária ou nacionalizar os recursos naturais (...) O elemento de ‘revolução passiva’ nestes limitados ‘processos de mudança’ favorece a recomposição da ordem, não sua superação. Enquanto se manteve a continuidade nos aspectos econômicos e sociais chave herdados do neoliberalismo (como a especialização exportadora, o endividamento externo ou a precarização do trabalho), as reformas parciais contiveram a mobilização social, ‘passivizando’ as classes subalternas e cooptando os ‘movimentos sociais’ para ‘passar do protesto à proposta’ – segundo a frase de Evo Morales. A tarefa estabilizadora do ciclo reformista – combinando seus elementos de ‘revolução passiva’ com os de ‘restauração’ – foi preparando o terreno para que a classe dominante possa aspirar a uma plena ‘restauração conservadora’.”

Jacobinismo, revolução passiva, populismo

Para pensar esta problemática é útil recorrer ao enfoque de Fabio Frosini em seu trabalho “Pueblo y Guerra de Posición como clave del populismo. Una lectura de los Cuadernos de la Cárcel de Antonio Gramsci” [5] . Frosini associa a “revolução passiva” às formas constitutivas do Estado moderno, entendido este como “Estado ético” (composição passiva dos conflitos em chave hegeliana) que bloqueia a “permanência do movimento” do processo iniciado com a revolução francesa e expressado pelo jacobinismo, mediatizando-o mediante uma relação complexa entre Estado e sociedade civil que impede que "o povo" vá além dos limites impostos pela direção burguesa. Assinala, Frosini: “O povo não designa uma determinada classe social, mas um conjunto heterogêneo de ‘classes’ que tem em comum dois elementos: a posição subalterna na esfera do poder e o papel instrumental na esfera do trabalho (...) Dito em outras palavras, segundo Gramsci a história das sociedades humanas, isto é, das sociedades de classes, está cruzada por uma linha vermelha unitária, que é a linha vermelha do poder entendido como controle disciplinar da espontaneidade popular. (...) Entre a política francesa e a filosofia alemã há “tradutibilidade” porque a revolução passiva, à qual Hegel dá uma expressão teórica acabada, não é unicamente uma reação à Revolução, é também uma aceitação progressiva de alguma de suas reivindicações e vice-versa, o jacobinismo fracassa necessariamente quando toca seus ‘limites de classe’. (...) O significado do termo populismo para Gramsci está, portanto, ligado ao objeto designado por um nexo passional e não simplesmente lógico: o ‘populismo’ não se limita a ‘expressar’ o objeto ‘povo’, mas o evoca e o suscita para propô-lo como modelo. Neste sentido, o populismo representa o tornar-se extremo e explícito de toda a lógica hegemônica da política moderna” (destacado dos redatores).

Mas das próprias características do populismo assinaladas por Frosini, se desprende seus “limites de classe”. Já que sua tentativa de revalidar o “jacobinismo” contra os “bons modos” do Estado liberal não pode superar as condições de passivização nas quais se sustenta. Contra a “composição passiva dos conflitos” [6] da qual seria expressão o Estado “ético” hegeliano, o populismo leva adiante uma “instrumentalização” do conflito que pode questionar certos aspectos da relação entre povo e governo, mas não pode desenvolver a mobilização popular até questionar o próprio Estado, por isso frequentemente desalenta a ação direta e a autonomia dos movimentos sociais e da classe operária. Essa é sua marca passivizadora.

Dessa forma, o populismo se constitui como uma tentativa de superar o “moderacionismo republicano” sem um autêntico jacobinismo ou, melhor dizendo, através de um jacobinismo domesticado pela ordem que o sucedeu e que o constitui como um “jacobinismo de Estado” conservador perante os fundamentos da ordem social.

Ao postular o Estado como o agente das mudanças históricas, o “populismo”, compreendido nestes termos, reproduz a posição subalterna na esfera do poder e o papel instrumental na esfera do trabalho da classe trabalhadora e dos setores populares a que se referia Fronsini. Por esse motivo, o máximo a que pode aspirar neste contexto histórico é alcançar uma “hegemonia débil”, cuja capacidade “expansiva” se limita ao acesso ao consumo de setores mais amplos da população em momentos de crescimento econômico, engessando, por sua vez, a organização de base ou qualquer tipo de elementos de autonomia do “povo”.

Isso é reconhecido por Massimo Modonesi: “Ao aproveitar, controlar, limitar e, no fundo, obstar qualquer movimento de participação, de conquista de espaços de exercício de autodeterminação, de formação de poder popular ou de contrapoderes pelos de baixo – ou outras denominações que se prefiram – se estaria não apenas negando um elemento substancial de qualquer hipótese emancipadora, mas, além disso, debilitando a possível continuidade de iniciativas de reformas – nem falar de uma radicalização em chave revolucionária –, na medida em que se suavizaria ou simplesmente desapareceria da cena um recurso político fundamental para a história das classes subalternas: a iniciativa dos de baixo, a capacidade de organização, de mobilização e de luta.” [7]

Desta ótica, a orientação “passivizadora” e restauradora dos processos “pós-neoliberais” não apenas nega totalmente qualquer mudança radical ou revolucionária, mas também obstrui até sua própria continuidade como projeto reformista.

A hegemonia débil e o balanço dos governos pós-neoliberais

Isso explica, nos últimos anos, os conflitos crescentes dos governos “progressistas” com a classe operária organizada em sindicatos, quem (sem pretender minimizar a burocratização das organizações operárias) acaba sendo mais difícil de “instrumentalizar” do que os pobres urbanos e as classes médias progressistas.

Especialmente por sua concepção do “povo” e sua relação com o Estado, com a classe dirigente e seus líderes, o populismo encontra seu próprio “limite de classe” na hora de criar uma “hegemonia expansiva”, isto é, nos termos de Gramsci “constituir uma vontade coletiva nacional-popular”, o que é impossível a partir de uma estratégia que postula a integração “amorfa” da classe operária no “povo” e não o caminho de se reconhecer como classe com um interesse diferenciado, adotando um programa que lute pela aliança com os setores populares, ou seja, uma “hegemonia” operária em relação às outras classes oprimidas.

Em países não caracterizados nos últimos tempos precisamente pelo alto nível de mobilização, como o Brasil, depois das jornadas de junho de 2013 se desenvolveu uma onda de greves que incluiu fábricas como as montadoras Volkswagen e General Motors, trabalhadores dos metrôs ou funcionários da Universidade de São Paulo (USP) e até uma greve vitoriosa dos garis do Rio de Janeiro. Recentemente houve uma jornada de paralisação nacional (15/04) contra as reformas trabalhistas flexibilizadoras impulsionadas pelo governo como parte de um plano de ajuste mais global. Também no Chile ocorre um processo de aumento da conflitividade trabalhista e das greves, assim como na Argentina a última paralisação nacional do 31M foi realizado com contundência (e foi o quarto durante o governo de Cristina Kirchner). Em vários desses países se combinam mobilizações da juventude em defesa da educação e outros direitos.

A recomposição objetiva das forças da classe trabalhadora, sua recuperação subjetiva, no contexto do esgotamento (com desigualdades) dos governos “pós-neoliberais”, voltam a revitalizar a perspectiva de superar esses governos pela esquerda, a partir de um programa e uma estratégia operária e revolucionária.

Notas:
[1] Aricó, José M., La cola del diablo. Itinerario de Gramsci en América Latina. Buenos Aires, Punto Sur, 1988, p. 115.
[2] Ver Boostels, Bruno, "Towards a Theory of The Integral State" em Historical Materialism 22, volume 2.
[3] As citações dos Cadernos do Cárcere, indicando número de caderno e parágrafo, correspondem a Quaderni del carcere. Edizione critica dell’ Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. Torino, Einaudi, 2001.
[4] Ver “Sobre las Nueve lecciones y el marxismo de José Aricó”, IdZ 2, agosto, 2013, “La hegemonía ‘light’ de las nuevas izquierdas”, IdZ 8, abril, 2014, ou “Una vez más sobre la hegemonía” em lasideasnocaen.blogspot.com.ar.
[5] Frosini, Fabio, “Pueblo y Guerra de Posición como clave del populismo. Una lectura de los Cuadernos de la Cárcel de Antonio Gramsci”, em Cuadernos de Ética y Filosofía Política, Año 3, n° 3. Lima, 2014, pp. 63/82. Disponível em http://www.academia.edu.
[6] Frosini, Fabio, “Hacia una teoría de la hegemonía” em Modonesi, Massimo (coordinador), Horizontes Gramscianos. Estudios en torno al pensamiento de Antonio Gramsci. México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales UNAM, 2013, p. 69.
[7] Modonesi, Massimo, “Revoluciones pasivas en América Latina. Una aproximación gramsciana a la caracterización de los gobiernos progresistas de inicio de siglo”, em Modonesi, Massimo, op. cit., p. 235.

Tradução: Val Lisboa




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