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Povos Indígenas | A continuidade da crise Yanomami como expressão das contradições do governo de Frente Ampla

Um balanço recente feito por três organizações Yanomami criticou as ações do governo Lula para combater o garimpo ilegal em Roraima, seis meses após o início das operações. “Esse decreto emergencial foi só para apagar fogo, como se bombeiros fossem ali só para apagar um foco do incêndio”, relatam lideranças como David Kopenawa. Conciliando com os interesses do agronegócio, com os militares que aprofundaram essa crise ao lado de Bolsonaro e com o projeto de extrativismo da Amazônia defendido na Cúpula em Belém, o governo de Frente Ampla, com o PSOL na cabeça do ministério, permite a continuidade da barbárie capitalista contra os povos indígenas.

segunda-feira 14 de agosto de 2023 | Edição do dia
Foto: Victor Moriyama

Seis meses após o governo Lula-Alckmin decretar o estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na Terra Indígena Yanomami (TIY), o relatório “Yamaki ni ohotai xoa! = Nós ainda estamos sofrendo”, elaborado por três organizações Yanomami, expõe a continuidade da crise e as falhas de uma operação que vem sendo apenas paliativa, embora reivindique publicamente ter acabado com o garimpo. Seguem os relatos de aumento de doenças, óbitos, conflitos entre as comunidades (estimulados por garimpeiros), cooptação de jovens para o crime organizado, o enfraquecimento da agricultura familiar de subsistência e contaminação por mercúrio.

Com o decreto emergencial, que tomou os noticiários do Brasil e do Mundo, e o início das operações em Roraima, grande parte dos garimpeiros teria se retirado da TIY. O relatório revela, porém, que muitos deles continuam instalados tanto em território brasileiro quanto em venezuelano, com relatos de ameaças aos indígenas. A invasão endossada pelas políticas de Bolsonaro e dos militares segue, em escala reduzida, por meios de balsas no rio Apiaú e no Catrimani (um dos mais poluídos por mercúrio no interior da reserva), onde recentemente novas retroescavadeiras adentraram o território.

“Esse decreto emergencial foi só para apagar fogo, como se bombeiros fossem ali só para apagar um foco do incêndio.” - David Kopenawa, liderança Yanomami, em entrevista.

O garimpo está diretamente relacionado ao aumento dos casos de malária nas terras indígenas, com a água parada se acumulando nas grandes clareiras de floresta desmatada. Os dados oficiais da TIY, que envolvem subnotificação devido ao difícil acesso à região e a debilidade do efetivo de saúde empregado nas operações recentes, revelam que “até julho de 2023 já haviam sido registrados 12.252 casos, o que corresponde a quase 80% do total registrado em 2022”. Uma situação agravada pela ausência de imunizantes contra a malária e doenças como o coronavírus, já que, segundo o relatório, até o início de julho “só 23 das quase 350 comunidades haviam sido imunizadas”.

A desnutrição entre crianças menores de cinco anos também é uma das maiores causas de mortes entre os yanomami e que segue sem resolução, tendo quase dobrado ao longo dos governos Temer e Bolsonaro. Diante do decreto emergencial do governo Lula, os indígenas denunciam uma série de falhas logísticas na distribuição de ajuda humanitária, com cestas básicas concentradas e até mesmo apodrecendo nas maiores pistas de pouso, enquanto as comunidades remotas, com acesso apenas por rios ou trilhas na mata, seguem desassistidas.

Uma das denúncias mais indignantes certamente é a dos informes precipitados de órgãos governamentais, um absurdo herdeiro do negacionismo bolsonarista e das mentiras dos militares, prontos a distribuir qualquer tipo de informação que tranquilize a opinião pública. É o que os yanomami denunciam que ocorreu quando a Polícia Federal anunciou em tom comemorativo o fim dos alertas de garimpo na TIY, “conquista” celebrada pelo governo federal. A realidade exposta no relatório é de que os garimpeiros seguem trabalhando próximo às aldeias, abastecidos com alimentação e combustível por meio de helicópteros.

Com o decreto, o governo decidiu não fechar os acessos do garimpo ao território indígena, mantendo aberto três “corredores” para a saída espontânea dos garimpeiros, o que se deu cedendo aos interesses de políticos de Roraima, intimamente ligados à atividade, mas sob o pretexto de não provocar mais violência na região. A restrição total de voos do garimpo foi mantida por apenas seis dias, permitindo que os grandes financiadores do ecocídio e do massacre indígena retirassem seus equipamentos com segurança e impunidade. Um exemplo claro desse tipo de sujeito é o empresário Rodrigo Martins de Mello, do mesmo partido de Bolsonaro (PL) e que liderou a corrida do ouro na região, suspeito de movimentar cerca de 200 milhões de reais através do garimpo. Não é um caso isolado. Várias empresas são acusadas de participar do garimpo e comercialização de ouro extraído próximo à TIY, com lucros chegando a 18 bilhões de reais e em uma cadeia de produção e comércio envolvendo instituições autorizadas pelo Banco Central e que chegou até mesmo à Casa da Moeda durante Bolsonaro. Um ramo que mobiliza uma grande quantidade de pessoas para garantir os bilhões de uns poucos. O líder Yanomami David Kopenawa, em entrevista ao O Globo, afirma que se os yanomami são 31 mil em todo o território de Roraima e Amazonas, entre os garimpeiros e envolvidos são estimados entre 60 mil e 100 mil dentro e fora do território.

O relatório yanomami também denuncia que o Comando de Ações Aeroespaciais da FAB impediu neste ano, em junho, a continuidade do monitoramento independente do garimpo ilegal na TIY, realizado desde 2018 pela associação Hutukara, que até dezembro de 2022 havia detectado um crescimento de mais de 300% nas áreas de garimpo. Essa negativa veio logo após as Forças Armadas organizarem uma visita a Surucucu, onde se concentraram as operações, “seguida de um sobrevoo, com convidados da imprensa com a intenção de propagandear uma suposta neutralização da atividade garimpeira”.

“O Exército não trabalha, eu falo a verdade. O Exército cruzou os braços, não quer saber de ajudar o meu povo, não quer saber de proteger a Floresta Amazônica” - David Kopenawa.

Destacando as Forças Armadas para a crise Yanomami, o governo federal coloca os próprios carrascos para tratarem das feridas. Por boa parte da operação, mantiveram mão amiga com o garimpo em fuga, responsáveis apenas pelo apoio logístico às outras instituições sucateadas pelos anos de Bolsonaro. “Foi somente no dia 21 de junho que foi alterado o decreto Nº 11.405, finalmente atribuindo ao Ministério da Defesa a ‘execução de ações preventivas e repressivas contra delitos transfronteiriços e ambientais”. O “braço forte” só entrou em campo meses depois - e segue em distrofia para não ir na contramão de seus próprios interesses.

O objetivo dos militares para a Amazônia sempre foi o de atacar a demarcação de terras indígenas, defender a exploração dos recursos minerais, vegetais, da biodiversidade e de ampliar o próprio controle territorial, o que ficou evidente no texto hediondo do general Villas Boas em que culpou os yanomamis pela própria tragédia. Para a cúpula militar, que esteve ao lado do golpismo em 2016 e de Bolsonaro do início ao fim, o problema da região são as ONGs e o ambientalismo, escondendo a própria servidão ao imperialismo e o interesse em encher os bolsos com o extrativismo sob um discurso “desenvolvimentista” para a região Norte.

Não surpreende o relatório de 2019 que apontava relações de aliciamento e até mesmo parentesco entre os militares presentes na TIY e o garimpo, repassando informações sobre operações e permitindo o tráfico de ouro e drogas. Foi no período da ditadura, de profunda repressão aos trabalhadores com o apoio do imperialismo estadunidense, que foi facilitado e intensificado o acesso à terra Yanomami em Roraima. A partir da década de 1970, os militares iniciaram a construção de estradas e o mapeamento de recursos minerais que levaram várias aldeias yanomamis a ter contato forçado com os trabalhadores das obras e do Estado, como também missionários e garimpeiros.

“Não há um número oficial de mortos em decorrência dessas invasões, mas se estima que chegue aos milhares. Comunidades inteiras desapareceram em decorrência das epidemias, dos conflitos com garimpeiros, ou assoladas pela fome. Os garimpeiros aliciaram indígenas, que largaram seus modos de vida e passaram a viver nos garimpos. A prostituição e o sequestro de crianças agravaram a situação de desagregação social”. Trecho do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Mais recentemente, foi explícita a aliança entre Bolsonaro, empresários, garimpeiros e militares contra os yanomamis, com as diversas operações militares levantadas para reprimir a reação dos indígenas contra os garimpeiros, que dão continuidade a esse histórico de violência envolvendo o envenenamento das comunidades por metais pesados, as doenças, perseguições, assassinatos e até estupro de mulheres em troca de comida.

O governo Lula-Alckmin em um projeto de sustentação da barbárie

O capitalismo brasileiro é dependente da economia agroexportadora e, portanto, dos ataques contra os povos indígenas em nome da expansão das fronteiras agrícolas e da exploração mineral. Se a ditadura militar aprofundou o genocídio indígena no Brasil, a redemocratização com a constituição “cidadã” de 1988 não foi garantia de direitos aos povos originários. Nem sequer os 13 anos de governos do PT acabaram com o garimpo nas terras Yanomami. O atual governo Lula-Alckmin, ainda que apareça com um indígena passando a faixa, Sônia Guajajara do PSOL no Ministério Indígena e Joenia Wapichana da Rede na FUNAI, sustenta seu projeto de conciliação de classes absorvendo a agenda econômica neoliberal da extrema direita, presente no Arcabouço Fiscal, nas privatizações, cortes orçamentários na saúde e educação, na liberação de agrotóxicos e na manutenção das reformas de Temer e Bolsonaro, reordenando essa orientação inquestionável conforme sua política de demagogia com os direitos dos oprimidos, sempre sob a perspectiva dos interesses da classe dominante.

Em nota enviada à mídias como o portal Amazônia Real, um dos principais a divulgar o relatório Yanomami, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), encabeçado pelo PSOL, se restringe a dizer que a situação dos Yanomami “mudou para melhor” em relação a Bolsonaro, apresentando alguns números das ações realizadas e reproduzindo a declaração da PF de que não ocorreram mais alertas de garimpo, uma mentira segundo o próprio relatório Yanomami, sobre cujos apontamentos o MPI também não se pronunciou. Assim, mesmo diante do protesto dos povos indígenas, o PSOL se coloca na defesa do governo de frente ampla com os setores mais reacionários da política nacional. Sob o discurso de que estaria fazendo pressão por uma agenda mais à esquerda, o PSOL desiste de qualquer ida pretensão como projeto alternativo ao PT e justifica sua integração ao governo e ao regime, sendo o braço esquerdo da restauração da hegemonia burguesa. Longe de direcionar as críticas para uma política de independência de classe, o que o PSOL faz diante da persistência da crise Yanomami é buscar invalidar pedidos de socorro.

Esse é o caminho natural para quem, como Lula, busca ser o melhor gestor do capitalismo semicolonial brasileiro, conciliando com ruralistas, evangélicos, diversas alas da direita e instituições reacionárias do regime como o Judiciário e os militares, enquanto encabeça um Estado que historicamente é uma ferramenta de opressão aos indígenas, negros e trabalhadores, como vimos com o PT de mãos dadas com o bolsonarismo nas chacinas na Bahia, RJ e SP. A recente Cúpula da Amazônia, em Belém, foi mais um capítulo de repercussão internacional dessa política.

Concebida como um palco para projetar o Brasil como liderança na pauta ambiental, ficou marcada por protestos dos povos amazônicos, Lula se colocando ao lado de lobistas do petróleo na defesa da exploração de combustíveis fósseis na bacia amazônica e pelo abraço à Dina Boluarte (para quem manteve a venda de armas), que preside o Peru após um golpe reacionário apoiado pelos EUA e é responsável por quase 70 mortes e 1400 feridos, em sua maioria de origem indígena, pela brutal repressão policial e militar aos protestos ainda em curso. O recado dado, acompanhado de projetos como o mantido com Zema para exploração de lítio em MG, é o de que com Lula o Brasil segue sendo um "paraíso extrativista".

É preciso levantar uma saída de independência de classe, aliando trabalhadores, povos indígenas e a juventude

Não é possível conciliar os interesses dos povos indígenas com os dos representantes do grande agronegócio e do extrativismo, como mostra a história da exploração e da luta dos povos latinoamericanos. O combate aos invasores da TIY, às doenças e a fome não deve colocar os yanomamis como passivos no aguardo da boa vontade de um Estado responsável pela sua tragédia. A luta contra a colonização, o genocídio e o roubo de suas terras, contra o Marco Temporal e a nova sanha pelos recursos naturais amazônicos colocam os povos indígenas na linha de frente contra a continuidade desse projeto destrutivo inerente ao capitalismo.

Uma saída profunda para essa crise não será possível somente com a criminalização individual dos garimpeiros presentes nos territórios indígenas, os elos mais débeis e substituíveis de toda uma cadeia produtiva ilegal. Será preciso adotar um programa econômico e político que avance contra as frações burguesas que enriquecem com a desgraça dos povos indígenas e a degradação ambiental, um programa com independência de classe, na contramão e se enfrentando diretamente com a política conciliadora do novo governo do PT com a direita. Só a luta da classe trabalhadora junto a todos os povos e setores oprimidos é capaz de dar uma resposta à ganância capitalista.

Nesse sentido, uma oposição verdadeiramente de esquerda, socialista e revolucionária, deve lutar por medidas como a expropriação de todas as empresas ligadas ao garimpo e demais atividades extrativistas, colocando-as à serviço dos povos indígenas e da natureza com o apoio de ambientalistas e das universidades, defendendo investigações independentes e o julgamento por júris populares eleitos e revogáveis dos crimes dos militares, bem como uma reforma agrária radical que ataque diretamente o latifúndio para expansão das áreas de proteção ambiental e territórios indígenas.




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