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A Copa De 2022

Rafael Barros

Futebol

A Copa De 2022

Rafael Barros

A Rússia retomava bombardeios em cidades ucranianas e a guerra que cortou os horizontes do mundo em Janeiro se estendia pelos olhos de todos, sem cerimônias. Assim também fazia a ofensiva militar dos países da OTAN e a retomada fortalecida dos EUA capitaneando a desgraça contra a desgraça. Se contavam oito meses de guerra. Oito meses em que todos se sentiram mais perto dos anos 30 do que das ilusões dos anos 2020. E cada vez mais se recolocava a definição, antiga definição, de Lenin sobre nossos tempos dentro da mais clara atualidade - crises, guerras, revoluções. Uma pandemia ainda vivia pendular, indo e vindo, com um rastro global de sangue deixado por governos de todo o mundo. No Irã, o assassinato da jovem Mahsa Amini pelas mãos do estado ergueu o país. Hijabs eram queimados e cabelos cortados nas ruas de Teerã, em protesto ao regime que aprisiona as mulheres à seus moldes. Em Zhengzhou, na China, se gestavam centenas de greves nas fábricas. Respostas pelo retorno da pandemia que muitos tentavam fazer acreditar que já havia tido leito de morte e pela política repressiva do ditador Xi Jinping. Contra a mão dura de lockdowns intensos no país, operários e operárias responderam com o maior conjunto de greves desde 1989. No país da Copa, o Catar, ganhava o veto autoritário da justiça do país contra a cerveja nos estádios. O menos absurdo dos absurdos de um país que protagonizaria um evento marcado por repressões homofóbicas de um estado comandado pela mesma família há 200 anos. Na África, a inflação subia corrosivamente em quase todo o continente. O FMI e seu dedo podre sugava tudo o que podia, como sempre fez. Em Marrocos, na África do Sul e na Tunísia se erguiam lutas nas ruas contra a inflação. No Brasil, as eleições elegeram um mal menor nem tão menor assim contra um mal maior. E enquanto se discutia sobre retomar as “bandeiras nacionais” da extrema direita, grupos alucinados fechavam as estradas de braços dados com policiais federais. Desfilaram tanto seu verde e amarelo contra o resultado das eleições que um deles decidiu desfilar pendurado na carroceria de um caminhão a uns 80km por hora durante uns bons 15 quilômetros de rodovia. Na França, os petroleiros mostravam a tradição dos trabalhadores do país, e lutavam por seus reajustes salariais contra a queda do seu poder de compra, ganhando junto ferroviários e aeroviários. Na Inglaterra, os balanços do Brexit ainda faziam um largo eco e Rish Sunak se assentava fragilmente como terceiro primeiro-ministro em menos de 50 dias. E o país se preparava para o primeiro Mundial sem a Rainha Elizabeth, para festa dos irlandeses, egípcios e das outras tantas ex-colônias e colônias britânicas. No Peru a direita se recusava ainda à ideia de um presidente que parecesse de esquerda, por mais que fosse tão de “esquerda” quanto burocratas e quanto toda a esquerda institucional é de esquerda de fato no mundo inteiro. Tentativas golpistas cresciam aqui e ali, e burocratas e reformistas lideravam um caminho que a nada levaria senão à própria fortaleza da direita e mais tarde à revolta popular. Uma história já vivida em outros países latinos não tão distante no tempo assim. No Chile, trabalhadores Mapuches que haviam tomado o controle de uma fábrica de leite no sul do país, na região de Valdívia, se pronunciavam ao resto dos trabalhadores chilenos e do mundo. Ali, das terras de Huite, jovens, senhoras e senhores da comunidade de Paillaco pintavam ao mundo que a terra, terra ancestral de seus povos, antes de uma tal multinacional Chilterra, agora era deles, Mapuches, e que uma nova forma era possível, e que não haveria ali família alguma com fome nem sem emprego. Desafiavam o mundo inteiro das terras de Huite, entre Paillaco, Futrono e Los Lagos.

Pela última vez, 32 seleções faziam um Mundial. Com oito seleções das Américas, cinco da Ásia, cinco da África (pela primeira vez na história com todas treinadas por africanos), uma da Oceania e treze da Europa. Com a expressa proibição de qualquer arco-íris — até mesmo o da bandeira de Pernambuco. Com os olhares do mundo para a violência contra as mulheres. Com bandeiras palestinas erguidas por torcedores de quase todos os países presentes. Com a mancha de sangue de milhares de operários em cada um dos estádios. Sem Tony Kroos, craque alemão, que fez como Cruijff e se negou politicamente a participar do apogeu do futebol. Uma das maiores coragens para um jogador de futebol. Com o sonho interrompido para Sadio Mané, e para Benzema. Com a última Copa de craques de uma geração. Com o sonho de diversos craques de novas gerações nascendo. Com a provável última dança de Lionel Messi em um Mundial, carregando 36 anos nas costas e um sonho maior do que o mundo.

Assim começava a Copa do Mundo de 2022 no Catar.

Gol De Mundial

O povo haitiano saiu às ruas eufórico. Na Índia, marchas, blocos gigantescos de pessoas faziam das ruas disruptivas festas. Em Bangladesh os tetos vinham abaixo. Por diversos países, milhares se aglutinaram celebrando. Gritaram ao alto, soaram tambores, buzinas e comemorações perdidas na emoção. Na Jamaica, carros e bandeiras anunciavam a festa, e pessoas corriam enlouquecidas gritando de casa em casa trazendo a notícia. Não era, infelizmente, a volta da vitória da revolta dos oprimidos. Poderia, mas não era. A loucura era por causa de um domínio de bola, um domínio todo estranho, que bateu errado e deixou a bola escapar, subindo dois andares, e que foi magicamente concertada num giro de corpo plástico, em coisa de nem meio segundo, mas que parecia uma camera lenta de um giro igual num movimento de balé ou de capoeira, e que terminou num voleio, uma chicotada de direita e com a bola afundando a rede do goleiro suiço. Era gol do Brasil. Era gol do Brasil e no Haiti, na Jamaica, na Índia, em Bangladesh, e sabe-se lá mais onde, saiam nas ruas cantando que era gol de Richarlison. Era gol do Brasil e em quase todo o mundo, nas casas e ruas e bairros e bares de povos oprimidos pelo globo se gritava que era gol de Richarlison. E o melhor momento do Brasil no Mundial não foi no Catar. Não foi no próprio Brasil. Foi por aí. Onde se mostrou a paixão do futebol brasileiro sem nenhuma fronteira. Onde se mostrou a força dum país de ídolos negros mas de racismo enraizado. Onde se ama o futebol, também. Onde se gritou gol de Richarlison mais enlouquecidamente do que no próprio Brasil. Na bola, não teve show do Brasil. Mas na mostra viva que o mundo tem fronteiras artificiais, o futebol as rasga. E na Copa, só os argentinos mais pachecos e os europeus mais tolos não amam a áurea do futebol brasileiro. É gol de Mundial. É gol de Richarlison.

3 Minutos No Céu

No Estádio Khalifa, a Espanha vencia o Japão por 1x0. Gol de Morata, o terceiro em três jogos. Nada fora do comum. A Alemanha vencia a Costa Rica no estádio Al Bayt. Tranquilamente. A paz reinava pela primeira vez em um grupo que chegou na última rodada da fase de grupos do Mundial com a Alemanha de novo ameaçando ser eliminada. Mas com a bola rolando, tudo se alinhava “à europeia”. Nada fora do script. Os torcedores assistiam, mas assistiam sentados vendo a regra se confirmar. Espanha em primeiro e Alemanha em segundo. Tudo voltava ao normal depois da derrota alemã para o Japão e da derrota japonesa para a Costa Rica.Era assim até os 3 minutos da segunda etapa. Até que uma bola bandida, sobrando, deu sopa para um tal de Doan, que mandou um balaço no canto do goleirão espanhol e empatou o jogo. Ali, todas as zebras possíveis largaram o pasto e ergueram as cabeças apreensivas. Ainda mascando grama, mas olhando, em alerta. 3 minutos depois, de novo. Uma bola cruzada que até hoje torcedores ao redor do mundo, em especial os alemães, clamam que saiu, e que comissões de arbitragem e japonese clamam pela magia da posição de câmera e da ilusão ótica de uma bola redonda e seus diversos ângulos para dizer que a redondinha ficou na linha. O que importa é que dessa bola saiu um cruzamento perdido no meio da área, e Ao Tanaka empurrou para dentro e virou para o Japão. Quem diria. Japão saindo com duas vitórias contra as campeãs Espanha e Alemanha. Já era fato suficiente para dar uma certa alegria ao torcedor, em especial o torcedor não europeu, que se diverte com a zebra e a derrota de seus rivais do continente que saqueou um dia riquezas do solo e frutos do trabalho forçado, e que agora saqueia jogadores de todas as ligas para suas super ligas internacionais. Parecia já bom demais. Japão em primeiro e Espanha em segundo. Foram coisa de 7 minutos. A Alemanha enfileirava gols perdidos. A Costa Rica parecia perdida no campo. E numa jogada inesperada, a bola viaja em um passe achado do meia direto para a linha de fundo. O cruzamento chega, doce, no meio da área, bem no pagode, um toque de cabeça com rebote, e Tejeda afundou a rede para empatar o jogo. Costa Rica 1x1 Alemanha. 13 minutos do segundo tempo. E os torcedores japoneses no Khalifa celebravam. Mal imaginavam que no minuto seguinte os alemães acertariam o poste, e que coisa de uns dois minutos depois acertariam a trave de novo, e que coisa de uns cinco minutos depois, Goretzka ia puxar pra perna direita, ajeitar o corpo, mandar a bomba e… trave outra vez. E aos 24, falta na ponta esquerda pra Costa Rica, Campbell ergueu o bolão de canhota, na quina direita da área veio o primeiro desvio de cabeça, e no bolo na grande área o segundo, e a bola ainda viva pingou, e eram três alemães contra dois costariquenhos, mas a bola simplesmente ignora os cinco e pinga, pinga na pequena área entre cinco jogadores! Pinga, e bate na perna do goleirão alemão - só um tal de Neuer - e depois na perna do zagueiro da Costa Rica, caído no chão, pra morrer caprichosamente dentro da rede. Alemães não entendiam nada. Costariquenhos menos ainda. Brasileiros, argentinos, franceses, marroquinos, coreanos, iranianos, senegales, espanhois e japoneses. Ninguém, ninguém entendia nada. Todos chamavam o colega ao lado, todos paravam instantânea e automaticamente nas soleiras dos bares de olhos pregados nas televisões. Nos trabalhos, quem não cutucou pro amigo do lado e apontou aquela telinha de celular escondida com o jogo era louco. Nas ruas, e nas brasileiras, ainda salgadas de um 7x1 na cabeça, nem se fale, se ria pelos cantos. Costa Rica 2, Alemanha 1, gol surgido, achado, encontrado de Vargas. E passam Japão e Costa Rica, deixando 5 títulos mundiais pelo caminho. Era mágico. Era mágico como em 20 minutos todas as crenças eram postas abaixo. Todas as fórmulas. Todos os prognósticos. Os bolões. Tudo o que antes se pensava se desmoronava impiedosa e graciosamente. Era o futebol em seu estado puro. Como dizia o bordão da rádio Bandeirantes nos anos 2010, “em 20 minutos, tudo pode mudar”. E em 3 também. E da mesma forma impiedosa que Tejeda e Vargas alucinaram o mundo, da mesma forma impiedosa que o futebol forçava os colegas espanhóis e alemães a se defrontarem com perder uma Copa para dois países sem taça, da mesma forma impiedosa que o gol da Costa Rica fazia até um alemão comemorar que, já que cairiam, que caísse a Espanha junto, dessa mesma forma, impiedosa, a alegria, o riso pelos cantos, durou três minutos. E Havertz anotou pra Alemanha aos 33, e depois aos 40, e um alemão de nome impronunciável anotou nos acréscimos e os favoritos venceram por 4x2. Foram lindos três minutos para um mundo quase inteiro. Tirou um pouco o doce gosto da segunda eliminação seguida da Alemanha em uma fase de grupos. Mas o campo iria cobrar o grito alegre e o riso pelos cantos arrancados ainda. E não demoraria muito não.

Relato De Um Brasileiro Torcedor Da Argentina

Escrevo terça-feira, 20 de dezembro. Dois dias passados de uma das maiores finais de Copa do Mundo da história. E como é bom sentir no fundo da alma a cada tragada de ar: SOMOS CAMPEÕES MUNDIAIS!

É que a paixão do futebol não tem fronteiras nacionais. Não se as recusarmos. “Ah, mas brasileiro, torcendo pra Argentina, coisa de idiota, só quer provocar, blá, blá, blá”. Que se foda esse papo. Que quem diga isso vá cagar regra pra outro lado. Não. Paixão por futebol não tem fronteiras. Quem cria fronteiras é a sociedade insana que temos como teto, e eu, eu sou parte dos loucos que ainda sonha com um mundo sem elas. E recuso elas dentro de tudo o que posso num mundo que ainda se recheia de fronteiras e de guerras por todos os lados.

Pergunte a qualquer torcedor se ele escolheu pra que time torcer. Qualquer que seja, um torcedor sabe que isso não existe. Paixão não se decide. Se cria, às vezes debaixo do nosso nariz.

Chorei a final de 2014. Me doí amargamente em 2015 e em 2016. Tive o prazer de sofrer com o melhor jogo da Copa de 2018 e com um dos gols que mais me emocionou na vida com Di Maria. Fiquei louco com a semifinal de 2019 da Copa America. “Pero eso se terminó, porque en el Maracaná, la final con los brazucas, les volvió a ganar papá”. Comemorei o gol de Di Maria no Maraca como criança. E chorei a morte de Maradona como um verdadeiro apaixonado pelo futebol no seu mais puro estado: Loucura, euforia, liberdade, contradição e contestação.

Não, não torci para o Brasil de verdade desde 2014. A CBF e o futebol brasileiro em geral me deram um desgosto tão profundo, que me reservo apenas à minha paixão obrigatória, unilateral e mágica com meu clube. Mas não, não escolhi torcer pela Argentina. A Argentina me fez torcer pela Argentina. Messi, Di Maria, e mais do que tudo, a torcida mais apaixonada por futebol no mundo, de paixão em carne viva que sangra por todos os cantos, a única assim, depois de uma tal alvinegra.

O futebol é lindo. O futebol é de histórias que apaixonam. E a paixão do futebol se cria com os olhos. Não se escolhe. E que lindo foi viver essa história, de 2018 até aqui, sofrendo, pulsando, e esperando “La Tercera”. Que lindo foi jogar 6 finais nessa Copa. Que lindo foi ver Messi ser Messi da forma que foi pra levar todo um sonho, 36 anos de sonho, pro topo do mundo. Paixões assim só tem fronteiras nacionais pra quem é cego. Que joguem fora essa obrigatoriedade de sermos apaixonados pelas seleções nacionais dos nossos países. Que joguem tudo isso fora, e nos permitam ser apaixonados pelas seleções que nos tiram lágrimas dos olhos e ar dos pulmões. E eu chorei por um Mundial ganho para Diego Armando Maradona.

“Muchachos, ahora nos volvimos a ilusionar, quiero ganar la tercera,quiero ser campeón mundial, y el Diego, en el cielo lo podemos ver, con Don Diego y con la Tota, alentándolo a Lionel”.

Silêncio

Se escutava o silêncio. E cada traço dele. O sopro pelas ruas. As folhas. O peso do ar. Se escutava o nada e o todo. Se escutava o peso do corpo daqueles 90 mil pares de olhos, e dos outros tantos milhões espalhados. Se escutava no obelisco o balançar dos postes. Se escutava em Buenos Aires até mesmo a tensão dos pássaros. Se escutava o silêncio de Buenos Aires até Bangladesh. E se escutava o silêncio pulsar. Pulsar de medo, de sonho, de pavor, horror, de história, de memórias, de Malvinas, de um 25 de Novembro, de dor, de paixão, de uma alegria entalada por quase quatro décadas e sentida por gerações que ainda nem vinte anos tinham, e se sentia pulsar e se escutava profundamente um silêncio que carregava um peso de uma bomba. Se escutava um silêncio que gritava uma história inteira. Se escutava tudo aquilo que se temia escutar nos sopros do vento. E não se escutava nada.

E então… então se escutava tudo. Montiel havia dado 6 passos dentro daquele longo e preenchido silêncio, curvado o corpo e batido, deixando no ar aqueles últimos milésimos de segundos em que os olhos todos se arregalavam, os corpos se contorciam e o ar, o ar de todos os pulmões cessavam por um momento. E então se escutava 36 anos por cada esquina de Buenos Aires e cada esquina do mundo que fosse completamente louca e apaixonada por futebol, como um grito que corria pra abraçar e envolver qualquer um que estivesse por ali e que ainda não fosse parte daquele pulsar coletivo. Se escutava tudo. A Argentina era tricampeã mundial.


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