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SEMANÁRIO

100 anos da morte de Lênin: lições para pensar os desafios da luta das mulheres

Mariana Duarte

Giovana Pozzi

100 anos da morte de Lênin: lições para pensar os desafios da luta das mulheres

Mariana Duarte

Giovana Pozzi

Esse é um texto publicado na nova edição da revista Ideias de Esquerda, em sua edição especial de Feminismo e Marxismo, reproduzida aqui em memória do aniversário do revolucionário bolchevique Vladmir Lênin.

“Nenhum partido ou revolução no mundo sonhou alguma vez atacar tão profundamente as raízes da opressão e a desigualdade das mulheres como a revolução bolchevique está atacando [1]”. Essa foi a descrição de Lênin sobre a Revolução Russa, episódio que foi um ponto de inflexão para a história de todos os explorados e oprimidos do mundo, em particular das mulheres. Para Vladimir Lênin – principal dirigente do partido bolchevique, e estrategista da Revolução de Outubro ao lado de Trótski –, essa era uma condição vital à emancipação do conjunto da sociedade. Hoje, aos 100 anos de sua morte, resgatar o legado que esse marxista revolucionário deixou para a luta das mulheres é imprescindível em meio a tanta violência patriarcal e capitalista no Brasil e no mundo.

A Revolução Russa e o legado bolchevique sob direção de Lênin

Tudo se iniciou com elas: centenas de operárias atirando pedras para convocar os operários a marchar por “pão, paz e terra”. Esse foi o cenário que abriu caminho à revolução russa e à construção do Estado operário que se consolidou em outubro de 1917. Poucos meses após a tomada do poder, muito antes do que qualquer país capitalista, foi instituída a legalização do aborto de maneira gratuita, a descriminalização da homossexualidade, o direito ao divórcio fácil e a igualdade entre homens e mulheres perante a lei. Contudo, o partido bolchevique sabia que apenas uma igualdade através da lei não era suficiente. Seria necessário batalhar “por baixo” pela igualdade real e para extirpar de vez todos os resquícios do velho mundo patriarcal em cada relação social.

“Nós esperamos que a mulher trabalhadora conquiste não só a igualdade sob a lei, bem como frente a vida, frente ao trabalhador. [2]
Lênin

Ou seja, Lênin não acreditava que somente a revolução já bastava para emancipar as mulheres. Por isso, o Partido Bolchevique encarava a emancipação das mulheres como uma tarefa ainda a ser realizada, o que se dava a partir de quatro pilares estratégicos: 1. Liberdade de união; 2. Independência econômica; 3. Socialização do trabalho doméstico; e 4. Gradual desaparecimento da unidade familiar. Como parte dessa batalha coletiva e cotidiana pelo avanço cultural rumo à emancipação das mulheres, pela primeira vez na história, restaurantes e lavanderias públicas foram construídos enquanto se discutia sobre a criação socializada dos filhos.

“A experiência de todos os movimentos de libertação atesta que o êxito de uma revolução depende do grau em que dela participam as mulheres. O poder soviético faz tudo para que a mulher possa cumprir seu trabalho proletário e socialista com independência completa.” [3]

Essa experiência da Revolução Russa, apesar de muitas vezes pouco citada nos estudos e bibliografias feministas na atualidade, foi parte de um processo que buscou colocar na prática todo o acúmulo teórico do marxismo revolucionário no que tange a questão das mulheres.

Hegemonia e partido: o papel das mulheres na construção do novo mundo

Em sua obra Que Fazer?, Lênin descreve a luta econômica como “a luta coletiva dos operários contra os patrões” por “melhores condições de trabalho e de vida”, tratando-se, portanto, de uma luta estritamente sindical. No entanto, para o revolucionário russo, a luta do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) não poderia simplesmente se resumir a isso, já que a luta sindical representa apenas a luta pelos interesses econômicos mais imediatos, inscritos no interior de uma ordem de exploração. Para atacar o cerne da ordem capitalista, era preciso unificar a luta econômica à luta política, elevando a consciência de classe dos trabalhadores para lhes permitir enxergar que seu inimigo não se limita ao seu patrão direto, mas se estende também (e fundamentalmente) ao Estado capitalista. Nesse marco, era necessário que a classe trabalhadora russa se aliasse a todos os setores que também eram oprimidos pelo regime czarista contra seu inimigo comum para poder de fato derrubá-lo. Essa era, para Lênin, não uma questão secundária, senão o que iria determinar a vitória ou não da classe trabalhadora: a capacidade desta de defender e levar até o fim a luta pelas demandas do conjunto dos setores oprimidos, superando a consciência corporativista para que pudesse se colocar à cabeça de uma sociedade livre de toda opressão e exploração. Essa tarefa somente poderia ser cumprida por uma organização partidária, um partido com seu próprio programa e prática combativa, que buscasse, por essa via, se ligar com as instituições de massas.

É dentro dessa lógica estratégica, na qual as demandas dos setores oprimidos são centrais à revolução socialista, que Lênin discute a questão das mulheres. Nesse sentido, a emancipação das amarras patriarcais deveria ser tarefa número um dos comunistas. No ano de 1924, Clara Zetkin iria escrever seu texto Recordações sobre Lênin, no qual Zetkin começa dizendo que:

“Lênin me falou muitas vezes sobre a questão da mulher. Era visível que dava uma importância enorme ao movimento feminino, como parte essencial, em algumas ocasiões, inclusive decisiva, do movimento de massas. Nem é preciso dizer que, para ele, a plena equiparação social da mulher com o homem era um princípio inabalável, que nenhum comunista poderia nem sequer discutir.” [4]

É possível perceber como para o grande dirigente da Revolução Russa a defesa incansável de que o conjunto dos setores oprimidos tomasse para si a luta pela revolução proletária estava no centro do seu pensamento marxista, muito longe de qualquer visão “reducionista” que veio a encabeçar o stalinismo.

Internacionalismo e auto-organização: As Conferências Internacionais de mulheres e a Terceira Internacional

Parte do legado da Terceira Internacional de Lênin, para além do que já foi mencionado, foi sua procura por organizar as mulheres das regiões orientais da URSS. Trata-se de uma experiência pouco conhecida, em especial nos meios daquele feminismo que busca associar o marxismo a uma perspectiva colonialista, mas as conferências de mulheres comunistas buscaram incorporar um programa específico para responder às demandas das mulheres que habitavam as regiões que tiveram uma tradição colonial ou semicolonial, antes de expulsarem o capital estrangeiro pela revolução na URSS, e que abarcavam um grande número de habitantes muçulmanos. Conforme apontou a pesquisadora Daria Dyakovona: “Os aspectos culturais específicos que as mulheres soviéticas tiveram que considerar foram a prática do véu, as relações familiares poligâmicas e patriarcais, assim como a exclusão quase total da mulher da vida social. [5]

Em seu texto Lênin, as mulheres e a revolução: lutar pelo futuro, Josefina L. Martínez, descreve este momento como:

“As Conferências de Mulheres Comunistas tiveram uma grande audácia para a organização das mais oprimidas entre as oprimidas. Buscaram desenvolver a autoatividade das mulheres trabalhadoras e camponesas nas lutas contra o imperialismo e o capitalismo e por uma transformação de suas condições sociais e culturais. Nas regiões onde se cruzavam a opressão nacional e os preconceitos religiosos, a política leninista rechaçava as imposições burocráticas por parte do Estado operário russo, fosse a respeito de questões culturais ou nacionais. Tanto é que, pouco antes de morrer, Lênin havia advertido em uma carta ao Comitê Central contra as pretensões burocráticas de Stálin e sua política “grã-russa” em relação às nacionalidades oprimidas.” [6]

E assim, contra todas as principais bases socialistas da Revolução, atuou Stálin e sua camarilha burocrática. Como expresso no trecho citado, ao final de sua vida, Lênin buscou combater os traços que já existiam da burocratização do partido, defendendo a democracia operária no interior do estado soviético. Para ele, o recente Estado que ali se constituía não passava de um estágio rumo a uma sociedade infinitamente superior, em que o Estado enquanto instituição de poder fosse, cada vez mais, perdendo seu sentido de existência na medida em que os antagonismos de classes fossem desaparecendo a nível nacional e internacional, numa perspectiva de não mais existir enquanto tal.

É nesse sentido que os revolucionários russos sempre souberam que o risco da degeneração da Revolução era iminente caso não se expandisse internacionalmente, também entendendo todos os fatores objetivos que alimentavam o processo de burocratização que, para além do isolamento da URSS gerado pela derrota das revoluções internacionais, diziam respeito à devastação econômica causada pela guerra e à escassez em virtude do baixo grau de avanço das forças produtivas herdadas da Rússia czarista. Durante os anos 1920 e 1930, o que se passou diante dos olhos do marxismo mundial foi uma profunda ruptura com as concepções bolcheviques defendidas por Lênin. Como se sabe, as consequências para as mulheres não poderiam ter sido mais devastadoras. Para além da abolição do Zhenotdel (Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Mulheres Camponesas do Partido Bolchevique) em 1930, da criminalização do aborto e da homossexualidade, todo o vislumbre de liberdade que dezenas de milhares de mulheres muçulmanas puderam experenciar foi atacado. As conferências internacionais de mulheres não foram mais convocadas, e a luta por organizar as mulheres dos países oprimidos pelo imperialismo foi abandonada.

Para Lênin, muito mais do que vítimas da opressão brutal do patriarcado e da sociedade de classes, o enorme contingente de mulheres trabalhadoras, com suas duplas e triplas jornadas de trabalho, com suas dores e mazelas, com suas marcas tão profundas da opressão a que são submetidas, muito mais do que vítimas de toda a miséria que nos é descarregada, somos o verdadeiro motor da transformação social: é nisso que consiste o “elemento fundamental do bolchevismo”. Era essa a concepção que, após a morte de Lênin, foi energicamente levada adiante por Leon Trótski, que com a Teoria da Revolução Permanente buscou perpetuar a maneira tão intrínseca à luta proletária com a qual o bolchevismo encarava a luta pela emancipação da mulher.

Lênin vive em nossa luta para construir a revolução internacional!


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FOOTNOTES

[1LÊNIN, Vladimir. O dia internacional das operárias. In: ASSUNÇÃO, Diana. MARTINEZ, Josefina (org). Mulheres, Revolução e Socialismo. São Paulo: Iskra, 2023. p. 268-270.

[2LÊNIN, Vladimir. “Às operárias”, 1920.

[3LÊNIN, Vladimir “Discurso ante el I Congreso de obreras de toda Rusia”, 1918.

[4ZETKIN, Clara. Recordações sobre Lênin (Fragmentos). In: MARTINEZ, Diana Assunção e Josefina (org.). Mulheres, Revolução e Socialismo. São Paulo: Iskra, 2023. p. 240

[5Mike Taber & Daria Dyakonova (Ed.); The Communist Women’s Movement, 1920–1922; Brill,2023.

[6MARTÍNEZ, Josefina L.. Lenin, las mujeres y la revolución: luchar por el futuro. Ideas de Izquierda, 14 jan. 2024. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Lenin-las-mujeres-y-la-revolucion-luchar-por-el-futuro
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Mariana Duarte

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Giovana Pozzi

Estudante de história na UFRGS
Estudante de história na UFRGS
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